Por Lucas Paolillo
as formas da música e sua elevação
de espírito
o branco e preto da palavra escrita
os vários timbres da palavra dita
o acordar passarinho e o dormir silêncio
meio-dia, no meio, o somos, sendo inteiros
sonhamos o real que não encaramos
encaramos o sonho que não realizamos
realizamos... uma espiral de coisas com a nossa cara
a cara da liberdade que nos é cara
em cuja busca tateamos um mundo cruel
que não está em nosso peito nem no céu
mas que nos pauta e nos põe no chão
na busca de caminhos da vida viva
cujo trilhar implica necessária leveza
feito perfume de manacás
que decorre do se levar e se elevar juntos
dia a dia... corpo a corpo
— Amadeu Logarezzi, “Perfume de manacás” (2025)
Não são raros aqueles que
consideram, no Brasil, Cartola um exemplo de poeta. Nas criações dele, os
limites entre literatura e música muitas vezes transbordam. Dentre as composições
mais célebres do compositor temos “O mundo é um moinho”, gravada apenas nos
anos de madureza. Os seus versos retinam lições amargas da vida: “Ouça-me bem,
amor/ Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos, tão
mesquinho/ Vai reduzir as ilusões a pó”. Cartola, como se sabe, desfrutou de
uma vida de privações. Mas nem por isso deixou de balançar seus sambas, sua
poesia, em meio aos sorrisos e aplausos ou então às frustrações das esquinas da
vida — de um país ainda em construção porém já em ruína. Nos versos de “O mundo
é um moinho”, o dissabor é o sentimento da vez no caldeirão de sentimentos. Ali,
ele é posto senão como fatalidade ao menos como risco à espreita, tudo de olho
no teto a desabar em devir.
De um modo como de outro, Cartola
continuou a cantar — e a desfrutar dos sons e bons quitutes que bateram ponto
nos tempos de Zicartola. Dito isso, se evocamos o samba, o fizemos porque o
quarto de livro (ainda não apresentado) que nos deteremos na coluna de hoje concentra
seus esforços, nos parece, para continuar a cantar, sim, mas para provar o exato
oposto: sua matéria poética parece dizer o tempo todo que moinho mesmo é
considerar a dádiva de viver um moinho. Posicionados assim, lado a lado, o
samba e o quarto de livro a ser apresentado, adiantamos que o interesse passa
pelos mistérios no contraste entre uma proposta e outra. A posição de onde o
segundo nega a proposta do primeiro parece timbrar com a canção “Boas vindas”, de
Caetano Veloso, na qual o eu-lírico se agrega a um ramalhete de gerações para
elogiar a experiência da vida brotada: “Lhe damos as boas-vindas/ Boas-vindas,
boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa/ Tem o sol e tem
a lua/ Tem o medo e tem a rosa/ Eu digo que ela é gostosa/ Tem a noite e tem o
dia/ A poesia e tem a prosa/ Eu digo que ela é gostosa”. Pois foi assim, nesse
clima de convite ao zelo, que se deu o nosso primeiro encontro com a primeira
das quatro partes do livro Poetrices II (2025), aquela que guarda e
expõe a quem quiser ver algumas das criações de Amadeu Logarezzi com palavras.
Entretanto, antes de nos determos junto
a tais criações, vale lembrar que elas são “parte” — perspectiva na qual se
concentram tantas apostas nesse sonho de ser, como nos sugere o autor. De
maneira que convém falar do livro, é claro, já que ele é, no caso, o “todo” responsável
por aglutiná-la. Escrito a oito mãos por João Carlos da Luz, Sóstenes
Brasileiro, Walter Carvalho Pereiro e Logarezzi, este é o segundo volume da
série iniciada com Poetrices (2023), assinada apenas por Brasileiro e
Pereiro. Os dois volumes sugerem um sentido de pertencimento: por trás das
assinaturas, fala-se em nome de certa Confraria da Suspeita, um coletivo de
autores cujo empurrãozinho parece ter nascido de Pereiro.
