De poesia e de poetas

Por Márcio de Lima Dantas

Anjos rebeldes. Brueguel.

Gostaria de que os leitores não inscrevessem este artigo no que habitualmente se chama de crítica da cultura. Uma vertente da crítica que aponta as mazelas e os simulacros do mundo contemporâneo e que tem sido, sem dúvida, muito útil à compreensão de fenômenos correntes, embora os mais desavisados vejam nela uma nota ressentida ou pessimista. Sucede, aqui, muito mais um pequeno diagnóstico do ambiente literário da cidade. Ao fazê-lo - chamando a atenção para o resguardo de nossa memória cultural e, conseqüentemente, para a importância da responsabilidade com a herança do passado - , tenho em mente um referencial de autores, de obras e de público constituidores de um circuito que confirma o nosso argumento. Longe de prescrever uma idealidade com relação a autor, a um tipo de obra e a um público modelo-fruidor de arte, mantenho intacto um marco teórico mais condizente com a especificidade deste objeto chamado literatura. Acredito que o leitor não é obrigado a concordar ou a seguir esta ou aquela perspectiva, contudo não podemos nos omitir diante da substantividade dos fatos tão contundentes no nosso mundo. Tampouco podemos perder de vista patrimônios artísticos e exegéticos que nos legaram importantes pensadores e linhagens de escritores.

Iniciarei tratando do que, no sentido forte do termo, um poeta venha a ser. O poeta é o artesão que, ante a matéria-prima com a qual exerce sua atividade, a linguagem, mostra-se consciente do seu ofício, demandando conhecimentos, não só da língua e da sua gramática, como também informações acerca da história da literatura e de como as formas foram evoluindo, no que se incluem os próprios textos que produz. Afinal de contas, ninguém é tão original que não tenha bebido em alguma fonte ou que não remonte a alguma linha de continuidade. 

E olha que não estou tratando da relação puramente cumulativa e enciclopédica com a tradição. Refiro-me a uma releitura crítica dessa tradição tendo como horizonte a criatividade. Desse modo, o poeta não se permitirá arrastar por uma cega inspiração que, esquecendo o estudo e a “luta com as palavras”, o faz entusiasmado (“possuído pelo deus”) em diversos sentidos. Nessa acepção, a expressão pode evocar um estado em que se pode recusar não só a Teoria, mas, sobretudo, a leitura de outros escritores. Os poetas dessa linhagem, que podemos nominar de espontâneos, ainda permanecem com essa mentalidade retrógrada e desinformada, engendrando um tipo de comportamento autoritário e insolente perante aquilo que, no fundo, deveria dar-lhes ternura e humildade. O quê? Ora, a literatura.

De mui gosto para esse largo afluente de poetas, são os jogos de linguagem, jeu de mots, os trocadilhos de palavras, normalmente elaborados com base na pura sonoridade dos significantes, que, aos incautos, soam como profundas e insofismáveis ideias de tão grande complexidade que o leitor, coitado! , fica se achando incapacitado para decodificar tão transcendente pensamento. Esse ciframento não só afasta o leitor, que teme não estar com um repertório à altura e poder ser considerado ignorante, como, por outro lado, cria um tipo de hermetismo em nenhum referente fundamentado. Ou seja, observamos uma poesia ininteligível e impregnada de tantos artifícios de retórica que até um leitor experimentado em poesia sente dificuldades em decodificar tais textos. Na verdade, estamos diante de uma organização puramente fonética, em que a dominante da construção são os efeitos de eufonia, provocada pelo choque de vogais e consoantes, somados ao uso de grande número de palavras proparoxítonas articuladas por parataxe. É o caso do "The Flash and Crash Days", de Gerald Thomas, que os mais ingênuos pensam ter uma grande significação, e não é nada mais do que isso: "The Flash and Crash Days".

A literatura contemporânea, de há muito, já incorporou a consciência reflexiva (do voltar-se sobre si própria). Primeiro, através dos poetas que, como um Dante, já na Idade Média, não só teorizaram, mas escreveram poesia sobre poesia, numa atitude metalinguística prenunciadora de um dos temas principais das poéticas contemporâneas: poesia com reflexão teorética. Diante de toda uma tradição, não podemos admitir essa maneira de pensar que se caracteriza pela ingenuidade e pelo voluntarismo diante do fato estético. Atitude, como já dissemos, com um eterno pendor para o imponderável, que, por sua vez, gera um comportamento refratário a uma poética contemporânea muito mais condizente com o tempo acumulado e com as novas possibilidades de sentir e de perceber do homem atual. Maneiras de sentir e de perceber que não se admite mais, a esta altura, que sejam laicas em relação a pensamentos mais complexos (esclareço: não estou prescrevendo atitudes, tampouco advogando padrões estéticos ou respeito incondicional à tradição). Considero apenas como necessário ao fazer poético contemporâneo uma postura de maior responsabilidade e compromisso com essa atividade, que implica não só o conhecimento da gramática da poesia, como também da sua lógica e da sua retórica.

