As ruínas em movimento: As Naus e o espólio de uma utopia

Por André Cupone Gatti


António Lobo Antunes. Foto: Leonardo Cendamo.


 
I.
O imperialismo português dos séculos XIX e XX foi alimentado por certa ideia ufanista de um Portugal áureo, por uma dimensão simbólica de um império central, herdeiro ininterrupto do tempo das grandes navegações. Os séculos XV e XVI marcaram a nação lusitana com a signo do esplendor e da riqueza; essa marca, perpetuada séculos afora, ao mesmo tempo mostrou-se maldição e benesse: benesse porque alçou o imaginário de um Portugal grandioso, maldição porque teimou em encobrir a realidade das subsequentes épocas com a máscara mitológica dos feitos quinhentistas. Salazar, em sua ditadura, soube aproveitar e reaproveitar essa coleção de lendas, valendo-se da utopia para afirmar “grandes certezas” da nação e tingir de glória os seus desmandos, dissuadindo as atenções da realidade e prolongando a imagem áurea do seu despotismo.
 
Não seria eterna a ilusão. A partir dos anos 1950, algumas contestações surgiriam por parte da imprensa e das artes, que cada vez mais conquistavam o seu lugar público. Aos poucos, por de trás da ilusão, começava aparecer a realidade, estampada no insucesso das guerras coloniais, na falta de perspectivas sociais e no sentimento, cada vez mais generalizado, do fim de um império. Esse crepúsculo atingiu o seu ápice com a independência das colônias africanas e com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. A nova realidade — enfim, pelo menos em parte, desvencilhada de pretextos quiméricos — inventava um novo Portugal, mais consciente da sua história e talvez mais crítico em relação ao seu tempo.
 
Com o fim das colônias portuguesas na África, retornaram à Portugal alguns milhares de cidadãos portugueses (embora muitos tivessem nascido fora do país) e enfrentaram nada mais que incontáveis dificuldades, tanto para se restabelecer, como para encontrar amparo em meio ao caos. Os cerca de 600 mil portugueses que aportaram, tinham deixado quase tudo para trás e buscavam agora um recomeço para as suas vidas, à semelhança do recomeço no qual se empenhava a nação portuguesa após uma década de turbulentas mudanças. Esses desventurados, que ficaram conhecidos como “retornados”, eram o símbolo do fracasso das ilusões de um povo, mas também, do começo de um olhar desmistificador da realidade.
 
Entre resistência e discriminação, os retornados traduziam os ânimos de um país. A literatura não desviou a atenção desse singular acontecimento, como não desviou a atenção de toda a ruína gradual dos sonhos portugueses. O “epitáfio que a literatura foi escrevendo a este império mais imaginário que real”, como diz Margarida Calafate Ribeiro no seu livro Uma história de regressos, algumas vezes fez dos retornados, os protagonistas de suas tramas, como é o caso do romance As naus, de António Lobo Antunes. Mas Antunes faz um deslocamento prodigioso e inventivo ao vestir de retornados figuras célebres do Portugal dos séculos XV e XVI, como Camões e Vasco da Gama. Aproximando e discutindo o passado e o presente, o imaginário e o real, As naus, objeto de análise deste texto, cria imagens pungentes sobre a dessacralização da história de um país.
 
II.
As personagens errantes de As naus são ao mesmo tempo homens comuns e célebres figuras da história portuguesa. Inseridos na segunda metade do século XX, mas trazendo em si a aura grandiosa das grandes navegações do século XVI, esses desventurados retornam a um Portugal já modificado pelo tempo, irreconhecível, caótico e algo melancólico. Desiludidos da fama que possuem no imaginário português, Diogo Cão, Vasco da Gama, Camões, e todos os outros, são como que desnudados pela escrita irônica e por vezes cômica de António Lobo Antunes. Trazem a celebridade no nome, mas é na vida material que conhecemos seus vícios, seus sonhos e suas desgraças. Propondo desmistificar tanto essas personagens quanto a época em que viveram e os tempos pós-25 de Abril de 1974, Antunes tece o passado ao presente, fazendo com que um aponte as falhas do outro, e lança um olhar crítico à sociedade portuguesa dos anos 1970 e 1980.
 
