Me chame pelo seu nome, de Luca Guadagnino

Por Pedro Fernandes



O filme de Luca Guadagnino é uma leitura de um romance de mesmo título do egípcio André Aciman: narra os acontecimentos de uma temporada de férias na vida do adolescente Elio, na casa de campo da família em 1983; explora o tema do primeiro amor e do amor de verão por um ângulo incomum capaz de despir uma narrativa do gênero do romance piegas. E isso não acontece porque o primeiro amor no caso é entre um garoto em processo de autodescoberta do corpo e dos desejos e um homem de elevada experiência; também não é o caso de o cineasta se distanciar de elementos sempre recorrentes nessas narrativas, porque aí estão os medos dos amantes, a realização dos seus desejos e as decepções.

Acontece que Me chame pelo seu nome é a prova de que há muito o cinema tem se distanciado do sentido que lhe é mais caro: contar uma história capaz de propiciar ao espectador o deleite com o belo e a catarse. Este filme consegue as duas coisas ao nos pegar pelo braço e nos tornar cúmplices do florescimento desse amor, bem como de suas repetidas possibilidades de fracasso. Porque tratado de uma maneira muito natural, o amor recordado pela narrativa se despe das cores de um tipo amor para se tornar em possibilidade para todas suas formas de realização. Nesse sentido, Guadagnino rompe com a cultura heteronormativa e a dos chamados romances gays ao reconduzir o ideal amoroso ao lugar de sua gênese: a do envolvimento sincero de dois corpos que se desejam, se querem e se buscam conhecer. Nisso não há limitações, tampouco determinações.

A maneira como esse retorno é realizada está situada num contexto que lhe favorece: estamos à parte do mundo comum, porque este verão transcorre numa propriedade rural no interior da Itália e no seio de uma família de intelectuais que têm uma vivência bastante acentuada com a cultura grega e romana, das quais, tanto os pais de Elio quanto o jovem professor Oliver são estudiosos. Ou seja, se a princípio tudo parece ser determinado para a realização do amor entre Elio e Oliver, por outro, as liberdades dos dois aparecem justificadas nos próprios interesses e vivências – ambos lidam com algo cada vez mais raro, tanto quanto as boas histórias para o cinema, o espírito de contemplação e enovelamento do espírito para com o sublime, propiciado pelo apelo estético da arte.

E tudo isso não se apresenta em Me chame pelo seu nome enquanto representação. Sua estratégia foi a de traduzir esses efeitos através da composição do filme, de maneira que o próprio espectador seja capaz de abrir-se a esse olhar que cotidianamente tem se mostrado displicente e toldado por uma série de efeitos de perturbação e não de engrandecimento e apaziguamento do espírito. Toda índole da narrativa fílmica favorece isso: nosso encontro com uma Itália profunda e com um cotidiano que mesmo repetitivo e de ócio se é marcado pela vivência e a reaprendizagem dos sentidos são algumas provas disso.

Da mesma maneira, a fotografia cintilante, só desobrigada ante a impossibilidade de sua manifestação não respondem nesta produção de Guadagnino apenas pela criação de uma atmosfera condizente com o período dos eventos narrado; ela está à serviço do enovelamento suscitado pela narrativa em favor de nosso encantamento com o narrado. Isto é, integra parte no exercício de nos propiciar ao efeito catártico e o deleite. Daí, entramos um e saímos outro. Deixamos de lado a mera impressão que nasce no início da narrativa tão logo a chegada de Oliver à casa de Elio, de que estaremos diante de um mero romance adolescente, para alcançarmos uma compreensão acerca da manifestação do amor.

E porque não estamos apenas numa história de amor, mas de aprendizagem – porque o mundo é integralmente entrevisto pelo olhar do jovem –, a história de Elio e Oliver é uma história do amadurecimento, exercício este que passa pelo carrossel de sentimentos vividos por estas personagens. Sim, não é apenas Elio, o contínuo estudante, quem atravessa por aprendizagens; Oliver, o professor, já não é o mesmo depois que descobre os sentimentos do rapaz e nem será o outro depois de vivê-los. Vale citar uma das cenas do desabrochar do amor entre os dois na qual Oliver exclama da sabedoria de Elio, que tem um olhar, uma curiosidade e uma opinião sobre tudo.

Neste aspecto, o amor entre os dois encontra eco novamente no ideal greco-romano: misturam-se a descoberta do outro, a descoberta de si e a descoberta do mundo. Prevalece uma espécie de maiêutica socrática. A partir de si é possível compreender o fora de si. E o condutor desse processo ao invés de ser o professor é o aluno. É Elio, marcado pela inocência, quem julga o mundo a partir de si enquanto Oliver, marcado pelo conhecimento acadêmico, o faz a partir dos livros. Ele, portanto, é quem atravessará o mais complexo dos vales: o de retorno à origem dos saberes. É Elio ainda o da iniciativa, porque selvagem não mede as ações pelo pudor do racional imposto a Oliver.  

Reafirma-se ainda outra conclusão universal: de que nossa existência não é produzida pela mera acumulação de instantes e sim da contínua revisão de nossas experiências e cada uma são propiciadores para dizer quem somos e por que somos quem somos. Todos em Me chame pelo seu nome são tocados por esta compreensão.

O tema da descoberta é uma constante neste filme. Tanto que poderíamos substituir a compreensão de que este é uma história de amor por uma que diga ser este um filme sobre a descoberta e seu valor no processo de aprendizagem. O jogo amoroso de troca de nomes, como se a troca de identidades, que na narrativa fílmica se assume ainda numa cena em que Elio passa a usar uma camisa de Oliver, é um exemplo que justifica esta observação: somente quando somos capazes de nos vermos no outro, ou ver o mundo pelo olho do outro, é que amadurecemos o suficiente para lidar com a nossa complexidade e a complexidade das coisas. Existir é um contínuo fazer-se e não existiremos plenamente se não formos capazes do exercício de alteridade: saber do outro é saber de nós. E esta é uma das lições propiciadas por este filme de Luca Guadagnino.

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