O livro anuncia o “principal
objetivo [de] agradar seus leitores”. De partida, os autores dão a entender que
solenidades são dispensáveis. Conforme Pereiro diz em vídeo, consideram-se
“poetinhas”. O que não quer dizer, digamos, alheamento com relação ao insumo
que muitas vezes, com sorte, o interior de algumas cascas grossas esconde aqui
e ali: “Somos influenciados por tantos e diferentes poetas, escritores e
filósofos que seriam necessárias várias páginas para nomeá-los. Além disso, nos
influenciamos mutuamente. Aos leitores, esperamos agradá-los e que, de algum
modo sutil, possamos influenciá-los positivamente. E adoraríamos pensar que
incentivamos mais pessoas a fazer poesia”.
A julgar pela introdução do livro,
a descontração nos domínios da Confraria da Suspeita não rima lá muito com modéstia.
Não é para menos. Tudo fica mais claro quando tomamos conhecimento dos caminhos
trilhados pelos autores: nenhum deles é, digamos, calouro na viagem da vida. Ao
contrário, todos são confrários experimentados: “Amigos desde os anos 70,
vivenciamos juntos aqueles anos de chumbo e seguimos por caminhos distintos que
marcaram nossas experiências de vida, relacionadas às fartas e profundas
transformações pelas quais tem passado o mundo contemporâneo. Tais caminhos distintos
novamente se confluem neste movimento coletivo, do qual faz parte este
Poetrices II”. É o que nos diz também a introdução, atenta ao sinal fechado do
tempo responsável por uni-los pela primeira vez. Para eles, arte é vida e vida
é arte.

De trás para a frente, tais sinais
continuam a se desdobrar. Desde a capa do livro, por exemplo. Nela se vê — e quase
se ouve — o clima no qual esses tempos se entrecruzam. Na imagem-convite, assinada
por Daniela Penedo e Antonio Soria, temos uma releitura estilizada da famosa fotografia
de Frank Meadow Sutcliffe, de 1892, desviada como capa ao álbum Clube da
esquina 2 (1978), lançado nos mesmos e asfixiantes anos setenta. Na versão apresentada
pela Confraria da Suspeita, ligeiras alterações: no chão, encontramos uma bola
de vôlei nos pés de uma das crianças. Além disso, um dos quatro meninos aparece
mais relaxado, com um chapéu de aba e com pés para cima, descansando de bruços,
curioso como os outros sob a estrutura de concreto. No horizonte dos quatro
meninos, também quatro como os autores, mais novidades: um mar revolto e claro,
agitado e azulado. Comove observar como, na materialidade do livro, os caminhos
cultivados como força do passado reaparecem, então, como motivo de força no
presente — e em busca de se multiplicarem. Em testemunho, a Confraria da
Suspeita ensina sobre a dádiva da amizade.
A recordação das amizades (dos
tempos de chumbo aos tempos chumbados) significa, digamos, a apropriação de uma
reminiscência, tal como relampeja no momento de um perigo. Paulo Arantes, genro
do mesmo Ernani Maria Fiori citado em epígrafe, proferiu nas Jornadas de Junho
de 2013 uma fala megafonada. Nela, despontava um elogio da amizade: “amigos
cimentados numa causa. É possível conceber, no âmago dessas manifestações, a
multiplicação de coletivos em que esse vínculo forte para correr riscos
reais tenha sido efetivamente mobilizado”. No livro, é claro, as situações diferem.
Falar em riscos reais seria um despropósito aos encontros festivos. No entanto,
chamamos atenção ao vínculo forte.
Para termos noção do caráter mais
que estratégico desse cultivo, foi exatamente este mote que, de outro modo, deu
pontapé à turnê “Que tal um samba?” de Chico Buarque de Holanda e Mônica
Salmaso, na transição dos anos 2022 e 2023. Tais apresentações começaram com “Todos
juntos (Tutti uniti)”, da trilha de Os saltimbancos (1977). Por
sua vez, diga-se, outra canção dos anos setenta recuperada ao presente: “Todos
juntos somos fortes/ Somos flecha e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ Não
há nada pra temer/ Ao meu lado há um amigo/ Que é preciso proteger/ Todos
juntos somos fortes/ Não há nada pra temer”.