Não se pode negar que As naus é também uma reflexão sobre a memória de uma nação à medida que conclama o passado oficial e o não-oficial — ou seja, aquele construído por uma necessidade patriótica e aquele factual — para narrarem uma mesma história. Como toda memória é uma mistura de fatos e ficções, o que se retrata no presente mediado pela memória é ambíguo e polissêmico, tal qual as personagens, que não são uma coisa só, mas várias coisas: retornados, mendigos, reis, navegadores, loucos; nem inteiramente trágicos, nem inteiramente cômicos, divididos entre o exagero ficcional e a objetividade documental. O jogo plurívoco de Antunes reelabora o passado e o presente sem nunca deixar de desmistificá-los, seja pela ironia, pelo sarcasmo ou pela paródia. A personagem Diogo Cão, ao tomar contato com as figuras históricas do seu tempo, não deixa de expressar e replicar algo do procedimento de Antunes:
 
“A pouco e pouco as personagens sem contorno certo que o professor da escola da Câmara, de manga apoiada na calha da esponja, descrevia debaixo da boca de peixe sem fôlego do crucifixo de cobre, aproximavam-se, vivas, iguaizinhas aos retratos trágicos das suas estátuas tumulares, e conversavam familiarmente comigo na ironia das cantigas de escárnio, quer na messe de oficiais de Lagos, a jogarem poker de dados diante de um copo de uísque, de regresso de muitos escorbutos e de amarguras sem conta, quer nos serões da corte [...]”. (ANTUNES, 2011, p. 159)
 
As personagens, como se saltassem dos retratos para a realidade, perdem a segurança e a aura mítica das imagens para ganhar a vulnerabilidade da vida carnal. Antunes não livra cada passagem de um tom tragicômico e muitas vezes burlesco, a reafirmar esses singulares retornados como tristes figuras de pantomima que, além do picaresco, encarnam, criticamente, o desencanto. São, antes de tudo, expressões da resistência: esmagados entre um passado glorioso que não mais existe e uma realidade social intransigente, equilibram delírio e lucidez contra a fragmentação de suas identidades.
 
O fragmento, aliás, é uma ideia importante no livro, tanto temática quanto formalmente. Os episódios são interrompidos e retomados em alternância com outros, misturando e relativizando, assim, as desventuras de cada herói lusitano. As vozes narrativas, também alternantes, revezam os turnos subitamente como que atropeladas, construindo uma continuidade entre as narrações em terceira e primeira pessoa, enriquecendo o olhar crítico e expandindo as possibilidades interpretativas. 



 
III.
A permutação entre “fragmento” e “ruína” não é só válida, como pertinente para analisar As naus. A ideia da ruína como aquilo que se rende ao tempo e ao curso da história e, ao mesmo tempo, resiste na porção mínima que lhe sobra, pode ser transposta para as personagens (re)criadas por Antunes. Como ruínas que se movem, as figuras históricas — deformadas pelo tempo presente, mas marcadas pela força simbólica de seus nomes — compõem a paisagem desiludida e desalinhada de um Portugal após o fim da colonização na África. Formalmente, foi conveniente a Antunes a “imitação das ruínas” para firmar sua narração, que pode usar palavras como “Lixboa” e “Reyno”, emulando a escrita quinhentista, e ser experimental e moderna, tanto na não-linearidade do tempo cronológico como na alternância das vozes narrativas. Esse cruzamento de passado e presente, ao receber o olhar crítico de António Lobo Antunes, cria imagens, formas e personagens que incorporam as principais características da ruína: resistência e rendição.
 
Esse mundo em crescente degradação que avança pelas páginas de As naus, tende a chegar, e realmente chega, ao descontrole, à desilusão sem volta. Esse ponto de chegada, já insinuado pelo rumo delirante dos desventurados, é algumas vezes antecipado por casos episódicos, tal como a situação de Camões ao transportar sem rumo o cadáver do pai pelos caminhos de Lisboa. O corpo do patriarca, assim como a feição objetiva de uma nação portuguesa, se consome em lenta e desenfreada decomposição. Camões levaria debaixo dos braços algo como uma certeza que se desfaz, um prenúncio do que aconteceria com ele mesmo e com todas as outras personagens do livro. O cadáver, em resolução cômica, acaba por virar um líquido pestilento reservado em uma pequena garrafa de vidro. Esse episódio liga-se a outro, no qual conhecemos a vida de Garcia da Orta, outrora médico, pioneiro em botânica e farmacologia, agora um sujeito excêntrico, obcecado pelas ondas de rádio e pelos monstruosos vegetais que cria em casa. Também nesse episódio encontramos os signos do caos e da ruína a prenunciarem o fecho do romance e a traduzirem a situação de Portugal durante os anos 70 e 80.
 
“[...] não obstante [...] a amazónia medicinal do apartamento não cessar de crescer num ritmo de delírio, e os impedir de regressar mediante uma barragem de papoilas que rilhavam no patamar a monstruosidade dos dentes.” (ANTUNES, 2011, p. 121)
 
“[...] enquanto a essa hora, no último piso da Rua do Norte, as ervas contra a diabetes tomavam conta do apartamento e principiavam a avançar pelas escadas na ideia de se apoderarem do basset e da colecção de carochas do vizinho de baixo [...]” (ANTUNES, 2011, p. 122)
 
É inevitável dizer que nos trechos selecionados acima, prevalece um tom pilhérico, mas também deveria ser inevitável perceber que a imagem criada ultrapassa a função cômica para alcançar uma espécie de síntese daquilo que condiciona as personagens, a representação de um país, e do próprio texto literário. O descontrole de monstruosas ervas que crescem sem rumo, tem a mesma força da realidade que cresce por sobre as ruínas do passado, ou do desencanto por sobre o malfadado idealismo.
 
