Uma distopia e uma vida nua para chamarmos de nossa
Por Rafael Kafka
Stuart Pearson Wright |
Há dois
livros que vejo sendo citados com relativa frequência para falar da atual
conjuntura da pandemia de Covid-19. A peste, de Albert Camus, talvez seja a
rememoração mais realista por abordar um clima existencial de confinamento o
qual lembra demais o que atualmente vivemos. Ensaio sobre a cegueira, de José
Saramago, já cria uma antítese interessante sobre como a perda da visão permite
uma noção mais precisa do que é o ser humano, do quanto de barbárie há na leve
superfície de civilização que temos a nosso dispor.
O primeiro
me faz pensar mais na questão de algo que comecei a ver descrito no conceito de
vida nua, de Giorgio Agamben. Longe de comparar o que nós, seres privilegiados
que discutimos sobre a felicidade nos tempos pós-pandemia em nossas lives
diárias, com o que foi vivido em campos de concentração como os nazistas, penso
que de certa forma há uma analogia com essa vida crua que se mostra diariamente
a nós e da qual não podemos fugir. Pouco antes da epidemia explodir, eu sentia
que não conseguia acompanhar todos os fatos importantes do âmbito
sociopolítico, bem como o rol imenso e infinito à vista de análises sobre eles.
Com o Corona vírus, essa sensação foi substituída por uma incapacidade de fugir
do tema.
Aonde vou, o
vírus se encontra. Nas notícias de mortes, de aumentos da curva de
contaminação, de casos recuperados, de quedas em indicadores financeiros, na
impossibilidade de sair para pegar sol, na necessidade de usar máscara até para
correr (se não a ansiedade me domina), na saudade dos meus alunos, na chuva que
não posso sentir em meu corpo, no calor que não oprime mais minha pele. A vida
se expande de diante de mim como uma verdade da qual não posso fugir. Minha
temporalidade não é mais minha, meu ser parece não ter mais o meu controle e
para onde olho “a peste se encontra”.
Simone de
Beauvoir criticou o livro de Camus por achar que a analogia com uma doença não
era a melhor para se lidar com o terror do totalitarismo nazista. Dentro,
porém, do pensamento inacabado de Camus, morto de maneira tão fatal, fica
evidente que a temporalidade suspensa de seu livro não nega o engajamento.
Rieux, mesmo exausto e desesperançado, trata os doentes e quando a doença
começa a ir embora, por conta própria, fica evidente que ela pode voltar a
qualquer momento. Essa consciência da qual não conseguimos fugir exige o
engajamento, mesmo que na forma de cuidado paliativo, pois não há como fugir de
nossa condição, de nossos atos volitivos que confirmam nossa liberdade. Parados
em desespero e em posição fetal ainda estamos em ação e isso não temos como
anular em nossas vidas.
Nesse
sentido, a ida da doença não é um fato que anula a luta e o esforço dos
cidadãos contra ela. Menos vidas se perderam de repente, novos estudos serão
feitos sobre, mais cuidados serão tomados e o sinal de alerta contra novas
ameaças estará sempre ligado. O engajamento aqui é justamente saber é preciso
fazer algo para não se entregar ao duplo desespero de ser dominado e fingir que
não se é.
A obra de
Camus ajuda a entender um pouco desse desespero que faz o choro, a ansiedade, a
angústia e outras sensações ruins serem quase reações fisiológicas do corpo
tomado pela alma atormentada. Alguns procuram se engajar compartilhando informações,
críticas, estudos e cuidados diante do atual contexto de pandemia. Outros e
apegam ao negacionismo mítico para ter uma sensação de plenitude, para
entenderem de forma confortável o que se vive e assim terem menos desespero
diante do caos. A doença não é tão séria assim e ao mesmo tempo ela tem uma
cura milagrosa, uma forma curiosa do duplipensar extremista essa, em que o mal
concomitantemente não existe e tem o remédio salvador.
Aqui a
comparação com o livro de Saramago fica mais evidente. Assim como no romance de
Camus a cegueira vem e vai sem explicação alguma. Há quem procure nela
simbolismos que remetem à caverna de Platão, mas eu prefiro ver a cegueira como
um fato em si, sem analogia a nada e a tudo ao mesmo tempo. A cegueira é
cegueira em si e ao mesmo tempo todo e qualquer fato que um dia mostre que o nosso
normal não é tão normal assim. Muitos de nós várias vezes nesse período de
isolamento social pensamos em quando as nossas vidas voltarão ao normal e nos
deparamos com a dureza de frases que dizem que para o normal de antigamente não
há mais volta. Todavia, se pensarmos bem no que seria esse normal, ele não
existiu jamais.
