À procura do tempo perdido entre o enfeite e o deleite

Por Pedro Fernandes

Marcel Proust, 1895. 


São poucas as obras que se tornaram marco essencial na história do romance. À la recherche du temps perdu está entre elas. Costuma-se precisar o intervalo de 1908 a 1922, como o tempo que Marcel Proust dedicou à composição dos sete volumes que são outra vez traduzidos no Brasil. A grande exposição dedicada à oficina dessa criação, patente na Biblioteca Nacional da França1, sugere, no entanto, que seu autor viveu para escrever este romance. À medida que a grande catedral começou a ser erguida tudo o que seu feitor fez/ ou faria foi/ seria convocado de alguma maneira a constituir peça essencial.
 
Todo esse esforço, como ficou indiretamente dito, findou ainda com os três últimos volumes d’À la recherche esperando uma revisão, algo que dependeria futuramente dos editores e pesquisadores da sua obra; os últimos anos de vida confinado em seu quarto apenas valeu para alcançar uma conclusão do trabalho. Depois de uma severa crise de asma ainda na infância, toda a vida de Proust se fez sob os ditames da doença; foi a doença que interrompeu seus estudos no Liceu Condorcet, que garantiu uma longa licença e a aposentadoria do serviço voluntário na Biblioteca Mazarine, que o levou antes de concluir a revisão da sua obra-prima.
 
Ao dizer que Marcel Proust viveu para escrever um dos mais importantes romances do século XX — talvez o último século de ouro desta forma literária — não é porque tenha sido o autor de uma única obra. Entre a tradução e a escrita para o jornal, e antes do primeiro volume de À la recherche, ele publicou a reunião de poemas e novelas intitulada Les plaisirs et les jous (1896) e a coletânea de prefácios de artigos para jornal Pastiches et mélanges (1919). Tempos antes se dedica ao romance Jean Santeuil, projeto que abandona para concentrar seus esforços em tornar reconhecida no seu país a obra de John Ruskin, primeiro escrevendo sobre La Bible d’Amiens e depois dedicando-se à tradução da obra do escritor e pensador inglês.
 
Para Carla Cavalcanti e Silva, “o estudo profundo dos trabalhos de Ruskin permitiu a Proust um enriquecimento da linguagem artística, o crescimento de sua cultura e, o que consideramos mais importante, forneceu-lhe uma reflexão crítica com relação ao seu projeto romanesco.”2 Ao invés de repetir o ideário do esteta inglês, ele estabelece uma postura crítica, no sentido de problematização dessas ideias, visível em À la recherche, um trabalho feito de incessante reelaboração. O exemplo mais básico disso se mostra na própria feitura de seu grande romance incialmente pensado em duas partes — Le temps perdu e Le tempos retrouvé — e intitulado Les intermittences du coeur e na sua feitura por metástase.
 
O primeiro volume d’À la recherche saiu em Paris a 14 de novembro de 1913. É quando o escritor torna pública as feições do seu projeto. Seria constituído não de duas, mas de três tomos. Em 1918, noutra expansão, o romance seria publicado em cinco volumes. E, por fim, mais três. A obra ficaria como agora conhecemos pela junção que imprime as duas partes de Sodome et Gomorrhe.
 
Entre os editores que recusam a publicação d’À la recherche estava Gaston Gallimard, da Nouvelle Revue Française (NRF), mais tarde Gallimard. Em carta enviada à casa editorial, Proust se confessa disposto a custear a feitura do livro, como o fez na publicação de Du côté de chez Swann pela pequena Grasset. O manuscrito dos dois primeiros volumes, no caso da NRF é confiado a André Gide, de quem parte uma das várias negativas recebidas pelo escritor, uma decisão possivelmente mediada por uma imagem subjetiva de Proust: aos olhos de Gide — e provavelmente da sociedade parisiense —, o autor era um esnobe, diletante e mundano.
 
No caso em questão, a recusa durou pouco tempo. Ao reler o primeiro volume de À la recherche, Gide logo escreve a Proust confessando os remorsos por fazer parte da história da recusa do romance; foram duas cartas logo em janeiro de 1914. Numa delas, sondava se ainda existia o interesse do escritor em continuar a publicar seu romance pela NRF, uma vez que não existia entre ele e as edições Grasset um longo contrato. Assim, À l’ombre des jeunes filles en fleurs sai pela prestigiada NRF e no mesmo ano arrebata o Prêmio Goncourt.
 
Proust, ainda viu Le côte de Guermantes e Sodome et Gomorrhe, os dois publicados em dois volumes, entre 1920 e 1922. La prisonnière, Albertine disparue e Le temps retrouvé sairão postumamente em 1923, 1925 e 1927, respectivamente. Na década de 1970, o romance passou por um extenso trabalho de revisão de uma equipe coordenada por Jean-Yves Tadié. Desde então as traduções d’À la recherche seguem essa versão que chamaríamos definitiva. Mesmo a primeira tradução brasileira, publicada entre os anos 1940-1950, foi revista a partir dessa versão restaurada.