Com o modo voluntarista e ingênuo, muitos acabam se impondo. Ocupando o lugar vazio do Parnaso contemporâneo, proporcionando falsas emoções estéticas, por meio de um tipo de escritura que não é mais do que um arremedo de poesia expressa em alambicados textos. E, nos rituais dos vernissages, nas cerimônias oficiais, nas mídias e médias, os poetas acabam por se sagrar como novos filhos da divindade. Nesses lugares e momentos em que Todos celebram Outros e uma mão lava a outra, na interminável frágua das vaidades, sempre alimentada pelos elogios mútuos, temos a conformação de um status que, ao longo do tempo, vai se sedimentando.

Então, musas e aedos prosseguem no convés dessa nave chamada poesia, fazendo seus ninhos de louros para adormecer sobre eles. Melhor ainda: não precisam explicar ou dar satisfações a ninguém; afinal de contas, são POETAS (interessante observar que, entre nós, a palavra poeta impõe uma aura semântica que resvala para boêmio, blasé, louco, infrator, irresponsável, e acaba por permitir um espaço favorável aos “jogos lúdicos” com a linguagem). No final das contas, como acreditam, a “poesia é intraduzível” e se constitui um objeto esotérico, que não se dá a conhecer para os não-iniciados. Sobretudo não pode ser analisada e interpretada. Para eles, a crítica, mormente a que não legitima os simulacros do mundo artístico, não faz outra coisa senão “distribuir rubricas” e “inventar ângulos”. Não é à toa que esses poetas normalmente são muito reticentes quando o assunto é poesia. Ou lacônicos. Do alto de suas torres de marfim, sorriem ironicamente, numa atitude que parece ter algo de grande cansaço e tédio, como se dissessem que já “estão fartos de tanta literatura”. Ou então, numa conversa séria, irrompem com chalaças e ironias como a provar que são inteligentes. Como sabemos, a ironia é um recurso utilizado pelo sábio.

E, nesse embuste, agigantado com a cumplicidade de quem menos se espera, temos o fortalecimento, na série artística, do irracionalismo contemporâneo tão em moda e com uma capacidade enorme de vulgarizar o pensamento mais complexo. O pior é que, justamente, na arte, temos toda uma corrente de autores e estilos históricos, com seus respectivos teóricos, avalizando tais concepções. Aqui lembro do poeta-filósofo Platão - ressalvado sua contribuição para a filosofia Ocidental - ,que acabou, com suas idéias sobre Poética, legitimando noções como a de “gênio” e quejandos, proporcionando um lastro de idealismo lançado às gerações futuras e onde pisariam, com intensidade, o Romantismo, no século passado, e o Surrealismo neste século. Movimentos de grande importância na história da literatura, proporcionadores não só de experimentos e rupturas, mas também contribuidores de alguma maneira para a construção de uma representação irracionalista de poesia e de poetas, conservando-se difusa no imaginário social até este final de século, depois de todos os avanços nos diversos campos do Conhecimento. Dentre tantas contribuições, destaco as pesquisas das teorias críticas de base imanente, que colaboraram na compreensão do fato estético.

O que antes dissemos pode ser detectado igualmente em traços mais gerais da cultura contemporânea. Mormente o senso comum, nos nossos dias, que vem ganhando de muito para a ciência. Junte-se a isso um misticismo tão em moda, nuançado de todos os jeitos e qualidades, coexistindo com toda uma tradição que remonta ao idealismo platônico e que, como diria Leyla Perrone-Moisés, “teima em não querer morrer”. Não por acaso, essa corrente de autores se vincula justamente a um tipo de reflexão legitimadora de suas inabilidades para com a teoria e a ciência. Sintomático é o desprezo por Aristóteles. Consideram que a arte emana, não de uma atitude lúcida perante os modos e os meios utilizados pelo artista, mas de algo inefável, que pousaria sobre as cabeças, e, inexplicavelmente, “baixaria” no gênio escolhido pelos deuses. Nada melhor para se sentirem eleitos por divindades, mesmo que, no cotidiano, não tenham nada de deuses, muito pelo contrário.

