Cadernos de delicada loucura (Parte 2)

Por Antonio Yelo




(A primeira parte deste texto foi traduzida aqui)
 
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Susan Sontag tinha dezessete anos quando se casou com Philip Rieff, seu professor de sociologia na universidade. Rieff era onze anos mais velho que ela. No dia 3 de janeiro de 1951, a escritora anotou no seu diário:
 
“Casei com Philip com plena consciência + medo da minha própria vontade apontada para a autodestrutividade.”
 
A 4 de setembro de 1956 reflete em outro de seus cadernos:
 
“Quem inventou o casamento foi um torturador astuto. É uma instituição destinada a embota os sentimentos. Toda a questão do casamento se resume na repetição. O melhor que ele almeja é a criação de dependências fortes e mútuas.
 
Brigas acabam perdendo todo o sentido, a menos que a pessoa esteja sempre pronta a agir sobre elas — ou seja, terminar o casamento. Assim, depois do primeiro ano, a pessoa para de ‘perdoar’ depois das brigas — apenas recai num silêncio irritado, que passa a um silêncio comum, e depois continua outra vez.”
 
A união dos dois durou apenas oito anos.
 
O escritor David Rieff, filho de Susan Sontag, sabia que os quase cem cadernos que sua mãe foi empilhando na cômoda do quarto formavam seus diários. A escritora morreu de mielodisplasia em 2004 sem tomar uma decisão sobre o que fazer com todo esse material. Sem saber se sua mãe queria que fosse publicado, Rieff concordou em montar uma sua edição. Preferiu ele próprio cuidar do trabalho, embora soubesse que não existiria nisso nenhum divertimento. No prólogo do primeiro volume, o dedicado aos Early Diaries 1947-1963, Rieff escreve: “meu critério de seleção foi parcialmente determinado pela ideia de que o mais convincente nos diários eram a crueza e o retrato sem verniz que estes documentos apresentam de Susan Sontag quando jovem, a qual conscientemente e de forma decidida se empenhou em criar a pessoa que ela queria ser.”
 
A 19 de novembro de 1959, aos vinte e seis anos:
 
“A vinda do orgasmo mudou minha vida. Fui libertada, mas não é esta a maneira de dizer isso. Mais importante: me estreitou, limitou as possibilidades, tornou as possibilidades mais claras e definidas. Não sou mais ilimitada, ou seja, nada.
 
Sexualidade é o paradigma. Antes, minha sexualidade era horizontal, uma linha infinita capaz de ser infinitamente subdividida. Agora é vertical; para o alto e para cima, ou nada.
 
O orgasmo põe em foco. Eu anseio por escrever. A vinda do orgasmo não é salvação, porém, mais que isso, o nascimento do meu ego.”
 
Em 31 de dezembro de 1957 (aos vinte e quatro anos), Sontag observa:
 
“É superficial entender o diário apenas como um receptáculo dos pensamentos privados, secretos, de alguém — como um confidente que é surdo, mudo e analfabeto. No diário eu não apenas exprimo a mim mesma de modo mais aberto do que poderia fazer com qualquer pessoa; eu me crio. [...]
 
Com um pouco de construção do ego — como o fait accompli que este diário proporciona — eu vou superar as dificuldades para adquirir a confiança de que eu (eu) tenho algo a dizer, e que deve ser dito.
 
Meu ‘eu’ é insignificante, cauteloso, sadio demais. Bons escritores são egoístas ferozes, ao ponto mesmo da estupidez. Críticos sensatos corrigem os escritores — mas sua sensatez é parasítica da faculdade criativa dos gênios”
 
Mais tarde no prólogo, David Rieff observa: “Uma das coisas que mais me impressionaram ao ler seus diários foi [...] também sua sensação de fracasso, de inaptidão para o amor e até para o eros. Sentia-se constrangida com o próprio corpo, ao mesmo tempo que se sentia serena em relação à própria mente.”
 
Rieff recorda uma anedota contada a ele por sua mãe: ainda muito jovem, Sontag assistiu a uma apresentação da peça Medeia num anfiteatro no sul do Peloponeso (Grécia). A escritora relembrava emocionada como, quando Medeia estava prestes a matar seus filhos, alguns espectadores começaram a gritar: “Não, não faça isso Medeia!” Rieff acrescenta que ler os diários de sua mãe, como aqueles espectadores gregos, o fez querer gritar: “Não faça isso” ou “Não seja tão severa consigo mesma” ou “Não tenha uma ideia tão elevada de si mesma” ou “Cuidado com ela, ela não gosta de você”.
 
Em 24 de dezembro de 1959 ela reflete:
 
“Meu desejo [SS primeiro escreveu “necessidade”, depois riscou] de escrever está ligado à minha homossexualidade. Preciso da identidade como uma arma, para fazer face à arma que a sociedade tem contra mim. [...]
 
