O filho de Saul, de László Nemes

Por Pedro Fernandes



Não foi em vão que O filho de Saul ganhou o Grande Prêmio do Festival de Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Não é o caso de retomada de alguns temas recorrentes à cinematografia sobre o nazismo alemão e o massacre a milhões de pessoas em nome de uma ideia perversa ou ainda o tema sobre a errância do povo judeu – dois epicentros da narrativa de Nemes vinda a lume no ano em que se passaram 70 anos do fechamento de Auschwitz pelos soviéticos. Nem foi esse dado histórico o que terá comovido o júri para a atribuição dos galardões. É a maneira muito autêntica encontrada pelo diretor húngaro para retomar esses dois temas.

A narrativa de O filho de Saul se passa num dia da vida de um membro do chamado Sonderkommando, um grupo de trabalhadores formado por recrutas escolhidos tão logo chegavam ao campo de concentração e cuidava do serviço burocrático de detenção, execução, queima, manutenção e ordenação dos crematórios. Não sabe-se qual campo onde vive Saul nem o dia acompanhado pela narrativa, que é o seu último nas funções do Sonderkommando – depois de um tempo, os funcionários eram substituídos e os mais antigos igualmente executados. Pela manhã, enquanto desempenha suas tarefas no crematório, Saul descobre o corpo de um menino levado à morte pela equipe médica nazista cujo interesse é de praticar experimentos clínicos, como foi comum nesse período os exercícios mais berrantes com seres humanos. Desde então, inicia sua tarefa em encontrar, salvar o corpo e um rabino para conseguir um enterro digno para a criança que logo adota como seu filho.

Só as essas breves linhas de resumo da história são motivos suficientes para o que dissemos ser outra a maneira como os temas mais recorrentes do holocausto são aqui tratados. Poucos são os filmes que usaram um drama aparentemente simples para construir uma poderosa metonímia sobre o vilipêndio da existência, o horror, a violência e a barbárie. Enquanto acompanhamos toda a sorte de estratégias de Saul para a realização de sua vontade – um ato humano em meio a brutalização – não deixamos de ser perturbados pela recorrência da rotina: a quantidade de pessoas que chega ao crematório e passa pela humilhação dos corpos; a separação das roupas; a execução; a assepsia do matadouro; a leva dos corpos para o forno de cremação; o trabalho de alimentação do crematório, do forno ao gabinete, onde se contabiliza sem o mínimo de escrúpulos a quantidade de vítimas ceifadas naquele dia e a necessidade de ampliação dos números; a separação de documentos e de bens de valor em grande parte utilizados para o enriquecimento do próprio corpo de soldados; a separação das bagagens noutra ala formada por Sonderkommando de mulheres; a coleta e dispersão das cinzas na água. Tudo se passa numa rotina extremamente corriqueira como pano de fundo às sequências em primeiro plano preenchidas com o volteio de Saul, as corruptelas, uma jornada de sacrifícios, diga-se, em nome de seu último gesto de dignidade.

A pergunta que todo espectador deverá fazer sobre a persistência de Saul é, por qual motivo a personagem age da maneira que age num universo de interdições em nome de pessoa sobre a qual não mantém qualquer ligação de parentesco? E essa pergunta que a narrativa não responde poderá ser a que colocará os espectadores mais desavisados em lugar de objeção ao filme, afinal, onde já se viu, do nada, alguém padecer-se de um desconhecido para conseguir tão somente um enterro digno para um corpo que, passado o tempo, será cinza como todos os outros? A compreensão desse acontecimento não é dada por vias simplistas, comuns ou racionais como estas. Além disso, não se trata de um gesto que responda por um ideal de ressurreição, afinal, na tradição judaica não há uniformidade acerca da vida pós-morte. Tampouco se trata de uma prova pessoal assumida como estratégia de o próprio Saul, também um condenado à morte, não lembrar do seu último dia. 

