A literatura nazista na América, de Roberto Bolaño


Por Pedro Fernandes



As discussões crítico-teóricas sobre o que determinam as textualidades para o literário costumam citar a intertextualidade e a autorreflexão como dois elementos fundamentalmente recorrentes; isto é, pensando que a principal tarefa dos escritores têm sido a de renovação – e essa quase sempre se determina pela ruptura com forças já estabelecidas – é que se acredita que todo texto literário decorre do trabalho de revisão e da reflexão sobre esse trabalho. É evidente que, como todas as definições sobre o literário, essa não é (ou pelo menos não funciona como) uma verdade universal e absoluta. E sua recorrência aqui se apresenta porque A literatura nazista na América se filia a uma tradição que permitiu o pensamento crítico-teórico alcançar essa compreensão intertextual e autorreflexiva sobre a literatura. Isso porque a dicção do romance de Roberto Bolaño se constitui de uma estreita relação com o sistema literário e, por sua vez, com a materialidade que o determina, ao passo que pensa suas próprias fronteiras e estratégias de criação e de formação.

Não é, portanto, um livro inovador no limite de fundar sozinho uma tradição criativa; basta recordarmos que antes da aparição do romance do escritor chileno, em 1996, mais de seis décadas antes, Jorge Luis Borges – sem dúvidas, o mestre no trabalho exclusivamente com os interiores do universo literário, fazendo-o autossuficiente e capaz de engendrar outros universos –, havia publicado História universal da infâmia, livro do qual parece derivar, se pensarmos em contextos de criação, o livro motivo destes comentários. Estamos diante dois livros que são livre-experimentação com a ficção. Naquele, o escritor argentino remodela narrativas e ficcionaliza biografias imaginárias, num trabalho de renovação acerca do próprio caráter da leitura, que deixa de ser um exercício de recepção passiva para ser criação, reinvenção e renovação. Roberto Bolaño segue muito de perto a lição do mestre.

A literatura nazista na América é um romance híbrido. Sua unidade não é determinada por um elo narrativo, isto é, por um conjunto de ações e situações que formam uma sequência de acontecimentos, mas pelo princípio temático que modelam os textos aí reunidos. As treze partes são formadas por perfis biográficos que revelam sobre a vida e a obra de um grupo diverso de escritores conservadores da América Latina. O resultado é um panorama que transita entre a ficção e a história, alinhavadas como pertença de um todo dialético, capaz de criticar o establishment literário, propor alternativas e ensaiar um modelo de universo criativo que responde pelo próprio fazer do escritor.

Isso permite que o livro seja lido de maneira variada: uma enciclopédia de escritores ficcionais; um livro-criptograma para o amplo universo literário de Roberto Bolaño; um conjunto de ideias incapazes de vingar, retrabalhadas pelo escritor até a constituição de uma forma realizada; uma obra que quis ampliar um gênero não-muito regular na literatura depois das destituições entre literário e não-literário, quando textos como a enciclopédia passam a figurar apenas como um livro de consulta sobre verdades históricas; uma experiência sobre como se determinam os cânones literários. Cada uma dessas possibilidades, nota-se, não é fixa, mas problematizadora das noções para as quais remete o leitor.

A noção de enciclopédia, por exemplo, é insuficiente tendo em conta que nem todas a biografias estão completas. Em muitas faltam dados fundamentais sobre a vida dos biografados; noutras, o texto remete mais para uma nota informativa que para um verbete; noutras ainda, se incorporam diálogos, revisitando o tipo narrativo recorrente no literário, o que, leva o leitor a lembrar que se encontra diante de um protótipo de conto ou crônica informativa. Todas essas infidelidades ao enciclopédico sublinham não apenas a falibilidade do modelo como se estabelece uma provocação ao poder de verdade assumido por ele. Reitera-se um princípio que já no tempo de Roberto Bolaño começava a fazer a história: toda narrativa é produto de um ponto de vista e este é variável quantas vezes for variável quem conte. Aqui, o que mais chama atenção do leitor é força irônica com que este narrador, situado num tempo futuro e indeterminado, lida com as informações que compila ao compreender o quanto estas não dispõem de quase nada na participação das criações de seus criadores. Uma celebração à morte do autor? Nem tanto. Mas, um trabalho de retaliação contra um princípio acadêmico inclusive que situa na biografia o fim do literário, negando-se, muitas vezes o trabalho de criação pela determinação fortuita entre o vivido e o ficcionado.

Nesse território da ironia parece recair ainda uma crítica mordaz de Roberto Bolaño contra um modelo que vigorou muito ativamente na América Latina – e do qual foi, durante largo tempo sua vítima. E aqui destacamos uma das muitas relações que este livro, apesar de integralmente situado no universo ficcional, mantém com o exterior. É claro que não se lê em parte alguma dessa antologia vitimizações, mas se percebe os ecos sobre uma cobrança pelo engajamento político do escritor que nunca veio, ou pelo menos não da maneira como foi assumido por outros escritores do seu continente. Durante muito tempo parece que existiu na literatura latino-americana uma cobrança que dizia indiretamente – e às vezes diretamente – que todo bom escritor devia se filiar a uma perspectiva ideológica à esquerda e aqueles que não demonstraram isso publicamente padeceram de certo desprezo pelo cânone. Assim, o pesado termo que designaria um tipo de literatura, nazista, é parte significativa no trabalho da ironia que enforma este livro. Chamará atenção do leitor que, os tais escritores são meramente simpatizantes do nazismo, mas pouco disso influencia suas criações e mesmo suas vidas, integralmente marcadas por comportamentos ilícitos às vistas de uma direita sectária. A simpatia – às vezes nem declarada, apenas suposta – só terá contribuído para o fim irrisório desses criadores e de suas criações. Não é o caso de dizer que a ideologia é mera projeção sem vigor no literário, mas que os julgamentos deterministas nunca estarão integralmente alinhados com seus princípios visto que os sujeitos humanos se realizam na-pela contradição.



