Por José Miguel Oviedo
 |
Rubem Fonseca, anos 1980. Foto: Arquivo do escritor. |
Não deixa de ser um tanto
paradoxal que tenha sido um escritor estadunidense tão famoso quanto Thomas
Pynchon que tenha reconhecido no escritor brasileiro Rubem Fonseca o que poucos
de nós conseguimos enxergar: um verdadeiro mestre.
“O melhor da obra de Rubem Fonseca
é não saber aonde ela vai nos levar. Sempre que começo um livro dele, é como se
o telefone tocasse no meio da noite: ‘Olá, sou eu. Não vai acreditar no que
está acontecendo.’ A sua escrita faz milagres, é misteriosa. Cada livro seu não
é só uma viagem que vale a pena, é uma viagem de algum modo necessária.”
Bom, há uma grande verdade nisso,
porque a virtude fundamental de Fonseca é a de todo bom contador de histórias:
fazer-nos acreditar no incrível, inventar um mundo que se assemelha ao nosso,
mas que é, por alguma razão, inteiramente novo e fascinante.
Rubem Fonseca sabe, como poucos, contar
algo tão envolvente que não conseguimos parar de ler assim que abrimos as
primeiras páginas e, ao mesmo tempo, não deixarmos de nos surpreender em cada
uma delas. Ele faz isso recorrendo a todos os truques possíveis: pistas falsas,
proliferação de intrigas, personagens radicalmente ambíguos, desígnios que se
cruzam ou se sobrepõem devido a vontades e interesses conflitantes etc.
As forças que dominam o mundo
forjado por ele (erotismo, violência, hedonismo, corrupção em todas as suas
formas) fazem desse lugar uma zona perigosa, onde há a possibilidade iminente
de morrer ou ter que matar, de se envolver em vastas conspirações ou escândalos
tanto com figuras obscuras do submundo quanto com membros da alta burguesia e do
alto escalão do poder.
Ao entrarmos numa das suas
histórias, sentimos o clima geral de ameaça e risco, o cheiro do suor frio das
potenciais vítimas; tudo é letal, implacável, sem coração. Descemos a um
submundo que é como um abismo se abrindo acima do inferno humano. Não há redenção
aqui, e tudo — das favelas miseráveis
aos
apartamentos luxuosos onde acontecem orgias regadas a
álcool e
drogas
— exala um fedor de deprava
ção, de decad
ência irremedi
ável. A
única qualidade que permite alguns sobreviverem nesse universo
é o cinismo: ningu
ém quer mudar
este mundo abjeto, mas sim tirar dele o máximo proveito.
O modelo policial contrafeito
É óbvio que o modelo literário que
mais influenciou a obra ficcional de Rubem Fonseca foi o do romance policial e
do
thriller. O esquema básico seguido pela grande maioria de seus
romances e contos é o da investigação de um crime ou de um delito. Como em toda
história policial, os culpados e suas motivações são certamente desconhecidos e
difíceis de descobrir, mas nas histórias fonsequianas também são escandalosos,
porque violam o princípio clássico do gênero: em troca de uma investigação que
restaure a ordem moral corrompida, temos representantes da lei tão corruptos e
depravados quanto os criminosos.
Assim, Fonseca introduz um dado
revelador sobre a total ausência de normas estabelecidas e válidas em
sociedades como a brasileira — e, por extensão, a latino-americana —, que vai
além do sentido de mero “entretenimento” que distingue o conto ou o romance
policial: observar a habilidade com que a trama do que se investiga desvenda as
do criminoso e as nossas próprias suspeitas.
A capacidade de gerar uma ação
vertiginosa com o mínimo possível de uso verbal é algo que esse escritor
aprendeu não só nos modelos literários citados, mas também no cinema, onde
trabalhou como roteirista (também escreveu crítica de cinema), tarefa cujos
traços podem ser vistos claramente na composição de seus contos. Do cinema, ele
deve ter aprendido outra virtude fundamental: a funcionalidade da linha
narrativa e o manejo preciso de seus diferentes tempos e atmosferas, para criar
imagens visuais indeléveis por sua carga emocional e sedução irresistível.
Seus textos são habilmente
moldados pelo desígnio artístico, mas este se desenvolve de uma maneira quase
invisível criando efeitos que enriquecem constantemente o relato e o
impulsionam para frente, com uma lógica inexorável. Mais do que textos em que
as palavras brilham, são máquinas narrativas eficientes que desencadeiam
forças, situações e peripécias captadoras de toda a nossa atenção: há algo
escondido nelas, algo perturbador e inquietante que a narrativa vai revelando
aos poucos. A maquinaria funciona graças a um controle perfeito dos ritmos que
desenrolam a história, sempre muito rápidos e diretos, mas feitos com uma série
de transições sutis, pausas breves e acelerações bruscas.
O terceiro botão da camisa
Rubem Fonseca narra por meio de
uma mudança contínua de foco, perspectivas e texturas, às vezes dentro da mesma
sequência ou parágrafo, como se estivesse brincando com o leitor. Tudo o que é
acessório ou conectivo entre uma cena e outra é eliminado ou drasticamente
reduzido em favor da fluidez em meio aos choques.