Estou só começando a ter consciência de como me sinto culpada de ser homossexual. [...]
 
Ser homossexual me dá sensação de ser mais vulnerável. Aumenta meu desejo de esconder, de ser invisível — o que, de resto, sempre senti.”
 
Em 14 de agosto de 1960, ela se culpa:
 
“[Em letras maiúsculas no caderno]: eu não devia tentar fazer amor quando estou cansada. devia sempre saber quando estou cansada. mas não sei. minto para mim mesma. não conheço os meus reais sentimentos.
 
[Mais tarde, SS acrescentou] (Ainda?)”
 
E em 5 de março de 1962, ele tenta esclarecer:
 
“Eu subordino o sexo ao sentimento — no próprio ato de fazer amor.
 
Sinto medo da impessoalidade do sexo: quero que falem comigo, que me abracem etc.
 
O trauma de Harriet. #1: sexo como rudeza, baixeza. Isso me deixava com medo. [...]
 
Atalho: não chamar sexo de sexo. Chame-o de uma investigação (não uma experiência, não uma demonstração de amor) no corpo da outra pessoa. Toda vez se aprende uma coisa nova.
 
A maioria dos americanos começa fazendo amor como se estivesse pulando por uma janela de olhos fechados.”
 
David Rieff resume que o que fica nos diários de sua mãe é “dor e pretensão. Estes diários oscilam entre as duas coisas.”¹
 
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“Um dia quero escrever sobre uma menina que põe a mãe (ou a tia, ou sua tutora) na cama, concorda em ouvi-la em tudo […], prepara educadamente um copo de leite quente, promete que nunca falará com seu namorado nunca mais, e então, com um sorriso no rosto, ela enfia a tesoura no peito da mãe e a gira.”
 
A autora de romances policiais Patricia Highsmith escreveu isso em seu diário quando tinha 21 anos. Não era um exercício de estilo ou um possível enredo para os romances que décadas depois a tornariam mundialmente famosa. Seu relacionamento com sua mãe, Mary, era ruim ou muito ruim. Pat e Mary passaram do amor ao ódio com uma facilidade incrível. Assim foi até a morte de Mary, que viveu noventa e cinco anos. Em uma carta que em 1972 a mãe enviou de sua casa de repouso no Texas para a filha, ela conta que nas fotos da contracapa de seus romances ela se parecia com um Drácula e que nos Estados Unidos seus livros estavam esquecidos. Não consta que Highsmith tenha respondido, mas escreveu sobre ela em seu diário logo depois: “Ela é um vegetal inerte, um tubo inútil, uma cloaca que de um lado devora meu dinheiro e do outro expele merda”. Em carta datada de 12 de setembro de 1974, a escritora conta a seu primo Dan Coates como em um hotel de Paris, quando dois jornalistas vieram entrevistá-la, sua mãe (na sua ausência) passou mais de cinco minutos tentando convencê-los de que ela era sua filha. Em outro registro em seu diário, ela se pergunta se “estarei apaixonada por minha mãe”. As relações amorosas que Highsmith teve com inúmeras mulheres mais velhas que ela e o fato de a mãe tentar suplantar a filha constituem um rico material psicológico digno de análise.
 
Highsmith nunca autorizou uma biografia em vida. Quando a escritor morreu em 1995, dezoito diários e trinta e oito cadernos foram encontrados em um armário. Mais de oito mil páginas cheias de anotações, rabiscos, correções, rascunhos, listas de muitas coisas e ideias (úteis e inúteis), poemas, fobias e reflexões sobre ela e os outros.
 
Patricia Highsmith usou seus romances para esconder sua vida e seus diários e cadernos para refleti-la e organizá-la. Neles mantinha registros de seu dia a dia e os cadernos lhe serviam para processar e transformar suas experiências para utilizá-las como matéria-prima para os enredos de seus romances. Na anotação do diário de 18 de agosto de 1953, ela observa: “Lynn ligou às 12. Ela sempre bebe um Martini, eu também. Visitamos Ellen, cuja casa tenho a chave. Nos deitamos na cama. E foi isso". Em suas obras de ficção, no entanto, faz o possível para confundir o leitor misturando dados factuais em seu enredo. Por exemplo, os endereços onde residem os assassinos de seus romances são os mesmos onde moravam a escritora ou seus amantes, seja nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra ou na Suíça.
 
Em 1952, Highsmith publicou The Price of Salt, uma história de amor lésbica entre uma mulher mais velha e uma jovem. Ela assinou sob um pseudônimo (somente em 1990 foi publicado novamente com o título Carol e com o nome real de sua autora). Em contrapartida, em 1945, em um de seus cadernos, ela desenha uma tabela com várias colunas em que classifica e pontua as oito amantes (mulheres) que teve até então. Ele as identifica com as iniciais de seus nomes e sobrenomes e, nas colunas à direita, detalha diferentes características, como a cor dos cabelos, a diferença entre a idade delas e a dela, a duração do relacionamento e o motivo do rompimento.
 