Essa aproximação poderia render
assunto controverso, mas, por agora, deixemos os desencontros mais sensíveis
para depois. O que nos interessa, por enquanto, é que os memorandos ao valor da
amizade em tempos sombrios comunicam algo de fundamental: cientes de que as
amizades verdadeiras são força primordial e cuidado raro que não se deve
desperdiçar, elas declaram o contrário ao impulso do desperdício, essa agência
íntima que rege a dessolidarização — o prato principal na passagem do
neoliberalismo à hegemonização da extrema-direita. Enquanto uns proclamam
“ninguém solta a mão de ninguém” com as mãos nos bolsos ou com os dedos
capturados pelos “trocadilos” (Estamira) das Big Techs, Poetrices II
(2025), lançado pela editora Viseu, explica porque de um volume ao outro a
Confraria da Suspeita dobrou em número de autores: “Dando sequência a seu
projeto artístico original, a Confraria da Suspeita expande sua ideia de
diversidade e pluralidade, envolvendo mais dois amigos na produção deste
Poetrices II. A variedade das formas em que diferentes temas são aqui
elaborados pelos autores continua trazendo à luz, no papel ou na tela, latentes
visões de mundo em sua expressão poética”. Amigos que não surgem sós, como
veremos. Algo na linha de um fôlego buscado pelas frestas nas festas.
Corre por aí, inclusive, o boato
de que nas festas de lançamento — saraus-chamamento com músicos e tudo — a
agregação de amigos sob clima de poesia aumenta mais e mais. Ainda assim, no
livro, os espaços reservados a cada um dos quatro autores são bem delimitados
(como quartos?). Se o volume dois fosse um terreno, ele, digamos, seria
dividido em quatro partes: de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo
sua necessidade. Somadas ao todo, elas correspondem ao total de “147 posições
poéticas, das mais variadas formas e temáticas”. Nelas, os próprios autores dizem
encontrar “uma escrita poética de variadas formas e temáticas, que foram
primeiramente alinhavadas nas expressões verbais em que cada autor manifesta
livremente sua identidade artística”. De quebra, tais criações são entremeadas
por ilustrações de Soria, o que agrega ao volume camadas visuais expressivas.
Já adentrando no universo de nosso
autor, constatada a deixa da camada extra de visualidade em meio aos versos dos
quatro “poetinhas”, temos no quarto de Logarezzi outra demão bem demarcada: a musical.
Ali, ele parece retomar, às avessas, Vinicius de Morais, pois sustenta na
apresentação das suas “coisinhas ao léu” o modo como “a vida sempre [lhe] soou
sonora”. O motivo? O encontro das palavras com os sons daria, para ele, em estalos
pois “compõe e amplia infinitamente a potência de nosso corpo”. Se lá atrás Vinicius
foi dos sonetos modernos às vibrações dos afrossambas, Logarezzi registrou desde
logo no preto e branco que se quer azul das suas tipografias o desejo de
música: “Seguindo pistas de sonoridade, procuro lavrar sílabas alinhavando
conexões na tela ou no papel, como que cavando sulcos plantando sementes na
terra ou no céu. Rimas e ritmos acontecem casualmente ou intencionalmente. O
que me move, no entanto, é sobretudo a sonoridade, uma espécie de sororidade
entre as palavras que as vai ligando e ressignificando na produção coletiva de
sentido, ou de sentidos, à percepção de quem possa ler”.
Diante disso, como dizer que o
mundo seria um moinho? Mesmo que fosse, sugere ele, os sons da vida vibram e continuam
a vibrar. Se pudesse reagir à nossa comparação, Logarezzi, certamente,
recorreria a um expediente de torção semelhante ao que Zé Miguel Wisnik fez quando
alquimizou os versos “Se meu mundo caiu/ Eu que aprenda a levantar” em “Se meu
mundo caiu/ eu que aprenda a levitar”. Golpes de pincel, eu sei. O mesmo Wisnik
que, curiosa ressonância, é homenageado por Logarezzi em “Devir”, uma
montagem-comentário em diálogo com Mariana Wisnik.