Engraçado é que a matriz-nutriz teórica desses autores é um refogado das idéias de Roland Barthes, pouco digeridas, pinçados os fragmentos mais convenientes, com boas pitadas de um formalismo mal assimilado. A emancipação da linguagem, propalada por muitos teóricos, acarretou a louvação de um “paraíso do significante”, “texto plural”, “galáxia de significantes”, “escritura barroca” e outros bons slogans totêmicos (como diria Décio Pignatari), que, ao serem pronunciados, em qualquer ocasião, provocam efeito encantatório drástico, principalmente se forem seguidos de dêiticos com olhos e mãos, quando todos os interlocutores, hipnotizados, silenciam diante de grande sapiência (sintomático é que o Barthes considerado é o do Fragmentos de um discurso amoroso e O prazer do texto - ensaios estruturados por parataxe -, o que só vem a confirmar o gosto pela coordenação acima aludida).

Junto com aqueles sintagmas tão proveitosos, temos a noção de texto. Que, de uma categoria analítica, capaz de dar conta das produções contemporâneas com bastante inteligência, se tornou uma rubrica para nominar aquilo que não se quer classificável. Terminando, por fim, por se confundir com o fato estético.

Tenho pra mim que a literatura, por ser um discurso de tipo específico, marcado por uma elaboração particular da linguagem, dela fazem parte os trocadilhos e outros jogos de linguagem. Contudo, fazer disso (exclusivamente) a natureza do discurso literário vai uma grande distância. Que a arte não está no tema, na matéria, isso é o óbvio crepitante. Arte é forma. Expressão. E o poeta é um degustador de vocábulos, um configurador de signos, que, ao selecionar os termos no eixo paradigmático da linguagem e organizá-los no eixo sintagmático, insistentemente busca a materialidade das palavras.

Como podemos ver, aqueles autores parecem esquecer as “lições de pedra” da poeta Zila Mamede ou ignoram o rigor construtivo de um contemporâneo como Paulo de Tarso. Ou mesmo a sempre originalidade imagética de um certo Sanderson Negreiros. Poéticas que se caracterizam por um agudo conhecimento do fato estético. Poéticas de poetas-leitores. Poesia de elaboração em detrimento de um inconsistente lirismo confessional. Com efeito, esses poetas, consciente ou inconscientemente, resguardam uma coisa que a tradição do pensamento materialista nos legou e que (estendendo aqui para o campo da arte) jamais deveríamos esquecer, a saber: também a poesia não foge à regra de que toda criação humana é, em si mesma, atividade de um sujeito sobre uma matéria particular. A poesia é um construto resultante do manuseio de um sujeito que, interessadamente, mergulha no “reino das palavras” para extrair os poemas. Interessante notar que a palavra poesia vem do grego, poíeses (“ação de fazer algo”). No seu étimo, já resguarda sua ontologia.

Ainda aqui, no Rio Grande do Norte, temos um agravante: a tradição de fazer poesia encontra-se encharcada de experimentalismos. Momentos importantes na história das nossas artes que, sem dúvida, contribuíram na busca de novas possibilidades de expressão, mas que também deram origem a uma geração que continua presa ao idealismo da experimentação pela experimentação sem se dar conta de que o tempo passa e exige obras maduras. O ideal de ser vanguarda perdura como um fantasma. E então, ao que parece, muitos poetas atuais se sentem premidos a dar uma resposta ou, pelo menos, a ter como referência uma eterna experimentação com as linguagens.

Enfim, se o leitor não estiver muito entediado com minhas palavras, gostaria de citar um trecho da correspondência de Eckhermann a Goethe. Veja o que ele nos esclarece:

Eckermann:“Chegamos a muitas conclusões sobre os nossos jovens poetas e observamos que quase nenhum deles produziu uma obra em prosa”.“É muito simples”, diz Goethe, “para escrever em prosa, é preciso ter alguma coisa para dizer. Quem não tem nada para dizer, pode muito bem fazer versos e procurar rimas; nestes uma palavra chama a outra e resulta finalmente não se sabe o quê, que, decerto, não significa nada, mas parece significar alguma coisa”

E ainda faço saber que essa mistificação da poesia e do poema, utilizando-se de categorias analíticas prenhes do inefável, em oposição ao substantivo, só fortalece a ideia de que muitas coisas não podem ser conhecidas e que temos um limite: do outro lado da fronteira, reside o mistério. Limite, esse, contaminado de tabus religiosos. Caso Galileu os tivesse respeitado, a Terra ainda seria o centro do universo.


***

Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 da Revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.

Comentários

Mario Tadeu Saroka disse…
Muito bom texto.Apenas teria ficado mais definido,caso de colocassem exemplos referentes aos objetos literários citados,isso daria mais parâmetros ao texto,sem deixar uma impressão de algo subjetivo e vago com relação às referências.

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