Das mentiras que contamos sobre as vidas que não vivemos


Por Guilherme Mazzafera

Ilustração: Aldo Sérgio


“Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a fatos e pessoas concretos, e sobre eles não emitem opinião.” É com esse instigante paradoxo que vários romances editados pela Companhia das Letras saúdam o leitor na página de créditos. Costumamos ver em tal asserção meramente um ato defensivo, capaz de desestimular qualquer processo futuro por parte de um ensandecido leitor que sinta sua dignidade e pessoa foram aviltadas pela obra em questão. Não se irrite, querido leitor. A obra é de mentirinha. Mas, dentro dela, pulsa uma mentira verdadeira.

O que significa ser real “apenas no universo da ficção”? Qual o escopo desse universo? Embora o senso comum facilmente tinja a ficção de tons depreciativos, associando-a ao lazer e, se tomada a sério, a um inevitável escapismo e, portanto, a uma recusa infantil de se engajar com o “mundo real” e com “as coisas da vida”, tal caracterização só reforça a dimensão claramente arbitrária de que há ficções preferíveis a outras. Hierarquias. Eu, por exemplo, acredito em Falstaff, Oblómov e Augusto Matraga. Mas conheço gente, inclusive, que acredita em livre mercado, biografias oficiais e autores ortônimos.

Nossa principal vantagem evolutiva como espécie, que nos conferiu o domínio sobre as demais, sugere Yuval Noah Harari em Sapiens: Uma breve história da humanidade, é justamente nossa capacidade imaginativa. Ela nos permite extravasar a mera troca de informações vitais como “além daquela colina há macieiras carregadas” ou “cuidado com o leão!” e conceber estórias, mythos, enredos que nos impelem a interagir com nossos semelhantes em prol de um objetivo comum. Em sentido bastante amplo, Harari sugere que tudo que escapa ao domínio da biologia e, portanto, do natural – e que entendemos como cultura, objeto da história –, configura-se como mito: religião, papel-moeda, nação, empresas de responsabilidade limitada, férias compulsórias no exterior, liberdade de escolha, voz interior. Em outras palavras, vivemos imersos em um mundo imaginado que nos foi tão bem vendido que ignoramos o caráter fictício que o sustenta.

O modo mais eficaz de fazer uma ficção prosperar consiste na articulação de dois elementos: a) negar seu estatuto ficcional; b) dourar a pílula. Nesse enlace, romances e projetos de lei não se diferenciam muito. A ideia por trás do “Escola sem partido”, apoiada, como não poderia deixar de ser, por partidos bastante específicos e vendida como isenção ideológica por meio de imprecações moralizantes, não é outra que a de uma substituição da ideologia supostamente vigente por outra. Mas como ideologia é palavrão, quem tem ideologia é sempre o outro. E o outro não presta.

As aventuras e desventuras da famosa Moll Flanders, ladra, prostituta, cinco vezes esposa e por fim penitente, não poderiam vir a público em 1722 sem afiançar sua veracidade empírica e a dimensão de exemplo negativo, que precisa ser evitado pela gente de bem, que, é claro, saberá apreciar “bem mais a moral que a fábula”. Além disso, Daniel Defoe, pretenso editor da história, diz tê-la adornado estilisticamente com uma linguagem “digna de ser lida”, cuidado necessário para que a leitura “não dê ensejo, sobretudo no caso de leitores de baixos instintos, a condutas contrárias à sua intenção.” Trazendo, entre outras, a lição de que o trabalho honesto liberta a mulher mais mesquinha de sua miséria, o romance, que se nega como tal, alija-se de qualquer censura e recomenda a si mesmo como bálsamo ao mundo malsão.

Se ideologia é palavrão, ficção também o é. Durante mais ou menos dois séculos e meio, o romance, forma predominante da arte narrativa que foi transplantada para o entretenimento televisivo e serial vigente hoje, precisou se bater continuamente, sob os mais diversos estratagemas, para ser levado a sério. E, em certa medida, ele só conquista tal galardão quando se oferece como mimese milimétrica do real, como se dá nos grandes realistas do XIX francês, sobretudo Flaubert. Parece sintomático que o percurso de aquisição de seriedade do romance se dê, de modo mais ou menos preciso, entre o leitor que perde muito do sal da moleira pela imersão em disparatados livros de cavalaria e que deseja impor sobre o mundo a realidade da ficção que lê (Dom Quixote, 1605/1615) e a história de uma leitora compulsiva inconformada com a vida reles que lhe foi destinada, rebelando-se vigorosamente contra a mesma (Madame Bovary, 1857). A despeito das inúmeras diferenças, a compulsão da leitura, os meandros do ficcional e a perigosa asserção de uma personalidade em construção que experimenta seus riscos irmanam-se nestas duas obras.

