Rodin, de Jacques Doillon

Por Pedro Fernandes



Rodin é uma das figuras mais importantes da arte moderna. De formação clássica e contra esta não ensaiou quaisquer movimentos de rebeldia político-estética, como foi comum a muitos artistas modernistas de seu tempo, preferiu demonstrar a virulência do gênero através da construção de uma obra se tornou revolucionária. Que o escultor francês seja uma referência, uma das mais importantes figuras das artes no entre-séculos XIX e XX, gênio marcado pela sensibilidade inscrita num trabalho que é a um só tempo uma ousada releitura dos temas tradicionais das artes clássicas e uma alegoria celebrativa do corpo ou da genialidade dos homens de seu tempo, ninguém duvidará. Agora, que sua biografia seja dotada dos grandes eventos dramáticos, comuns a quase todos os gênios criadores, é algo a se verificar e, uma das possibilidades, encontra-se no filme de Jacques Doillon.

E a questão é, fora as implicações pelo reconhecimento, os arroubos temperamentais e os embates amorosos, características recorrentes na vida de todo ser humano, a primeira mais à dos artistas, não está desconforme ao quadro social de um cidadão comum. Talvez por isso, o empreendimento do cineasta francês se torne ainda mais complexo. Como tornar uma vida comum em narrativa de algum modo interessante? Alguém poderá dizer que, para um criador que traz na biografia a tradição do revolucionário cinema da Nouvelle Vague, ou ainda das grandes produções com plots brevíssimos, esse um desafio simples. Sim, tecnicamente, mesmo os que não entendam nada da criação cinematográfica perceberão que Rodin é um filme bem construído.

Apesar de ser uma narrativa monótona e impregnada de referências caras até para um francês (nada impede que o espectador mais astuto se embrenhe na grande selva da história para recuperar tais informações), logo se perceberá que as falhas não são de nenhuma maneira decorrentes da produção. É mesmo de uma história que não oferece aos criadores muitas opções capazes de prender de olhos abertos o espectador.

No mais, até mesmo escolha de Jacques Doillon, por buscar o caminho mais desconhecido da obra de Rodin, é um acerto. O cineasta, que poderia recuperar o período de quando Rodin construiu sua obra mais famosa, O pensador, resolve atentar para outras passagens menos populares na biografia do escultor: o de quando trabalha na série de esculturas realizadas para a Porta do Inferno, do Museu de Artes Decorativas e o retrato de Balzac.

Apesar de ser dessa época esculturas como O beijo, outra aí retrata, e que depois de sua Magnum Opus é sempre lembrada quando é citado seu nome, o período eleito por Doillon para o filme é a um só tempo o da mais alta fama de Rodin, quando já procurado em toda a Europa e saudado entre seus contemporâneos, e o de uma de suas mais graves crises criativas, assinaladas pelos impasses amorosos e pela crítica mais ácida ao seu trabalho. É nesta mesma situação que perde sua melhor assistente e também escultora, quem em muito ultrapassa em força criativa e biográfica o seu mestre, e quando enfrenta as mais sérias cobranças das mulheres que viviam à sua sombra – de alguma maneira aquela com quem o francês foi casado reivindica um lugar na sua biografia.

Camille Claudel, figura sobre a qual a cinematografia há muito e por ângulos diversos explorou sua força é não apenas a assistente mais famosa, é igualmente a mais relevante na história de Doillon – e não totalmente autônoma, porque, afinal este é um filme sobre Rodin mas, ironicamente, são as passagens do drama entre o escultor e ela as que desperta o espectador do marasmo da narrativa. Tanto é, que há um antes e um depois na trama de Rodin marcado pela presença e pela ausência de Claudel e, claro, a parte melhor é esta em que encontramos o criador e a ajudante tão envolvidos pelo brio da criação que incapazes de separar as tênues fronteiras das relações tornam-se amantes de longa data, para desespero de Rose Beuret, a oficial companheira de Rodin e quem suporta toda a montanha-russa de uma relação pautada no isolamento, na traição, à sombra de um obcecado pelo trabalho e um incapaz de compreender o limitado mundo de quem estava sempre à sua espera.

Esse triângulo amoroso é muito bem explorado e, propositalmente, para que seja um dos melhores momentos do filme, porque é quando o cineasta tem a alternativa de desprender a narrativa da repetição do dia-a-dia de Rodin em seu estúdio de criação, os momentos que dão ao filme a tal monotonia sobre a qual todos se queixam, e para sondar a vida pelo lado de fora – embora, claro está, que não é este o motivo principal da obra. Toda monotonia, aliás, é compensada – aos que não sofrem de claustrofobia – pelas expressividades muito bem trabalhadas de Vincent Lindon, o ator que incorpora o protagonista da história. 

Ainda nessa linha do que parece ter sido os momentos mais fora da reta na vida de Rodin, é válido citar que este filme não deixa de lado a denúncia do lado machista do escultor, ainda que esta visão não pareça ser a do cineasta porque entrevista pelo campo de visão de Camille, quem ora é mostrada como uma ressentida diante do sexismo do qual é vítima e que prejudica sua carreira, ora como uma figura de importante contribuição para a obra do amante e reconhecida por este como genial escultora.