Há algo de curioso na forma geral
deste quarto de livro. Pois, em sobrevoo de sua arquitetura, temos uma forma
consistente, porém tranquila. Aglutinadora, diversificada, fértil em
correspondências internas. Isso fica claro desde a divisão própria às duas
seções nas quais as criações de Logarezzi se organizam. Ambas têm nomes.
Respectivamente, “letras de canção” e “outros escritos”. Em “letras de canção”,
temos vinte e um títulos também divididos em duas subseções: “composições para
a parceria com o músico Alceu Alves” — mais um amigo chamado à roda, portanto —,
com quatorze títulos (capazes de darem em um álbum de música farto), e
“composições minibiográficas”, com sete títulos (nos quais as dedicatórias já abundantes
fluem de modo ainda mais intenso, distribuindo gratidão e partilha desde a
proposta). Na primeira subseção da primeira seção, temos ainda duas indicações multimídia
de endereços virtuais: estas nos levam, a quem aventurar digitá-las, a ouvir gravações
das músicas interpretadas por Alves nas plataformas, feitas em estúdio caseiro.
“Outros escritos”, vindo em
seguida, não se divide em subseções e não tem endereços eletrônicos, mas dá a
ver vinte e cinco títulos dos mais variados matizes em prosa e verso. Seja como
for, tanto “letras de canção” quando “outros escritos” guardam propostas de
distintas, porém, sugerimos, complementares. Nelas, Logarezzi enfileira suas criações:
em primeiro lugar, as letras, essa forma curiosa de versificar, e, somente depois,
tudo aquilo que elas não são — muito embora, não sendo, tais negativos partem
do encontro com as canções, ostentando, ao seu modo, algo de distraído (ecos do
leminskiano “distraídos venceremos”?), “ao léu” mesmo. Entre uma e outra, as palavras
são de fazer flutuar e dão notícias de gostos, amores, amizades, florescimentos,
reflexões e notações íntimas.
Tais criações, no geral, vibram no
diapasão de uma mesma pujança: certa paixão pelo encontro dos seres, uma espécie
de gratidão resplandecente pela e na vontade de viver. Fazem juntas o mosaico
de uma lírica da partilha e, de um modo muito preciso, da alegria. É o que
temos se passeamos por elas numa ciranda curta ao longo do quarto de livro. Na
primeira parte de “letras de canção”, encontramos versos assim: “amanhã será
nota de alegria”, “semeando a gente o sol se inclina”, conta a abertura em “A
gente faz o tom”. Em “Lua nova”, os versos falam sobre o brotar da vida
imediato ao sentimento do e no mundo: “bati o olho em você/ seu olhar me
sorriu/ nem quis saber por que/ lua nova surgiu”. Para as palavras lavradas,
tudo o que há merece achar o seu lugar no mundo, encaixando-se na arte da partilha
das iluminações aquecedoras: “eu sou do sol/ tu és do sol/ ela e ele são do
sol/ quase tudo é do sol”, é dito em “Soul do ser”. “Essa menina”, por sua vez,
sugere luminosidade na admiração por dentro e por fora: “seu corpo incide no
mundo como a luz do sol/ faz tudo, resiste e se inventa como um girassol/
olhando pro novo sem medo em si regenera/ constrói o seu outro enredo pro mundo
que espera”. Haja sol! Como é possível constatar, a incidência do calor faz
cantar. Nos versos de Logarezzi, o sol é nota de escala musical, porém é também
manancial irradiado.
Mas nem tudo é luminosidade
contagiante. Dificuldades existem. Diante delas, no entanto, o melhor remédio é
partir do avesso a elas. Nesse universo, há esperança de reinvenção se
partirmos do que já foi brindado: “vou fazer o meu mural/ sobre os muros da
moral/ aplacar os meus temores/ ao cantar os meus amores”, é o recado colado em
“Mural”. Deste modo, tudo aquilo que toca os cinco sentidos é compreendido,
hoje ou depois, como enfeite da vida que é tudo — um desfile de substratos
únicos — e, por isso, motivo de poesia: “por meus olhos passa a paisagem que se
faz tão deslumbrante”, “e assim meu corpo vivo integra a beleza do instante”,
“moro neste barco que é meu corpo e seu espaço exuberante” lemos em “Hedonê”. Já
ao redor de “Limuero, a canção”, há pedido: “incorpora meu espírito em seu
tempo/ manda o vento visitar minha memória/ que remexe em meu corpo num
momento/ de emoção a eternizar a nossa história”. E há ainda o alinhavar pela justa
medida: “os amigos lá na casa, meus irmãos/ me ajudam a sentir e dar sentido/
pra essa vida que elaboro com as mãos/ com o que pôde e o que não pôde ter
havido”. Em todas as passagens, o vislumbre da descoberta mediante ao dado é
incessante: “o mundo está cheio de luz”, “para sermos juntos/ e com o mundo”,
“o mundo está cheio de som”, “para sermos juntos/ além do mundo”, é o convite
em “Luz sonora”.