No belíssimo ensaio “A verdade das mentiras”, Mario Vargas Llosa observa com acuidade que a ficção sempre foi vista com desconfiança, a ponto dos inquisidores espanhóis impedirem o envio de obras deste tipo para toda a América espanhola para salvaguardar a “saúde espiritual” dos índios. Uma vez expostos a estes textos disparatados, que falam do que não existe, a contestação sobre a ideologia vigente – no caso, o cristianismo monárquico colonialista – seria inevitável.

Vargas Llosa, no entanto, vai mais fundo, desvelando nosso vício inerente: o anelo pela ficção tem origem em um descontentamento com os limites do vivido, que nos faz ansiar por destinos além do nosso. Em outras palavras, as ficções se escrevem e se leem “para que os seres humanos tenham as vidas que não se resignam a não ter”. Essa incapacidade de resignação, não é preciso dizer, carrega em si os frutos da sedição.

Mas se meu nome fosse legião, seria apenas uma rima, não uma ficção. Pois esta é impermanente, obrigando-nos a regressar à dita realidade com a consciência de que “somos menos do que sonhamos”. Mas a realidade, muitas vezes, é também sonho, ficção, mentira. Só que não da estirpe das mentiras que “os homens criam livremente”, e sim daquelas que coercitivamente nos são impostas. Daí ser a ficção veneno-remédio: aplaca “transitoriamente a insatisfação humana” e simultaneamente a açula, “esporeando os desejos e a imaginação”.

O acicate do desejo é sempre perigoso, instilador de ansiedade e, seguindo com Llosa, “um desajuste com a existência que pode tornar-se rebeldia, atitude indócil frente ao estabelecido”. Assim, ato contínuo à imposição de qualquer governo totalitário é o silenciamento de toda uma classe, a artística não oficialesca. E só a falta de qualquer sensibilidade artística permite a retomada de um bordão tão rubramente maculado como “ame-o ou deixe-o”. Tal como para os inquisidores espanhóis, o que esta em jogo nessa exumação é a necessidade vigorosa de negar a todos o refúgio íntimo do eu – o inscape de Hopkins – pela aceitação sem peias de uma realidade construída para dar certo. Mas não para nós.
Há muito nos adverte Antonio Candido que defender a ficção, a literatura como direito inalienável é tarefa mui urgente. Seguindo a trilha, Llosa diz que jogar “com as mentiras que eles mesmos fabricam sob o império de seus demônios pessoais” permite aos autores a construção de um “espaço próprio de liberdade” irrefreável ao desejo de dominação do outro. Esta cidadela indevassável, no entanto, não se constitui em ultimado baluarte narcísico, pois sua função é, justamente, propiciar o recuo necessário para que possamos sair de nós mesmos e, assim, pela exposição aos “riscos da liberdade”, experimentarmos, mesmo que ilusoriamente, “uma maneira de ser menos escravo”.

Toda ficção, se bem lograda pela livre expressão antidogmática, é subversão. É grito profundo, lancinante, em face de um mundo e de uma vida que não nos bastam. De uma vida que é, também, mentira. Mentira cadeeira, alegórica, que não subverte pois submete. A esse gesto opressivo é preciso responder pela fé. Pela fé poética que nos impele à “voluntária suspensão da descrença” pensada por Coleridge, mas, sobretudo –retomando outra formulação do poeta do Velho Marinheiro –, pela fé poética que nos permite, como leitores, tornarmo-nos “por algum tempo [...] seres criativos em atividade”. E, ao escritor que nos converte em partícipes de suas mentiras verdadeiras, que nos faz refletir sobre as vidas que não vivemos, só podemos chamá-lo de amigo.

Sugestões de leitura:
CANDIDO, Antonio. "O direito à literatura". In: Vários Escritos. Ouro sobre Azul, 2011.
COLERIDGE, Samuel Taylor. Major Works. Oxford University Press, 2016.
DEFOE, Daniel. Moll Flanders. Cosacnaify, 2014.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. LP&M, 2017
LLOSA, Mario Vargas. La verdade de las mentiras: ensayos sobre la novela moderna. Alfaguara, 2002.



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