Lembro de
minha adolescência ser bem alienada ao jornalismo em geral, apesar de ser um
grande leitor desde então. A minha atenção se voltava para a mídia quando todo
mundo estava comentando um fato bombástico, como algum assassinato brutal, e
ainda assim por curto espaço de tempo. Tenho minhas explicações psicológicas
pessoais para isso, as quais me fazem pensar que minha consciência naquele
tempo bloqueava e filtrava muito conteúdo violento por si só para eu continuar
vivendo bem. O fato é que depois de dias ou semanas o acontecimento deixava de
ser o centro dos comentários apaixonados e deixava seu lugar para outro evento chocante,
algo que hoje penso ser diferente no ritmo, pois o sensacionalismo na forma das
fake news virou quase um substrato social, tornando-se combustível constante
desses espíritos passionais que precisam a todo tempo tecer opiniões vociferantes e
calorosas sobre tudo o que vivem e sentem.
Esse contato
constante com a realidade por meio de leituras voltadas para o culto e
banalização da morte gera um êxtase curioso, uma forma de existir em que o
sujeito vive uma sensação de normalidade em que o absurdo não é sentido, não
obstante as leituras geralmente serem carregadas de sentimentos odiosos e a
cena do almoço em família com o programa policial sendo a trilha ser algo muito
comum no cotidiano brasileiro. O êxtase informativo, como diria Walter Benjamin
em seu ensaio “O Narrador”, tão bem usado por Maria Rita Kehl em seu O tempo e
o cão, não dá tempo para a consciência imiscuir-se na realidade e pensá-la. Os
fatos passam de modo meramente impressionista, sem causar uma maior reflexão e
quando um fato como a Covid-19 não consegue ser substituído por outro a vida
nua assume sua forma mais grotesca.
Nesse
momento, o engajamento pode vir na forma de negacionismo e essa conduta não se
satisfaz em afirmar suas verdades absurdas que disfarçam o absurdo. É preciso o
silenciamento do outro, a cura mágica, a agressão contra profissionais da saúde
que homenageiam colegas mortos, os ataques aos especialistas que estudam a
sério novos fatos sobre o vírus. Assim como os homens cegos de Saramago que
estupravam mulheres como forma de reafirmar o seu poder em uma nova ordem
social, os nossos negacionistas não querem aceitar que vivem uma nova realidade
e essa não-aceitação faz com que toda a sua violência venha à tona. Eles podem
ser robôs fakes ou mesmo robôs de carne, com respostas prontas para serem
coladas quando necessário, num reflexo condicionado que nega a reflexão em si,
que nega o perigo fisiológico e social da doença. Quanto mais essas pessoas
negam os cuidados paliativos da doença, mais as consequências perduram – os danos
econômicos causados pelo desrespeito ao isolamento social são cada vez mais
evidentes. A sua tentativa de racionalizar a situação é bizarra, tosca,
agressiva, doentia e fragmentada, pois o racionalismo não é prática sua e seus
discursos todos são baseados no ressentimento de quem vive o êxtase
informativo, não reflete sobre o que lê e diante de uma ameaça que não sai da
consciência esses sujeitos só sabem esbravejar e gritar, criando novos totens e
novos ídolos, colocando-se e colocando aos outros em risco com o único intuito
de provar seu destemor, uma forma cega e desesperada de provar que estão
certos.
A vista
enevoada pelo negacionismo revela mais de sua essência formada por valores
ressentidos e cheios de preconceitos sociais e senso comum. O ressentimento
aqui é causado por diversos fatores, mas o principal, penso, é justamente o
encontro com o absurdo do qual eles sempre tentam fugir e que agora não sai de
sua frente. A violência é sua forma de afirmar força e coragem e disfarçar essa
visão incômoda. O que a literatura ensina em sua obrigação de nada ensinar de
maneira didática é que sempre precisamos estar acordados, porque novas pestes
virão. Muitas vezes, ter paciência e seguir a passos lentos é o
único engajamento solidário que temos a nosso dispor. Mas é melhor esse olhar
resoluto e focado na dialética temporal do que a violência que imola a si
própria e ao outro enquanto ruma para o próprio fim patético, levando tudo e
todos, infelizmente, juntos.
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