Àqueles que poderiam insistir na
nota das dificuldades, a lírica de Logarezzi tem sua resposta: se o mundo
encanta, ele também é capaz de retirar os contornos das silhuetas ou os quadros
das molduras. Quando tudo desalinha, diz em “Dança que roda”, o melhor a ser
feito é não perder noção: “mas não se iluda... a vida não diz amém” e, a partir
disso, tirar a notícia da vida para dançar e ver no que é que dá. Sem
garantias. Mesmo assim, quando a lanterna interna se depara finalmente com a
frustração, por sorte ou azar, os mananciais de vida continuam a enviar os seus
sinais: “se na casa estamos sós/ não desista ainda não/ pois na asa vamos nós/
enredando esta canção” e assim “se assimila o sofrimento”, diz em “Eterno
entorno” — um título bom, em síntese, ao lugar da memória e da canção para
Logarezzi. Na mesma direção, quando o tempo fecha e se percebe que “[o] sonho
sofreu corte”, a resposta vem junto à força de uma meditação em busca de
método, muito embora se respire fundo apenas quando há o reencontro com a
poesia: “purgaremos sob o sol o seu mote ressentido”, reza “O que o sol faz com
a neblina” — título, aliás, instrutivo —, de olho na célebre canção “Apesar de
você” de Chico Buarque.
Para purgar os motes ressentidos, e
aqui certo inebriamento se revela como pilar-chave a tais composições, um lugar
tradicional, obviamente, é a mesa de bar junto aos amigos. Em “Bebastone
blues”, a poesia encontra, digamos, não o canto sublime dos pássaros, mas a
folia das misturas que se trocam entre os copos, garrafas e goles: “acolhe
ciganos, baianos, fulanos/ na noite que segue e nos faz hermanos”. Ah, a
noite e suas irmanações. Se a poesia se alcança no jogo de fora para dentro e
de dentro para fora, por dentro ela precisa continuar a florescer. Nesse
sentido, ela fica mais fortalecida na medida em que são mais marcantes os
gestos de amor e de dar: “ao enternecer/ nos encontrar/ amar e ser/ ser e
amar”, sugere em “Yasmin”. “Gentes”, enfim, encerra o “lado a” da parte
destinada às “letras de canção”, finalizando o ato em clima de poética: “corpo
lançado no mundo/ mundo falante à mingua/ penso e não me confundo/ palavra
sopro da língua”. Lição mesmo é aprender com os encantos do mundo enquanto se
tecem caminhos, nos sugere Logarezzi. Esses caminhos não seriam confusão, mas sim
clareza, discernimento de ser parte.
