Da rebelia adâmica, o fruto: "Paraíso perdido" em tradução


Por Guilherme Mazzafera


Satan Watching the Caresses of Adam and Eve. William Blake para Paraíso perdido, de John Milton, 1808. Museu de Belas Artes, Boston.


Das lacunas referentes à tradução de clássicos no Brasil, uma das mais gritantes é a ausência de Paradise Lost, obra-prima do poeta inglês John Milton (1608-1674). Publicada originalmente em 1667 e composta por 10.565 versos divididos em doze cantos a partir de sua segunda edição (1674), a epopeia miltoniana sobre a astúcia de Satã e a expulsão de Adão e Eva do paraíso figura de modo inequívoco entre os grandes textos da literatura ocidental. Os leitores brasileiros, em sua maioria, conhecem este belo poema por meio da facilmente encontrável tradução portuguesa do Dr. Antônio José Lima Leitão, e, mais recentemente, tiveram acesso à continuação da obra graças à empreitada coletiva coordenada por Guilherme Gontijo Flores, cujo esforço resultou na publicação de Paraíso reconquistado (Editora de cultura, 2014). A versão já consagrada de Leitão, no entanto, parece ser confrontada diretamente por uma nova tradução lusitana, levada a cabo pelo premiado poeta Daniel Jonas e publicada entre nós pela Editora 34 no final de 2015.

Originalmente composta a partir de seus estudos de mestrado e editada em Portugal em 2006, a tradução de Jonas vem ao encontro do leitor brasileiro em belíssima edição bilíngue acompanhada de uma série concisa e variada de paratextos que muito enriquecem a leitura.  A orelha, com excerto de Otto Maria Carpeaux, destaca a importância da obra do “Dante do protestantismo” e sumaria brevemente as dificuldades de sua recepção crítica entre os séculos XVII e XIX, que via o escritor como ortodoxo até que a descoberta de um livro inédito seu sobre a doutrina cristã permitiu constatar que “o poeta de uma epopeia sobre o pecado original acreditava até na liberdade absoluta da vontade humana”.

A apresentação do poema é feita por meio de um texto de Harold Bloom que, em seu estilo peculiar e propugnador, entremeia dados biográficos, balanço crítico e comentários interpretativos, destacando o algo de “extraordinário que ocorre na poesia de Milton (e com a poesia de Milton) sempre que Satã fala” e o veio erótico de inspiração hebraico-bíblica que perpassa seus versos. A edição é adornada com a série de cinquenta ilustrações de Gustave Doré, publicadas originalmente em 1866, dispostas ao lado dos versos que parecem ter sido sua inspiração primeira.

Daniel Jonas assina as notas, o posfácio e um breve texto onde explicita suas escolhas tradutológicas e traça o percurso das traduções do livro em Portugal, que recuperamos aqui: a primeira, de 1789, foi feita em prosa pelo Padre José Amaro da Silva. A seguinte, em verso, é publicada em 1823 acompanhada de notas e reflexões do tradutor Francisco Bento Maria Targini (Visconde de São Lourenço). Em 1840 sai a público a tradução em versos de Antonio José Lima Leitão, que será reeditada, com aparato crítico e ampliações de Xavier da Cunha e com as ilustrações de Doré em 1884 e 1938. Entre 1868 e 1870, o livro foi publicado em formato folhetim em A Nação, com tradução em prosa e verso de João Félix Pereira. A mais recente, por fim, é de 2002, feita em prosa por Costa Soares e Raul Mateus.

Dado este histórico de traduções e a importância da obra no cânone literário, a tradução de Daniel Jonas não deixa de se colocar como uma retradução, nos termos propostos por Antoine Berman (2007, p.97): “A retradução serve como original e contra as traduções existentes”. Tal sugestão nos parece pertinente, em especial porque foi justamente ao estudar a tradução em prosa do poema miltoniano feita por Chateaubriand (1837) que o crítico francês detalhou seu entendimento do conceito.

Berman qualifica a tradução de Chateaubriand como literal, destacando que a opção pela literalidade advém tanto da perspectiva adotada pelo tradutor como de certo componente intrínseco à estrutura da obra traduzida, i.e., a incorporação literal no poema de passagens da King James Bible – Authorized Version (p.91-92). Isto produz o interessante fenômeno de “uma tradução literal do que já é literal no original” que, por sua vez, toca no aspecto mais amplo das relações entre uma obra no “que ela contém em si de tradução e não-tradução” e a determinação das opções de “tradução interlingual” que ela possibilita (p.93).

Para Berman, o conceito de retradução implica o reconhecimento de dois espaços e tempos de tradução: “o das primeiras traduções e os das retraduções” (p.97). O tradutor que retraduz enfrenta, portanto, dois textos: o original e a primeira tradução. Como as “primeiras traduções não são (e não podem ser) as maiores” e, via de regra, não há “terceiras”, mas sempre “segundas”, é neste espaço dúplice que as melhores traduções se gestam e a “secundidade” se manifesta de forma mais plena (p.97).