Suas histórias costumam ser
intensamente dialogadas, mas os interlocutores não se identificam com as
convencionais marcações (“fulano disse” ou “contestou beltrano”) nem mesmo com o
uso dos travessões que indicam e acompanham a expressão vocal: o autor precisa
apenas das aspas para marcar a passagem de um interlocutor a outro, que se
define por sua dicção sem que o narrador intervenha. E se outra personagem
intervém repentinamente no diálogo, nem sempre teremos um aviso prévio: descobriremos
pelas reações dos demais.
As personagens falam diretamente,
mas também por meio de cartas, confissões policiais, documentos legais,
gravações etc., o que nos permite perceber a discrepância entre suas reais
intenções ou ações e o que declaram a terceiros. Fonseca trabalha avidamente
com essa duplicidade moral e revela um conhecimento íntimo das complexidades do
mundo jurídico. Esse conhecimento não chega até ele apenas por meio do
cinema
noir e dos romances policiais.
Certa vez, em conversa nossa no
Rio de Janeiro, me contou que algumas das suas histórias são inspiradas em
diálogos mantidos “profissionalmente” com agentes da polícia e criminosos; ele
então me revelou a fria razão pela qual os assassinos (primeiro na realidade e
depois em seus contos e romances) costumam mirar no “terceiro botão da camisa”
de suas vítimas: o impacto da bala no esterno o desintegra em fragmentos que
atravessam de imediato os órgãos vitais, causando morte certa.
Literatura, sonhos, erotismo
Mas essas intrigas complexas, com
policiais brutais e assassinos de aluguel típicos do gênero policial, são
apenas um veículo para examinar questões de outra ordem: como a literatura (e a
arte em geral), o mundo dos sonhos e a paixão amorosa. Podemos encontrar
evidências dos dois primeiros temas, por exemplo, no notável
Vastas emoções
e pensamentos imperfeitos (1988), seu quarto romance. A narrativa é
protagonizada por um diretor de cinema cuja busca por um diamante raro e um
manuscrito presumivelmente desconhecido de Isaac Babel o leva a uma aventura de
espionagem internacional na antiga Alemanha Oriental.
Já a presença do erotismo é dominante em toda a sua obra: aparece, por vezes,
como um motivo habitual para o crime, como um impulso cuja força quase
irresistível produz todos os tipos de tensões e tragédias; seu sentido é ainda
maligno, tolo e, em última análise, insatisfatório. O erotismo cultivado pelas
personagens de Fonseca é ao mesmo tempo excitante e frustrante: o homem é um
predador que vê na mulher uma presa tentadora, e a mulher é frequentemente uma
bruxa sedutora que o enreda em sua teia para tirar vantagem de seu poder,
dinheiro ou prestígio social.
Suas figuras femininas, geralmente
prostitutas ou mulheres da alta sociedade, mudam de aparência, mas não em relação
a atitude sexual, sempre envenenada por algum outro tipo de interesse, desejo
ou expectativa. Mesmo casais que aparentemente têm tudo abrigam, no fundo, uma
terrível falha moral que os leva a um desfecho violento. O amor também envolve
alto risco porque exige que os amantes sejam conspiradores, vítimas ou
executores.
Uma paródia do criminal
A constante sensação de perigo
mortal sobressalta continuamente o leitor, que se vê envolvido pela vertigem da
ação planejada por Fonseca. Isso pode ser visto em livros de contos como Histórias de amor (1997) e A
confraria dos espadas (1998). Mas, passarei a uma novela de título longo também de 1997: E do meio do
mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto.¹ Quem abre este
livro esperando histórias sentimentais ou românticas terá uma grande surpresa:
o amor é mais uma obsessão em destruir o outro.

Dos sete textos incluídos no livro de 1997, apenas um (“Viagem
de núpcias”) termina frustrado, talvez devido a um desejo de estridência, para
provocar nosso pior sentimento; mas os outros são esplêndidos. Alguns, como “Betsy”
ou “Cidade de Deus”, são muito breves, o que aumenta a brutalidade de seu
impacto. Dos contos neste livro, “Carpe Diem” é, a meu ver, um dos contos
dentre os essenciais para apreciar a arte de Fonseca.
É o conto mais extenso do livro,
mas fácil de ler devido à extraordinária velocidade de seu desenvolvimento.
Devido a essa característica, sua forte qualidade visual e o fato de ser
escrito quase exclusivamente como um diálogo (além de cartas e telefonemas) de
um casal de amantes clandestinos, parece quase um roteiro de filme, e essa pode
ter sido sua origem. O cinema também é referência constante para os planos e
fantasias de ambos (principalmente os dela, que assiste a pelo menos um filme
por dia). A ação é uma espécie de paródia de filmes famosos de mistério, crime
ou ação, com a adição de humor negro. Dependendo do que lhes parece mais
prático e vantajoso, o casal alternadamente planeja a morte do marido ou da
esposa e discute — sem nem piscar — sobre quem pode fazer o trabalho melhor.