Cientes dessa primeira aproximação
(de inspiração cancionista) ao exercício de ser parte e partilhar, chegamos ao
“lado b” da seção “letras de canção”. Nela, as palavras coloridas se querem
flores em vida, lavradas e distribuídas. Em “composições minibiográficas”,
temos um encontro curioso: o recurso aos versos, com eu-lírico e tudo, para as
tais microbiografias. Nesta altura, algumas imagens do autor ficam mais e mais familiarizadas
aos leitores: as estações do ano, o mundo, o amor, o mar, as várias fases da
lua, os corpos, as flores, as águas, o sol, as notas musicais, o tempo, as
cores, o dentro, o fora, o ampliar. A primeira delas, “Beatriz e o poeta, a
canção”, faz referência ao romance de Cristóvão Tezza e seus versos traduzem
movimentos como “e se a dor aparece/ a convida pra sentar/ pois também com ela
tece/ o seu tempo de estar” e “um amor a musicar/ a beleza de viver/ sonhos a
realizar/ nesse impermanecer”. Em “A lua, o mar e eu”, as partes no título
compõem um curioso movimento triangular: “sentindo eu me dou conta de algo que
aquece/ me põe pedaço do mundo e o mundo em mim/ pulsando nesses encontros meu
ser aparece/ e exala minha potência flor de jasmim/ e a nova lua se enche e
ondula as marés/ em onda que anda pra sempre no dia a dia/ dos bons e maus
encontros que molham meus pés/ enquanto cresço e apareço com alegria”. Já “Brilho
do amar” desloca a paisagem de antes a outro universo. No que era lua, mar e
reflexão profunda, temos agora roça, bichos, trilhos e margens: “sudeste,
nordeste, por onde espalho minha luz/ retiro do amar saberes pra ser com
simplicidade/ caminho na areia tão virtuosa que me seduz/ tão perto de ti eu
sigo em busca da liberdade”. Ao gosto dos poemas concretos em mistura caymmica,
o amar se funde nele com a maré: “amar verde mar e os seus afazeres/ sou água
do rio e faço meu trilho/ a amar... a amar... a amar... o mar/ amar é... a
maré... amar a maré”.
Lastreada pelo ritmo sutil das
estações e das luas, não da aceleração-máquina, a mudança dos tempos e das
vontades desloca a temperatura das minibiografias. Em “Seguindo o sol”, por
exemplo, o clima é quente, de sol e sal e céu: “o sol no céu é clave em nós/
encanta o peito com ardor/ o sol aquece o mel no favo/ e favorece o nosso amor”.
Nele, a dança entre fora e dentro ensaia movimento: em certo momento se fala em
“o avesso do corpo no voo de dentro” e depois “no avesso da mente o ovo de
fora”, enquadrando “voo” e “ovo” num curioso artifício de inversões que remete
desde as fases da vida até a sequência das letras na grafia. “Lua de abril”, a
seu modo, aprofunda o jogo entre tais fases, a falar em traçados já percorridos
e brotares: “e a giração da Terra faz o tempo oscilar/ de manhã nos traz o sol,
cai a tarde a preparar/ que do pôr-do-sol em si brote a noite e o luar/ em que
o sono nos dê sonhos que nos façam caminhar”. Enquanto “Lua cheia” arremata desde
o refrão um verso exemplar à aventura do livro: “sinto o amor que acorda a cor
da flor”.
Além disso, é dada a senha de
apreciar a passagem do tempo: “de toda lua cheia em seu poente/ tal cena mês a
mês se renovando/ levanta de outro lado o sol nascente/ de novas gerações se
revelando”. Para encerrar o “lado b” destinado às formas que se querem canções,
temos “Saint Bar”. Com o clima das noitadas celebradas no refrão, o
estabelecimento que dá título à canção, temos uma das criações que mais falam em
caminhos que tensionam o arremedo de composições entre o sol, o céu e a flor:
“Coralina vai compondo uma colcha para mim/ que me envolve e me protege nem que
chova temporal// na tempestade a bela flor, cuidei até com orações/ mesmo assim
super Emília transcendeu sua Maria/ que navega eternamente pelos nossos
corações/ e nos deixou seu rastro-pólen cheio de sua alegria”.
Mitigados que estamos pelas
limitações de espaço, seria impensável darmos conta, infelizmente, dos vinte e
cinco títulos de “outros escritos” nos nossos parágrafos finais. Todavia, não
pense o leitor que por falta de grandeza. Ao contrário, trata-se da parte mais
abrangente de todo o livro. Quem se aventurar a percorrer as criações de
Logarezzi e chegar a esse ponto da travessia encontrará, depois das canções,
toda uma trilha de pão capaz de fazer situar o aventureiro-mirim às entradas
mais profundas. Nesta seção, o desejo de forma-canção cede passagem à forma
imprevista. Temos prosa, verso, recorrências e novidades: aliterações, relatórios
de observação, escrita automática, experimentações gráficas, estrofes curtas,
parágrafos longos, há de tudo. Nela, novidades permitem apreciar mais intimamente
vocabulários e sensibilidades desde antes entrevistos: sobretudo a botânica,
mas também a biologia, a física, a cultura indígena, o cinema, a sala de aula.