As respostas para o segredo que sustém a narrativa poderão ser diversas e as que aqui são oferecidas são apenas algumas possibilidades. Primeiro, é este um gesto, como dissemos, de humanidade, se pensarmos que Saul, dentre os milhares de condenados do dia é o um escolhido como a viver por algum tempo a mais, ainda que no horror e cumprindo os dogmas do horror; logo, o gesto de sepultamento da criança que sobreviveu à câmara de gás mas não ao poder acachapante do ódio, é uma retribuição, consciente ou não, que zela pelo princípio do, o que em vida podemos fazer pelo outro. Assim, a celebração do ritual nas condições dignas é um exercício de dignidade humana da qual, mesmo nas condições mais adversas, ele não se vê permitido negar. Evidentemente que, justamente por isso, é seu último gesto de afronta ao poder e à interdição.

Depois, um compromisso muito estreito com a memória; esta que para o povo judeu se difere do ideal imposto pelos modelos ocidentais sobretudo aqueles geridos a partir da modernidade, de apagamento do passado com vistas a permanência de um eterno novo. Isto é, se não há em Saul a consciência de uma transcendência do espírito para uma vida eterna, há a certeza de que o corpo ao sobreviver todo o processo de apagamento presenciado por ele poderá ser a sobrevida ou a chave de acesso a outros povos. O sepultamento, assim, reafirma um zelo pelo interesse de manter a memória servindo de fundamento para sua caracterização enquanto povo, aqui referida, a um só tempo, para com os seus antecedentes históricos, com o presente e seus descendentes no futuro. A memória em seu pleno significado e abrangência.

Além disso, o gesto de Saul contribui para a revisão sobre uma das opiniões mais controversas assumidas em torno das figuras que fizeram parte dos vários grupos do Sonderkommando. Voltemos, uma vez mais ao que se passa em segundo plano e constitui uma segunda camada tão ou mais importante que este questionamento sobre a atitude de Saul. Pela perspectiva de uma figura que pertenceu a essa organização, Nemes apresenta que, em grande parte, os que aí serviram não estavam acima de nenhum dos que recebiam logo a sentença de morte tão logo chegavam ao campo de concentração e eram tão vítimas do regime quanto os mortos na primeira fila, uma vez serem obrigados à submissão e ao mando contra sua própria gente. Tanto é verdade que, propositalmente, somos levados a todos os círculos de funcionamento da indústria da morte e presenciar em cada um dos lugares a maneira como todos são destratados: serviçais para a morte condenados à morte.

A precisão cinematográfica de fechar a câmera todo tempo sobre as personagens principais da cena e não expor visualmente o segundo plano não é uma estratégia de mascaramento do horror mas sugeri-lo através de outras percepções: seja a própria vista que se esforça para decompor o embaçado, seja o levante dos sons – batidas, tiros, choros, berros, uma diversidade de línguas, tudo repete o continuum de um inferno comandado pela danação de homens cegos pela ignorância de não se verem como semelhantes. Estruturalmente reforça o ambiente de silenciamento imposto aos trabalhadores, em que todo e qualquer contato se desenvolve à surdida e através de um jogo diverso de sinais: outra língua, outra sintaxe representativa, outra maneira de comunicar-se por sob a censura. É ainda uma maneira outra de dizer que o que nos circunda participa, direta ou indiretamente da nossa história individual, ainda que ousemos negar ou substituir por outra visão, o que não é o caso direto de Saul, cujos sentidos estão suspensos em torno de uma ideia, de obsessão e não a da atitude de ignorar o que lhe rodeia. 

Ao nos introduzir nesse universo dramático, O filho de Saul nos alerta para um retorno: nada está de um todo esquecido, nem a salvo e horror é um só encoberto capaz de no primeiro descuido ganhar outras formas ainda mais severas e cruéis. Essa é outra condição de memória recuperada por Nemes e fundamental para o espectador que tal como Saul tem uma responsabilidade tão urgente como a sepultura digna para um filho: o de estar lúcidos e intervir em nome da dignidade e dos valores humanos.  

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