O texto de Antunes é um delírio sobre delirantes. Não digo “delírio” como sinônimo de insensatez, irrelevância, devaneio, mas à semelhança de uma “transgressão criativa”, à medida que se constrói uma sequência aparentemente desorientada de desventuras hiperbólicas para, em realidade, se investigar a situação social de um país. Em relação às personagens de As naus, o delírio que as invade tem o mesmo sentido de “alucinação”. Assim como, por tanto tempo, idealizou-se os feitos portugueses e a magnitude de um império, agora essas idealizações se intensificam ao ponto da loucura.
 
O delírio dos desventurados, no entanto, é uma resistência da identidade de cada um deles e, por conseguinte — já que são imensamente célebres e representativos — da identidade da dimensão simbólica portuguesa. Os retornados — resistentes porque confiantes no amparo do grandioso Portugal, e delirantes pelo mesmo motivo — são a confirmação do fim de uma utopia, que prometeu muito mais do que podia cumprir, e gerou ilusões e iludidos ao fazer da realidade objetiva um capítulo do infalível triunfo lusitano. António Lobo Antunes se empenha para, a partir dessas figuras, desmistificar o passado e o presente.
 
IV.
As mesmas naus que fizeram a fama de um século promissor — o século XVI —, levando e trazendo sonhos da expansão do império, aqui, no romance em questão, trazem o espólio de uma utopia, a herança de um Portugal, antes imaginário, agora real. Essa herança, que são os retornados, traz a súbita consciência da realidade e do quanto se glorificou a imagem de um país que só existia nos elogiosos retratos da história.
 
A ficção e os fatos históricos, mesmo que misturados e confundidos, são iluminados pela melancólica presença desses desafortunados que, por sua vez, não deixam de ser ficção — ao encarnarem a persona de míticas figuras da história — e fato histórico — ao viverem as vicissitudes reais dos retornados e mesmo ao desmentirem o heroísmo dos navegadores, poetas e nobres do século XVI.
 
A herança lusitana, quando recebida objetiva e criticamente, como a recebe Antunes no seu livro, ilumina aquela que a concedeu (Portugal) e aqueles que a receberam (os portugueses). Das ilusões, herda-se novas ilusões, como aconteceu século após século com a fabulação dos tempos passados, e da realidade, herda-se o olhar crítico sobre situações complexas. Sem excluir uma ou outra dessas duas heranças, Antunes mostra a dificuldade que há em separá-las. Já não se pode pensar o seu país sem a dimensão ficcional, muito menos se deve deixar que essa dimensão oculte a realidade.
 
A imagem das ruínas, na qual insisto, é nada mais que a materialização da memória, resistente, obstinada e incompleta de tal maneira que se pode prever, ou melhor, fantasiar aquilo que um dia constituiu o todo. Assim também pode-se dizer que as personagens de As naus, ruínas em movimento, são, consequentemente, materialização da memória. Ao mesmo tempo ruínas do quinhentismo e do insucesso colonialista, esses retornados, tragicômicas figuras, são a memória crítica de duas épocas tão distantes no tempo, mas suficientemente decisivas para serem aproximadas.
 
O delírio alimentado pela identidade ambígua das personagens não poderia levá-los a outro destino senão ao manicômio, ponto final de suas desventuras e da narrativa romanesca. Advertindo aqueles que creem na utopia portuguesa, António Lobo Antunes admite, de forma latente, que a realidade pode ser tão delirante quanto um sonho e que o delírio pode ser tão verossímil e sedutor quanto um fato coerente do dia a dia. A loucura de Vasco da Gama, Diogo Cão, Camões, e de todos os outros, está em assumir que eles são carne e consciência de figuras que nunca passaram de ideias elevadas e abstratas. Esse jogo duplo que humaniza figuras célebres e, ao mesmo tempo, as condena sob o peso de um nome que traz consigo tradições e lendas, é a tensão central de As naus, ao repensar a história de uma nação, não somente a despindo de mitos, mas utilizando muitos deles para apontar, com ironia, as fraquezas e as ilusões de um povo.
 
Bibliografia
 
ANTUNES, António Lobo. As naus. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Porto: Edições Afrontamento, 2004.
TAVARES, Enéias Farias. O desencanto histórico e religioso no romance As naus, de Antonio Lobo Antunes. Nau Literária, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p.1-11, jul. 2009.
 
 

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