A raiz das metamorfoses

Por Marcelo Moraes Caetano




O estudo do sânscrito, tão relevante aos filólogos, tem uma inevitável fronteira com o conjunto sapiencial védico, de mais de 6000 anos de idade, inscrito nos livros mais antigos de que o ser humano tem notícia. O pensador britânico William Jones, em 1786, na confraria denominada “Sociedade de Calcutá”, contribuiu enormemente para desvelar a cortina de fumaça que escondia o elo perdido entre línguas como latim, o grego, as línguas eslavas e germânicas, entre outros troncos linguísticos supostamente díspares, ao demonstrar que suas raízes se fundavam numa protolíngua cujo nome é “Indo-Europeu” – pois o sânscrito veio da Índia e se deflagrou pela Europa; e vice-versa! O idioma sânscrito, como ensinam os mestres, deve ser estudado como fórmulas matemáticas revestidas de poesia, pelo fato, já mencionado, de ser oriundo da tradição védica, cuja busca é a desconstrução das fantasias que semicerram olhos e olhares das sociedades.

Inicio esta pequena leitura de A lei da metamorfose – de Ovídio a Kafka, de Gustavo Bernardo, com a menção ao sânscrito e sua potência e eficácia desveladora da fantasia social pelo fato de que a obra de Gustavo é igualmente potente e eficaz, e também de modo anatomicamente poético, para dissipar certas névoas que turvam o entendimento da matéria da transformação, assim como as línguas, por iguais metamorfoses, provieram de uma unidade a que retornam, como os pré-socráticos precursores de Ovídio anunciavam: “De onde as coisas partem, para aí mesmo retornam”. Também me pareceu importante a menção ao sânscrito e à filologia porque o livro derrama loas merecidas ao trabalho de filólogos em relação aos textos, aos mitos e aos símbolos prototípicos abordados nas marés das páginas. Todas essas questões atinentes à linguagem, à fantasia, ao poético e ao matemático, enfim, vicejam no livro.

Gustavo Bernardo mostra, à maneira do erudito William Jones, que, por trás de mitemas (como diria Barthes) de “A Bela e a Fera”, “o Dragão”, “o Lobo”, “Kafka”, “a Criatura”, em síntese, há sempre uma espécie de rito iniciático em que se retorna ao paraíso de que fomos cruelmente expulsos pelo capricho literalista (e não literário) de um Deus Monoteísta (não seria o Monoteísmo uma forma de ditadura?), uma Entidade Absolutista do mais alto patriarcado judaico-cristão-arábico.

Eric Berne, discípulo heterodoxo de Freud, com suas lições de Análise Transacional, vem nos lembrar, compondo o coro com Gustavo Bernardo, que todos nós nascemos príncipes ou princesas; que algum feitiço FATÍDICO nos torna sapos de olhos esbugalhados e tez macilenta e pegajosa; e que, por causa disso, precisamos despender parte significativa do significado de nossos significantes da vida para que esse feitiço enfim se desfaça sotoposto por um encanto FEÉRICO que nos restitua a beleza e a nobreza principescas de nosso pedigree. Não é à toa que “fatídico” e “feérico” são filologicamente palavras da mesma etimologia de “fato”, de “fado” e de – FADA. Isso porque geralmente cabe a uma fada ao avesso, uma anti-fada, geralmente conotada como “bruxa”, nos malfadar ao feitiço batráquio, do qual saímos pelas mãos de uma fada que vê de cima, uma meta-fada, a nos retirar o fado dando-nos seu correlato luminoso e feminino, o que nos liberta e permite nosso retorno a ser o que sempre fomos.

A condição da mulher, naturalmente trazendo em seu encalço todas as “populações secundárias”, no dizer de Simone de Beauvoir, nesse jogo lúdico-sado-masoquista, é bem evidenciada por Gustavo Bernardo. Ele mostra que, num subtexto sibilino, quase sempre nos contos tradicionais a mulher é castigada pelo simples fato de incorrer no fado de ser mulher. Se a isso se somar o fado de ser bela, o castigo geralmente é dobrado. Afinal, a beleza desmistifica o prazer que padres inquisidores, exemplo citado no livro, devem recalcar a fim de manterem suas fachadas de seres não metamorfoseantes.

O atrito entre a civilização e a natureza, que um Bacon rebaixou ao nível mais grotesco ao afirmar que “a natureza deve ser subjugada e torturada pela racionalidade”, é igualmente revisto em sua epifania, digamos, pré-Éden: sem pecado, sem separação, sem dualidade. Tortura-se o bicho, a criatura, a fera, o lobo, o dragão, por serem entidades que representam ser possível viver sob o sol e o ar puros do estado de natureza “de onde as coisas partem”, ou seja, primitivo, primevo, primordial.

Para não tirar ao leitor a saga deliciosa, filológica e poética em que Gustavo Bernardo se embrenha, estendendo-nos a mão, estaciono por aqui meus comentários. Deixo que eles se metamorfoseiem com o condão da fé e do terror de quem se aventurar ao livro.  

Pode ser que este leitor, aturdido, prefira ficar “como as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”, de Raul Seixas. Mas o mais desejável é que tenham estômago bastante para digerir a doce monstruosidade por trás de fatos comezinhos aparentemente banais, como uma repugnante barata desprezível, que entretanto é um respeitável cidadão civilizado, numa inversão da tortura de Bacon há pouco aludida, pois aqui é a natureza que subjuga e tortura a racionalidade. Há fatos e fados “normalizados” por uma sociedade que demoniza as metamorfoses como verdadeira afronta ao status quo codificado em livros religiosos teologais e tratados de metodologia científica igualmente, não raro, teologais.

Sugere-se que é por isso que os fados se desvanecem quase sempre com a conduta de fadas celtas – criaturas femininas e alheias às codificações patriarcais, flutuando por sobre elas –, de tal maneira que seja possível uma restituição da “criança saudável”, para evocar Eric Berne mais uma vez quando descreve e desdobra seu “triângulo dramático” em “perseguidor, salvador e vítima”. A criança estava no início e estará no fim, mesmo passando pelo estágio de vítima, mas só após a temível metamorfose a que deverá lançar-se sem medo, nem culpa.

“A lei da metamorfose” é como um sânscrito, que mostra haver, por baixo da inelutável campanha de gregos contra troianos, uma mesma raiz, a qual, por isso mesmo, pode ser desvendada com o estatuto de lei. O “bem” e o “mal”, assim, se submetem a um mesmo superestrato linguageiro, que a literatura, por ser poética, expõe até os andaimes mais anatômicos e matemáticos como uma lei sólida que se desmancha no ar.
 

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