Manuel Puig e o poder dos às margens

Por Ariel Schettini

Manuel Puig. Foto: Ulf Andersen.


 
A esta altura da cultura já não é mais necessário apresentar Manuel Puig à comunidade de leitores. Todos o conhecem; e os que ainda não o conhecem, deveriam fazê-lo. Tornou-se um símbolo nacional. E, sem dúvidas, é o romancista argentino mais importante do século XX, comparável apenas a Roberto Arlt e Julio Cortázar. Mas é sempre injusto comparar artistas, porque suas obras são incomensuráveis.
 
Ainda assim, poderia se pensar, em um contexto latino-americano, como o escritor mais urbano e cosmopolita da geração do pós-Boom. E ainda mais, um dos poucos escritores argentinos que pode ser parte da imaginação coletiva em dois sistemas, o das livrarias — no mercado dos Best-sellers — e no das academias.
 
Todos sabemos que esses dois modos de circulação da literatura se confrontam e se opõem universalmente. Mas, a obra de Manuel Puig ultrapassa as fronteiras definidas entre as teses e as caixas registradoras com a comodidade indiferente de um espírito que circula ao mesmo tempo pelo paraíso e pelo inferno.
 
Quando lhe perguntavam por que não vivia na Argentina, dizia que sabia que seu trabalho, neste país, nada valia, mas não era verdade.
 
Sua apresentação foi tão impactante que seu primeiro romance, A traição de Rita Hayworth, gerou um vazio típico dos que sabem provocar tal força para golpear o sistema. Diziam alguns contemporâneos que autores como Juan Carlos Onetti faziam frente à inovação técnica da apresentação das vozes, sem um narrador que as oriente, que tornava ininteligível o que estava narrando e mesmo a orientação da narrativa.
 
O próprio Puig recorria a este argumento como paródia mordaz dos críticos que usavam a sua obra como o modelo perfeito da “paródia”, e respondia-lhes com um desafiante “mas não falo como meus personagens” para evitar ficar preso nessa superioridade sarcástica com a qual se lia, evitando ser tragado pelo baixo ou o vulgar ou comezinho de seus personagens e suas astúcias.
 
Muito rapidamente sua obra foi lida pelos mais notáveis ​​acadêmicos, os mais modernos, que viam nela uma renovação total das letras nacionais. Um ano depois de publicado o seu primeiro romance, seu nome circulava pelas revistas literárias da América Latina e dos Estados Unidos. Assim, no final dos anos 1960 e início da década seguinte, poderíamos situar o nascimento de Puig. Quando se começa a ler sua obra relacionando-a à revalorização dos gêneros menores da cultura literária. O folhetim, as revistas de moda, o cinema de Hollywood, e as telenovelas fora os primeiros objetos aos que os leitores de Puig aprenderam a ver.
 
Pela primeira vez na cultura argentina, aparecia um narrador que não “fetichizava a literatura”, isto é, que não obrigava seus leitores a viver à altura das obras completas de um escritor desconhecido da Escócia, nem se importava que seu as narrativas contribuíssem para o desenvolvimento de uma “cultura nacional” igualmente fetichizada.
 
Manuel Puig foi, sem dúvida, o primeiro escritor que conseguiu livrar-se da sombra sisuda e intelectualizada de Borges, em troca de uma “divertida” celebração da cultura. Alguns anos depois, ele era o porta-estandarte da leitura narrativa pela narrativa propriamente. Desde o final dos anos oitenta, podemos dizer de Puig que ele é uma figura destacada da pura narrativa.
 
Sua obra também foi pensada como esse tipo de literatura que privilegia a diversão sobre o compromisso e ridiculariza o uso da literatura a serviço da política. Justamente por esquecer o outro compromisso social, o que tem a literatura com diversão, prazer e loucura. A literatura como plano de fuga, que tem sua demonstração perfeita e contraditória em O beijo da mulher aranha.
 
Mas logo após sua morte, Puig se transformou em um tipo diferente de herói literário. Com a ascensão dos movimentos civis no mundo e as reivindicações de cidadania para grupos marginais, se tornou aquele autor que, como poucos e antes de todos, deu voz a esses grupos periféricos. E não só isso, mas também uma posição crítica a partir da qual se pode olhar para toda a cultura.
 