A visão da narrativa, ao que parece, se não ignora o ponto de vista feminista recorre a certo lugar comum segundo o qual as relações entre o plano criativo (do criador e da criação) muito se confundem com o plano da vida real. Provam isso, a maneira como o cineasta escolhe mostrar as relações entre Rodin e sua assistente mais famosa, dele com outras de mesma função e com suas modelos. Tudo parece envolvo num certo tom de conveniências ao mesmo tempo clássicas de que em nome do espírito da criação tudo se justifica, como por tons modernos advindo daí de que não há criação sem desregramento das atitudes ante a vida.



Aliás, Rodin quer captar um lugar interior – e, portanto, abstrato – o do impulso criativo, aquele que irmana o criador às suas criações, o criador à elaboração de sua estética, o criador ao seu mundo forjado a um só tempo pelo que é corriqueiro e trivial e pelo que é figurado pela imaginação criativa. Há uma sensorialidade marcada pelo toque e este, por sua vez, se reveste de uma sensualidade que não está visível apenas na diversidade de corpos nus que circulam pelas cenas; esta sensorialidade chega a impregnar a atmosfera e o ritmo da narrativa e se caracteriza como a marca principal da protagonista. Modelador do mundo com as mãos, esta escolha perceptiva da produção (ou do ator na composição da sua personagem) atribui as ligações verossímeis que se espera entre um obstinado pela criação artística.

Agora, qual a importância desse recorte de tempo escolhido por Jacques Doillon – e também qual a importância de Balzac na obra de Rodin? Primeiro, não foi, logo se vê, uma escolha aleatória. O escultor francês levou anos e anos de dedicação a este projeto cuja ideia foi lançada ainda por Alexandre Dumas e depois de muitos anos abandonada restabelecida por Émile Zola que, primeiro recorre a Henri Chapu; como este não teve tempo para sua execução, a incumbência é repassada a Rodin.

Como se vê no filme, o escultor estava habituado a reproduzir a partir não da mera imaginação mas da observação do seu entorno – é dessa maneira que esculpe um busto de Victor Hugo, que terminará, por impaciência do escritor, apenas pelos traços que depositou na memória. Esta cena é importante para estrutura do filme porque é outra estratégia do cineasta de dizer sobre o trabalho repetitivo da criação de Balzac sem se ater apenas na dedicação do escultor a essa figura – além, é claro, da compreensão de que nenhum criador executa isoladamente apenas um projeto. É esta cena que justifica, por exemplo, de onde Rodin conseguiu extrair estratégias para a composição de seu Balzac.

Isso porque, no caso do escritor francês, o escultor tem pouquíssimos materiais que atestam uma imagem: a prova mais crível é um daguerreotipo tomado por Bisson em 1842. Mas, curiosamente, o elemento imagético favorável à consolidação de seu projeto é um conjunto de cartoons que representam o romancista francês em suas roupas de trabalho habituais: um roupão. A partir disso, Rodin tem a sorte de encontrar um velho alfaiate de Balzac que lhe fornece todas as medidas físicas do escritor e favorece ao escultor encontrar semelhanças no mundo concreto para dar forma à sua obra.

Dos embates do escultor até alcançar a estrutura final de seu projeto estão as provas que construiu com modelos sobre Balzac: uma escultura em gesso do roupão; os estudos sobre o nu para o qual fará cerca de trinta ensaios; uma estátua sem cabeça e de braços cruzados; bustos; e, por fim, a estátua em bronze. Ante todos os impasses – contornados graças à perseverança de Zola – a obra ficou pronta para a exposição do Salão de Paris de 1898, momento retratado pelo filme de Doillon pelo reconhecimento que Rodin fará da obra de Camille Claudel, semi-esquecida na exposição ou detratada pela sociedade artística de então. É a chance que o cineasta encontra de atenuar os caprichos machistas do escultor e atribuindo essa condição aos volteios do caráter genial do artista.

O Balzac se reveste de todas as marcas que justificam o valor contestatório da obra de Rodin. Se não agradou a muitos, foi através da escultura que pode reunir a um só tempo a tradição e o novo, num gesto dialético que, se era mais ou menos fácil de se construir no universo da literatura, pela possibilidade de articulação da escrita entre um e outro plano, não era de nenhuma maneira fácil para a escultura. A tradição aparece aqui representada nas feições imperativas de um Balzac senhor de toda história e ao mesmo tempo, e eis então o caráter novo, o escritor é mostrado na sua mais inteira simplicidade, envolto num roupão, o que atesta ainda contra sua figura santificada pela canonização da crítica enquanto o revela homem entre os homens.

O Rodin, de Jacques Doillon, é uma aula acerca da figura sobre a qual a narrativa documenta. Pela boa execução e construção do imbróglio biográfico – e as saídas alternativas e criativas para não cair na total repetição de um filme que se passa num só cenário e preso à mesma ordem das ações – é um trabalho que merece uma chance do espectador, se não como obra de grandeza cinematográfica, como aula sobre uma das figuras interessantes da arte moderna. 

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