A determinação das fronteiras dessa antologia de uma literatura fictícia garante, assim, outra crítica vivaz de A literatura nazista na América: a partir da compreensão de como se constituem os sistemas literários, Roberto Bolaño renova a lição segundo a qual todo cânone é produto de escolhas determinadas por modelos ideológicos ou percepções específicas sobre o literário. Não se trata de uma negação do cânone, afinal este narrador sabe que este não morrerá; é uma sombra perene e múltipla. A morte do cânone pode significar a impossibilidade de existência da própria ordem de criação e dos limites de conhecimento sobre o literário, visto que, como todos os saberes, este também denota uma limitação. O que parece pertinente aqui é uma compreensão sobre a mobilidade desse panteão cuja ordem tem se mantido, no contexto específico a que se refere, por certos dogmatismos crítico-teóricos. Quer dizer, não é este um romance que proponha uma síntese possível entre o impasse produzido pela crítica entre um viva-o-cânone ou um morte-ao-cânone. Sim, todo bom romance parece ser aquele que ao invés de nos oferecer respostas, melhor nos coloque diante novas e inquietantes perguntas.

Depois da publicação deste livro no Brasil, um dos poucos para formar a presença integral de Roberto Bolaño nessas terras de Rubem Fonseca (para citar o nome de um escritor nosso que é obsessão de uma das criações presentes no romance), se disse que este livro é uma reflexão acerca do mal e da violência na-pela literatura. Fora as ambições literárias, algumas totalmente descompromissadas de interesse maior, as simpatias de gosto duvidoso pela ideologia nazista, estas muitas vezes construídas por uma suposição alheia, não é possível concordar com essa leitura. É verdade que a tarefa do escritor chileno é a de compreender que a literatura, como quaisquer das criações humanas, não está isenta da tarefa de pactuação com a ideologia da violência e do mal, a outra face cativa sempre presente em todos nós. Mas, seu trabalho é muito mais de interesse sobre como os modelos literários e os cânones são formados. Um nazismo do literário. Isto é, há muito mais de literário que de político-filosófico, embora fique indiretamente dito da impossibilidade de destituir a literatura das forças ideológico-políticas que enformam as realidades comuns.

Nesse sentido, é sintomático o que pensa, por exemplo, Max Mirebalais, quem só compreende duas formas de se destacar socialmente, pela violência física e pela “literatura, que é uma forma de violência dissimulada, confere respeitabilidade e, em certos países jovens e sensíveis, é um dos disfarces da ascensão social”. O tom sarcástico do narrador na proposição do ponto de vista desse escritor parece fundamentar perfeitamente o que dissemos e ampliar a compreensão sobre o papel da violência simbólica e seu imperativo na dinâmica das sociedades – sobretudo daquelas analfabetas, em que a letra designa uma im-posição de poder. Esse excerto é significativo porque mostra uma denúncia, sem qualquer pudor, sobre o quanto os sistemas literários da América Latina (os outras também, mas este especificamente) são formados por este tipo de ambição de outsider das letras. Mostra-se, assim, como o literário pode se comportar como um tipo de fascismo.

Outro detalhe interessante no perfil de Max Mirebalais e que em muito se aproxima das definições apresentadas no início destas notas (o que também finda por ser uma espécie de chave de acesso ao próprio romance de Roberto Bolaño) é o fato desse escritor fictício construir sua carreira à base da mera apropriação indevida de obras de escritores remotos e desconhecidos. Profundo reconhecedor de talentos alheios e capaz de construir de maneira imperceptível sua farsa, o trabalho de apropriação de Max se inicia com a celeuma iniciante de ser o autor do alheio. A partir da máxima fale-mal-mas-fale-de-mim, o escritor finda por revelar, quando se torna um perito da falsificação, que a grandiosidade do escritor não repousa na invenção e sim na capacidade de manipulação coerente da literatura alheia. O que, em parte desde o alvorecer da modernidade, se deixou de ser uma atividade decorrente da experiência histórica e subjetiva para tomar como matéria propulsora a experiência leitora. Quer dizer, a inventividade é a capacidade de manipulação do próprio literário; fazer o alheio tomar a proporção do novo e, logo, o próprio de quem o manipula. Pura maldade, apropriação indevida? Preferiria não. Contínua renovação do que examinaram os gregos desde o que conceituaram como mimesis.

O que mais chama atenção neste romance é a força criativa de Roberto Bolaño. Cada escritor apresentado neste catálogo poderia se constituir num nome próprio que à maneira da heteronímia de Fernando Pessoa seria capaz de propor uma literatura própria e cada obra se mostra executável – e muitas delas, aliás, terá encontrado lugar na ficção de Bolaño. A criatividade não é, portanto, apenas inventar nomes próprios ou universos literários, mas torná-los presenças possíveis, capazes de não nos demover da verdade sobre suas existências. E isso só possível numa mente prolífica e incapaz de se resolver apenas no universo da sua ficção em si mas das aberturas para outras ficções. Assim, a literatura pode até funcionar como um território cerrado em seus limites, mas estará sempre em abertura porque como todo universo é contínua expansão. E, Roberto Bolaño, bem sabia disso. Tanto que quis prová-lo pelos limites inalcançáveis da ficção.

Comentários

Anônimo disse…
Excelente artigo! Parabéns

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #613

Boletim Letras 360º #612

Boletim Letras 360º #602

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

O centauro no jardim, de Moacyr Scliar