Anunciada desde quando À la recherche inteirou seu primeiro centenário, só noutro centenário seguinte — o da morte de Proust — é que se começou a publicar a terceira tradução do romance no Brasil. Depois do coletivo formado por Mário Quintana, Manuel Bandeira, Lourdes Sousa Alencar, Carlos Drummond de Andrade, Lúcia Miguel Pereira (e Guilherme Ignácio da Silva, que trabalha na revisão a partir do restauro francês), o romance foi traduzido por Fernando Py integralmente a partir da edição em quatro volumes da Bibliothèque de La Pléiade editada entre 1987 e 1989. Na introdução para primeiro volume da tradução apresentada pela Companhia das Letras se esclarece que essa versão “corrige inúmeros erros de pontuação e grafia, e acrescenta os adendos que ficaram de fora das publicações anteriores”, sendo “uma versão indispensável para manter a fidelidade à letra e ao espírito” da obra de Proust.³
 
Um estudo comparativo dessas traduções certamente acontecerá algum dia. Por enquanto, o que se registra são algumas alterações que mexem com o sedimentado no vocabulário comum. O conhecido Em busca do tempo perdido sai como À procura do tempo perdido. A mudança se dá não apenas para marcar a presença de uma nova tradução, como uma maneira de melhor ajustar a obra em língua portuguesa ao frescor da língua de Proust e aos sutis sentidos buscados pelo escritor. Ainda no texto de introdução ao agora Para o lado de Swann explica-se que “recherche, palavra surgida no século XV, está próxima de procura no sentido de ensaiar, tentar, estudar. Tanto que se traduz comumente recherche scientifique para pesquisa científica. Já busca (quête), com origem no século XII, leva a um sentido mais místico, como em A busca do Santo Graal”.
 
É da parte dos tradutores uma tentativa de capturar os deslocamentos que Proust imprime do mundano ao artístico, do literal ao literário, com a naturalidade do nosso idioma. Outra modificação visível é o tradução para o título do primeiro volume: Para o lado de Swann e não No caminho de Swann. “Como o livro deixa evidente, o Narrador e seus pais dispunham de dois trajetos opostos quando saíam de casa para passear. Podiam ir para o lado onde ficava a propriedade de Charles Swann, que vinha às vezes jantar na casa deles. Ou tomava o caminho contrário, dirigindo-se para o lado do palacete dos Guermantes, a família nobre desde que a Idade Média possuía terras em Combray, cujos moradores lhe pagavam tributos para cultivá-las e nelas morar.”  À sombra das moças em flor segue a versão conhecida de Fernando Py.

Há certo capricho visual que simula certa ideia de edição definitiva — o projeto editorial e gráfico e os materiais do livro, a capa dura, a lombada revestida em tecido, o papel e a impressão — mas, a casa editorial, apesar de reiterar o uso do gasto adjetivo especial, não apostou em nada mais que a nova tradução. Quer dizer, os livros atendem bem a numerosa legião de leitores do tempo instagramável ou que preferem uma bonita edição figurando na estante para ressaltar seu eruditismo de fachada. As edições dispensam qualquer material de suporte, talvez numa aposta também naquele leitor que se dispõe a flanar pela extensa catedral proustiana e na dificuldade recorrerá por conta própria às bibliografias afixadas no final do livro. Contraditórias confianças.
 
Atendendo gostos tão variados, essa publicação está entre os feitos do tipo mais importantes no mercado editorial brasileiro em 2022. Resta dizer a quem leu até aqui que esse esforço significa, de todo modo, um impulso para a leitura e a descoberta das raízes do que agora se acredita ter nascido ontem nos confessionalismos baratos vendidos em atacado. O projeto editorial é um primor. A obra também.
 
Notas
 
1 “Marcel Proust. La fabrique de l’oeuvre” assinala o centenário de morte do escritor francês. Patente na Biblioteca Nacional da França entre 11 de outubro de 2022 e 22 de janeiro de 2023, reúne as várias etapas da composição d’À la recherche du temps perdu. Maior exposição do gênero, entre os documentos expostos constam manuscritos, fotografias, objetos, pinturas etc.  
 
2 A citação está em “A composição de Em busca do tempo perdido na correspondência de Marcel Proust” (Manuscrítica n. 29, 2015). Pode ler o artigo na íntegra aqui
 
3 Cada volume traz um sumário texto de introdução com informações gerais sobre o livro e uma justificativa das escolhas tradutórias. Apesar de não assinado, subtende-se que preparado pelo tradutor. Assim, o aqui citado, seria de Mario Sergio Conti.

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