Em 2009, Joan Schenkar publicou The Talented Miss Highsmit, uma biografia bem documentada da escritora texana. Schenkar foi a primeira estudiosa da autora a ter acesso aos seus diários e cadernos e com base neles, suas cartas e seus romances, fez uma análise detalhada de sua vida e de sua trajetória profissional. Schenkar destaca como a escritora usou a escrita para examinar de perto sua precária estabilidade emocional. Do lado de fora, Highsmith era agressiva e desagradável. Em sua mente, o diálogo interior era outra coisa. Na página trinta e sete da edição espanhola (Circe, 2010) destaca duas frases de duas cartas (uma de 1964 e outra de 1968): “Acho que tenho algumas tendências esquizoides que devem ser observadas” e “Tenho medo da loucura que tenho dentro de mim, mas muito perto da superfície”. Em um de seus primeiros cadernos, quando tinha vinte e poucos anos, anotou: “Que loucura delicada há em mim. Chega quando vem o entardecer. É tão estranho quanto o tremor de uma folha em uma árvore, quando não há vento”.
 
Durante sua vida, Highsmith inventou trinta e oito nomes falsos e com eles enviou cartas aos jornais para reclamar de questões políticas. A maioria das vezes as cartas criticavam o Estado de Israel e os judeus. Como escreve Schenkar, “para Pat, todo adulto tem um segredo, e todo mundo — inclusive ela mesma — é um falsário”. Diante dessa opinião sobre seus pares e sabendo de seu medo de perder a sanidade, escrever seus diários e cadernos — embora em alguns casos falsificasse datas, lugares e eventos — era seu método para colocar ordem em sua vida (sua ordem) e manter equilíbrio emocional mínimo.
 
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Há quarenta anos, em Oralidade e Cultura Escrita, Walter J. Ong (um padre jesuíta e historiador cultural) demonstrou a superioridade da escrita sobre a palavra falada: “Na escrita, as palavras, uma vez ‘articuladas’, incorporadas na superfície, podem ser removidas, apagadas, alteradas. Não há equivalente na produção oral, não há como apagar uma palavra falada: as correções não eliminam uma falta ou erro. Ao separar o conhecedor do conhecido, a escrita possibilita uma introspecção cada vez mais articulada, que abre a psique como nunca antes, não apenas para o mundo objetivo externo, mas também para o eu interior, contra o qual o mundo objetivo se opõe”.
 
Novas teorias sobre mente e cognição vêm sendo discutidas há duas décadas. Essas novas investigações contemplam a mente como uma entidade que pode se expandir além das fronteiras do crânio. Em “Extended Mind”, artigo para a revista Research and Science, o biólogo Emiliano Bruner (pesquisador responsável pelo grupo de paleoneurobiologia do Centro Nacional de Pesquisa em Evolução Humana, CENIEH) afirma: “A teoria da mente estendida inclui o corpo e o ambiente no mecanismo cognitivo, um ambiente que em sua definição engloba a cultura e, claro, a tecnologia. Segundo esta perspectiva, a cognição (a “mente”) não seria o produto do cérebro, mas um processo que surge da interação entre cérebro, corpo e ferramentas”.
 
O próprio Bruner, desta vez na companhia da filóloga Carmen Cremades, em “Scripta Manibus”, artigo do Jot Down, explica como essa nova forma de ver a mente ajuda a compreender com mais profundidade os efeitos positivos da escrita manual:
 
“A escrita manual traça um caminho na cartografia mental que permite que um discurso seja encadeado enquanto está sendo escrito. Do mesmo modo, ante do papel em branco, não é que o pensamento se reflita como foi concebido: o texto não é uma simples cópia, uma foto, do pensamento mental. O ato de escrever retroalimenta o ato de pensar. Escrever é pensar em voz alta. O mecanismo da escrita ativa a engrenagem do pensamento. Em muitas ocasiões, pegar a caneta e deslizá-la pelo deserto do papel cria uma conexão cérebro-mão que permite que o discurso flua de uma maneira que apenas pensar ou apenas falar não é possível. O movimento dos rabiscos no papel funciona como um dínamo que dá vida ao próprio pensamento e o faz fluir de tal forma que o que estava escondido na mente em nível inconsciente se revela e se torna não apenas consciente, mas físico.”
 
Notas da tradução
1 Todas as traduções dos diários de Sontag aqui referidas são de Rubens Figueiredo em Diários (1947-1963) (São Paulo: Companhia das Letras, 2009).

* Este texto é a tradução livre de Cuadernos de delicada locura (y 2), publicado inicialmente aqui, em Jot Down.

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