Separadas por mais de 160 anos, a aproximação entre as traduções de Leitão e Jonas pode parecer desmedida, mas o exercício comparativo é bastante produtivo no que revela de alteridade tradutológica.  De partida, é preciso observar que, para Jonas, o verso de feição camoniana de Lima Leitão desfigurou em parte o poema, sendo possível detectar “trejeitos de ansiedade lusa” e um acréscimo desmesurado de versos (p.20). Além disso, sua versão não indica a numeração dos versos – o que inviabiliza a contagem dos excedentes – e apresenta uma divisão arbitrária no interior de cada canto. A tradução de Jonas, por sua vez, parece confrontar diretamente tal inflação ao optar por uma estratégia que busca operar “uma correspondência verso a verso, que a um verso inglês ligasse um torso informativo equivalente em português” (p.20). A edição bilíngue, com versos numerados e em bloco único por canto, permite apurar os resultados de tal proposta assim como ver em que medida a tradução de Jonas se aproxima da noção de tradução literal conceituada por Berman. Vejamos os versos de abertura no original e nas duas traduções:

John Milton:           
Of Man’s first disobedience, and the Fruit
Of that forbidden tree, whose mortal taste
Brought death into the world, and all our woe
With loss of Eden, till one greater man
Restore us, and regain the blissful seat
Sing heavenly Muse, that on the secret top

A. J. L. Leitão:       
Do homem primeiro canta, empírea Musa,
A rebeldia – e o fruto, que, vedado,
Com seu mortal sabor nos trouxe ao Mundo
A morte e todo o mal na perda do Éden,
Até que Homem maior pôde remir-nos
E a dita celestial dar-nos de novo.

Daniel Jonas:          
Da rebelia adâmica, e o fruto
Da árvore interdita, e mortal prova
Que ao mundo trouxe morte e toda a dor
Com a perda do Éden, ‘té que homem maior
Nos restaure, e o lugar feliz nos ganhe,
Canta celestial Musa, que no cume

Presente no sexto verso do original, o deslocamento da invocação à musa para o primeiro verso na tradução de Leitão indicia a tentativa de se aproximar das epopeias clássicas (Ilíada, Odisseia, Eneida). Com isso, nota-se um atraso geral na correspondência dos versos, sendo necessário um verso extra já no introito do poema. A tradução de Jonas, por sua vez, apresenta uma métrica regular (decassílabos heroicos brancos) que suscita um ritmo mais marcado e virgulado, com versos ritmicamente e até mesmo visualmente mais próximos do original do que o ritmo mais fluido e clássico de Leitão. Além disso, a escolha lexical de Jonas para o primeiro verso parece operar com a consciência etimológica do leitor (uma nota esclarece que ‘Adam’ significa ‘homem’ em hebraico) e valorizar a importância da língua hebraica para a composição do poema, algo que vai de encontro à sugestão de Berman sobre a influência das relações entre a língua do poema e outras que lhe são importantes na determinação das possibilidades tradutológicas (p.93).

Vejamos mais um exemplo, ainda no Canto I:

Milton:         
Regions of sorrow, doleful shades, where peace
And rest can never dwell, hope never comes
That comes to all; but torture without end   
(I, vv. 65-7)

Leitão:          
Destas regiões de dor, medonhas trevas
Onde o repouso e a paz morar não podem
Onde a esperança, que preside a tudo       
Nem sequer se lobriga: os desgraçados  
(2006: p.27, vv.85-88)

Jonas:             
Regiões de dor, sombrias, onde paz
E descanso não restam, nem esperança
Que a todos no fim resta; mas tortura 
(I, vv. 65-67)

Como no caso anterior, Leitão precisa de três versos e meio para traduzir os três versos de Milton. Aliás, para traduzir os primeiros 65 versos do poema, a versão de Leitão precisou de 85, e, para os 798 do Canto I, 1082, um exorbitante acréscimo de quase um terço do total. No caso de Jonas, se há inevitável perda de detalhes que o inglês formula em menos sílabas, sua versão ganha, em certos momentos, uma força sintética notável – como em “Lie thus astonished in the oblivious pool” / “No lago do letargo aturdidos” (I, v.266) e “Whose waves of torrent fire inflame with rage” / “Maré de labaredas irritáveis” (II, v.581) –, além de um ritmo mais próximo do original, como na tripartição do primeiro verso do exemplo. Chama a atenção no excerto o expediente utilizado para recuperar a sonoridade do original, em que o substantivo ‘rest’, traduzido por ‘descanço’, reaparece no verbo ‘restam’, que traduz ‘dwell’: “where Peace / And rest can never dwell” converte-se em “onde paz / E descanso não restam.