Além, é claro, da canção. Sem falar na profusão de todos os tons de sentimentos
e cenas.
No entanto, antes de encerrarmos a
nossa breve ciranda, desaceleremos um momento. Faço o convite de nos determos à
meditação de um dos excertos que, se não nos enganamos, é dos mais
significativos à compreensão do quarto de livro em questão. Silêncio. Tudo é
pausado na observação atenta e inspirada de um conjunto de flores a
desabrochar, a partir da observação de uma pétala precursora do conjunto de
rosas, a parte de um todo. É o que nos mostra o desfecho de “Sonho de ser”: “e
o ápice da sua emoção se dá quando ela vislumbra o conjunto que formam todas
elas unidas... de modo que, ao chegar a desabrochar, ela não só passa a sentir
diretamente a luz do sol, a brisa e o sereno da noite, o orvalho da madrugada,
as gotas da chuva, o sopro do vento... mas principalmente passa a rever seu
sonho, ampliando-o para ser mais, muito mais que pétala, enfim, percebendo que
só pode ser pétala sendo pétalas, sendo rosa, conjunto de pétalas cujas
emancipações significam o plural no singular e cujos tecidos agora se entrelaçam
numa unidade bela envolta pelo perfume que inspira seus sentidos em assim
ser(em)... (e)levando-a, (e)levando-as canteiro afora... ao mundo de que são
parte”. Quem não se comove lava a louça.
A profusão dos elogios à vida nas
criações de Logarezzi ganha em clareza na medida em que estes são vistos ampliados,
canteiro afora, pela observação atenta aos processos ocupados de vida. Desta
maneira, se o moinho não deixa de existir neste universo (como poderia deixar
de ser?), ele ao menos perde em ênfase (desnecessária?): seus ruídos turvos são
diminuídos e é atenuada a sua projeção simbólica frente à ampliação dos motivos
de vida. Ainda assim, nesta aposta, o princípio da sensibilidade que essa
proposta procura cultivar demanda a presença de saldos provenientes de pactos
de não-agressão no trato junto à realidade. Dimensão que, por um lado, se toca
no âmago do tempo, por outro, tem lá seus motivos de rarear nas vidas secas.
Eis a queda de braço atualíssima na qual a lírica do quarto de livro de
Logarezzi, acreditamos, se sustenta.
Para sentirmos um pouco do
contraste entre este pequeno porém poderoso antídoto e as largas doses de
veneno no horizonte, transcrevemos um trecho de “Refúgios para bilionários”,
texto de Naomi Klein e Astra Taylor publicado em The Guardian e
traduzido ao português por Euletério F. S. Prado para o portal A terra é
redonda. Nele, as autoras dizem: “A ideologia governante da extrema direita
tornou-se um sobrevivencialismo monstruoso e supremacista. Nossa tarefa é
construir um movimento forte o suficiente para detê-los. Ela se afigura, sim,
aterrorizante em sua maldade. Mas também suscita e, assim, abre poderosas
possibilidades de resistência. Pois, apostar contra o futuro desse modo —
apostar que uns poucos sobreviverão em bunkers — é trair, no nível mais
básico, os deveres de uns com os outros, com as crianças que se ama e com todas
as outras formas de vida com as quais se compartilha um lar planetário.
Trata-se de um sistema de crenças genocida em sua essência, que trai a maravilha
e a beleza deste mundo. É, portanto, de convencimento que se mais e mais
pessoas entendem até que ponto a direita sucumbiu ao complexo do Armagedom,
mais e mais gente estará disposta a revidar, percebendo que absolutamente tudo
agora está em jogo”.
É na contramão a este sistema de
crenças genocida em essência que as poetrices ao léu de Logarezzi oferecem
contraponto, na medida própria às suas estaturas íntimas. Que esta pró-pétala alimentada
por amores e amigos floresça junto a todo o canteiro frente as enxurradas
diárias de terra arrasada, “habitando instantes em possibilidades”.
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