Ler Puig nos anos 1990 era entender que uma mariquita encurralada pela polícia tinha poder, e uma mulher imersa na família tinha um poder. O poder dos humilhados, dos presos, das velhas, das domésticas, das mulheres aprisionadas, dos gays, das loucas, dos pobres que fazem pequenas gambiarras, isto é, o poder máximo, o mais existencial, o da imaginação.
 
Da periferia para o centro com a precisão de um antropólogo, Puig foi descobrindo os grupos que buscavam uma identidade e uma linguagem para si, encontrou-os e deu-lhes voz. Compreendeu perfeitamente que as armas dos fracos, como diz um antropólogo, estão no uso da linguagem e seus “gêneros menores”: a fofoca, que desestabiliza a verdade; o segredo, que escolhe seus ouvintes; a invenção, um conto que apresenta uma realidade alternativa. Todas as formas rejeitadas pela cultura, justamente porque escondem dentro de si um potencial revulsivo, destrutivo do poder.
 
Os modos de falar dos personagens de Puig podem nos mostrar o que só os grandes mestres do gênero podem mostrar: a ambiguidade moral da linguagem. A mesma linguagem com que a moralidade dominante é sancionada serve para encenar sua transgressão. É nesse pântano moral que vive o romance moderno, de Dostoiévski em diante.
 
Este ano a obra de Puig volta a ser publicada [na Argentina], com prólogos de grandes escritores que provavelmente abrem as possibilidades de uma nova versão de Puig. Que volte a ser pensado de novo lhe dá a força do que é um clássico, ou seja, uma obra que pode ser pensada em momentos diferentes e em que cada época encontra nela uma nova “camada” cultural.
 
No prólogo de Boquinhas pintadas, María Dueñas observa que uma nova leitura “feminista” agora permite repensar o quadro de histórias, traições e crimes no romance. Com efeito, cheias de “bovarismo” ou desespero, as mulheres de Boquinhas pintadas podem muito bem estar inseridas no motor de uma libertação prestes a explodir. Como em quase todos os romances de Puig, há sempre o problema do inquisitivo. Os personagens são conduzidos por forças que não controlam e sempre têm, na consciência ou na cidade, um policial que controlam. Todos os romances de Puig oferecem o cerne de um romance policial.
 
Escreveu romances que se passam no Rio de Janeiro, em Buenos Aires, em cidades imaginárias da província de Buenos Aires, em Nova York, na Cidade do México e, claro, em Paraíso. The Buenos Aires Affair, com prólogo de Mario Mendoza, parece um romance cheio de viagens, como de fato acontece em muitos romances de Puig, e é o motor de muitas histórias.
 
De fato, esse romance gerou a viagem de Puig que o afastou para sempre da Argentina. Foi o segundo de seus romances que fez dele um sujeito indesejável pela força parapolicial do governo, no ano em que foi publicado, 1973. E quem o ler agora poderá verificar até que ponto ele teve coragem e ousadia para criar esse romance.
 
O The Buenos Aires Affair está cheio de palavras que se tornaram um tabu na sua sociedade por muitos anos: “atividades políticas subversivas”, “grupo de extremistas”, “terroristas”. Palavras que qualquer pessoa que viveu na época e até muito mais tarde conhece eram ditas baixinho e, de preferência, com a televisão no volume máximo. Além disso, é um romance em que se apresenta outro tabu: um erotismo cheio de perversões e distante do que a pacatez, da esquerda e da direita, admitia na época.
 
Em várias entrevistas que Puig concedeu, ao ser questionado sobre a origem de suas histórias, ele repetia uma fórmula para a qual usou palavras e maneiras diferentes de dizer. Respondia mais ou menos assim: escrevo para tentar responder a uma pergunta que não pode ser respondida senão pela narração, para me mostrar um conflito não resolvido, para observar como poderia ser formulada uma pergunta que não tem uma resposta definitiva.
 
Se lermos os romances nessa chave, se os lermos como se essas palavras fossem um possível mapa para sua jornada, é muito provável que não encontremos a resposta, mas algo melhor: a pergunta que a originou. Eis um possível plano de leitura para esta nova era da obra de Manuel Puig: imagine, diante de cada romance, a curiosa questão que lhe deu origem.
 
* Este texto é a tradução livre para “Manuel Puig y el poder de los márgenes”, publicado aqui em Revista Ñ.

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