A tradução do famoso verso 621 do Canto II, composto apenas por monossílabos, é um caso interessante:

Milton:        
O`er many a frozen, many a fiery alp
Rocks, caves, lakes, fens, bogs, dens and shades of death
A universe of death, which God by curse 
(vv. 620-622)

Leitão:         
Alpes de cru regelo, Alpes de fogo,
Rochas, lagos, pauis, cavernas, matos,
Da negra Morte pavoroso mundo. 
(2006: p.90-1, vv.829-831)

Jonas:          
E férvidas montanhas, penhas, grutas
Lagos, charcos, pauis, antros e sombras
De morte universal, que Deus por praga 
(vv.620-622)

Apesar de escolhas lexicais distintas, o verso em si apresenta semelhanças, sobretudo pela posição do termo “pauis” em seu centro. A tradução do verso 620 por Leitão ilustra a correspondência que esperaríamos de Jonas; no entanto, nota-se que dos sete termos da enumeração original do v. 621, Leitão traduz apenas cinco, enquanto Jonas traduz todos (e em ordem), deslocando os dois primeiros para o verso anterior por questões métricas. Na verdade, Jonas prepara o movimento no verso 619, no qual já inclui a imagem da montanha congelada: “They passed, and many a region dolorous” / “Passaram, por regiões de dor, por gélidas” e, assim, a partir do verso 622 a correspondência “verso a verso” é retomada (trata-se, aliás, de um recurso frequente ao longo da tradução). Tendo adicionado mais de 2000 versos no decorrer de sua versão, é no mínimo curioso que Leitão opte simplesmente por omitir os outros dois termos de verso tão famoso.

Algumas soluções de Jonas, embora de grande efeito condensador, são vazadas em uma linguagem elevada e de acentuado senso etimológico que lembra, em certa medida, a de Odorico Mendes em suas traduções de Homero e Virgílio: “A thousand demigods on Golden seats” / “Mil demiurgos em sólios aurifúlgidos” (I, v.796). Vale dizer que tal opção parece ser uma escolha deliberada do tradutor, que poderia ter adotado uma solução mais prosaica para “Golden seats” como “assentos dourados” ou “cadeiras de ouro” (como Leitão) sem prejuízos métricos.

Para não cansar o leitor, deixemos um trecho como convite à leitura da excelente tradução de Jonas (agora por si só) que, ao se colocar como uma retradução e, portanto, confrontar as predecessoras, em especial a de Leitão, estimula a leitura comparativa – facilitada pela edição bilíngue – com muito proveito para o leitor. No caso do leitor brasileiro, tal confronto é ainda mais interessante e profícuo, uma vez que a popularidade da tradução de Leitão entre nós faz com que ela funcione como uma primeira tradução e, se como diz Berman, “a grande tradução é duplamente segunda: em relação ao original, em relação à primeira tradução” (p.97), acreditamos que a versão se Jonas se qualifica prontamente entre estas. Além disso, sua presença no excelente Anatomia do paraíso (2015), premiado romance de Beatriz Bracher publicado pela mesma editora e em data muito próxima à da tradução miltoniana, reforça a importância de (re)ler Milton, poeta por vezes difícil, mas detentor de momentos de indelével beleza, como os versos que seguem. Pertencentes ao Canto IX, eles tratam da veemente rejeição de Eva à oferta da serpente, com destaque para o eco entre ‘voz’ e ‘nós’ nos últimos versos que potencializa a recusa e, assim, adiciona tons trágicos à sua queda iminente. Boa leitura.

Serpente, vir p’ra mim foi infrutífero,
Se bem que o fruto aqui seja o excesso,
Do qual guarda a virtude e os seus créditos,
Admiráveis, se causam tais efeitos.
Porém nem toque ou prova desta árvore,
Deus o ordenou, deixando a ordem única
Filha de sua voz; no resto somos
Lei nós, nossa razão é nossa lei. 
(IX, vv. 646-654)


Referências:
BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andreia Guerini. Rio de Janeiro, 7Letras / PGET, 2007.
MILTON, John. Paraíso perdido. Tradução: Antônio José Lima Leitão (revisada e atualizada). São Paulo, Martin Claret, 2006.
MILTON, John. Paraíso perdido. Tradução de Daniel Jonas. Apresentação de Harold Bloom. Ilustrações de Gustav Doré. São Paulo: Editora 34, 2015.


Comentários

juliobarbosa disse…
Muito bom texto analítico. Se for ajudar a acrescentar a tua análise e, buscando também informar aos leitores em língua portuguesa, o Paraíso Pedido teve uma tradução em prosa, que ajuda bastante a compreensão do enredo e é pouco falada. Hoje em dia, a tradução de Conceição G. Sotto Maior, pela Edições de Ouro, que não tem data, mas que pertence a década de 1970-80 e que não é tão fácil de encontrar para comprar, mesmo em sebos, tem importância, por se tratar de uma única Tradução de brasileiro.
https://drive.google.com/file/d/1Q4G4CF8fOT8nZzu8eenbh1ldEka77vH3/view?usp=drivesdk

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