Seus diálogos são brilhantes,
espirituosos, cínicos; o amor e a morte são para eles um jogo emocionante que
os atrai pelos riscos que correm; em dado momento, ele diz: “Não há marido que
não tenha alimentado esse sonho: matar a mulher”. A trama se complica a cada
página, ainda mais quando ela descobre que alguém também a persegue como o
interesse de matá-la. A maneira como essa teia de intrigas se desenrola é
eletrizante e — sim — cômica.
Uma arte poética
Embora possa parecer impossível, o
enredo de E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto
possui ainda mais desdobramentos e reviravoltas. O título incomum vem —
presumivelmente, porque com Fonseca nunca se sabe — de O poema do frade,
do poeta ultrarromântico Álvares de Azevedo (1831-1852), que celebra as
delícias do tabaco.
Ao longo do conto predomina a
referência aos prazeres de um bom charuto, o que alivia a tensão crescente da
trama, que gira em torno de uma série de crimes inexplicáveis. As personagens
principais da narrativa são o advogado criminalista Mandrake e seu cliente
Gustavo Flávio, duas figuras que conhecemos de outras histórias do autor;
Flávio recebe fotos de mulheres com quem se envolveu romanticamente e que
depois são assassinadas.
.png)
O fato de Flávio ser um escritor, permite a Fonseca desenvolver reflexões contínuas e reveladoras sobre a
literatura; na verdade, esta novela pode ser considerada entre outras passagens
da ficção do autor que desenvolvem uma espécie de sua arte poética, que nos diz
mais sobre ele do que sua trama policial promete. A descrição que Mandrake faz
do escritor é pouco caridosa, mas precisa: “Gustavo Flávio era um homem
vaidoso, um pernóstico erudito e inteligente, um mulato que com o correr dos
anos ficara branco, um gordo que ficara delgado, um mulherengo de sucesso…”
A vida erótica desse escritor não
poderia ser mais confusa e promíscua: sua nova mulher é Luíza, mas convive ou
pelo menos passa mais tempo com a ex Amanda, que também quer ser escritora; as
duas mulheres estão cientes dessa estranha situação e toleram em um clima de
suspeita mútua. Parece fácil acusá-lo de ser sexista, mas sua opinião sobre os
homens é muito dura: “Todos os defeitos que atribuem às mulheres eles têm em
dobro: vaidade, futilidade, comprismo, emotividade, volubilidade, puerilidade.
E ainda por cima, são feios.”
“Uma espécie de charada”
Tão importante quanto é a
estratégia narrativa do texto para intensificar o valor relativo de todas as
informações que temos sobre os personagens, suas intenções e suas ações. Quem
orquestra tudo como um vasto processo judicial — ou melhor, “como uma espécie
de charada” — é Mandrake, porque ele sabe que “[os] clientes sempre mentem para
você, os policiais mentem para você, as testemunhas mentem para todo mundo”. O
que lemos é a transcrição de múltiplas declarações feitas pelos envolvidos no
caso, posteriormente transcritas e complementadas com comentários do advogado
(que aparecem marcados com o sinal “&”) e que, por vezes, contradizem as
declarações anteriores; as partes textuais estão entre aspas, mas não aparecem
em ordem cronológica porque “infelizmente não datei nem numerei as transcrições”.
E se isso não bastasse, Mandrake ainda
relaciona esse caso com outro, o caso Delamare, que aparece em outra das histórias
em que é personagem. Ou seja, o texto é um labirinto de vozes e versões
conflitantes que o leitor deve recompor por sua conta, fazendo as vezes de um
detetive desconfiado de tudo. E enquanto isso acontece, as personagens discutem
as virtudes dos charutos finos que consomem, testemunhando o profundo hedonismo
de suas vidas, simultaneamente ameaçadas por perigos iminentes.
Por outro lado, a questão da
literatura absorve parte considerável do texto. Embora seja um escritor de
sucesso, Flávio despreza a literatura light e se recusa a escrever
livros complacentes ou edificantes. No fundo, é um provocador, um epicurista
irredimível, um iconoclasta que escreveu os romances intitulados Comer e
Foder, exemplos de sua filosofia panerótica.
Amor, prazer e literatura estão
intimamente ligados; Flávio confessa que “minha motivação para escrever tem algo
a ver com a paixão que tenho pelas mulheres”. O escritor que ele mais admira é
Sade, que enche “coração e as mentes dos leitores de medo e horror, porque a
vida era isso: medo e horror”. Embora Mandrake as considere “sofismas”, as suas
ideias literárias são muito lúcidas: acredita que o papel do escritor não é
mostrar a realidade convencional, mas “ensinar a ver o que não se vê”; e afirma
uma grande verdade: “nenhum escritor reconhece a própria mediocridade. Só a dos
outros.”
Ele defende uma filosofia do amor
que, por um lado, despreza os homens que praticam relações sexuais sem amor
porque “o orgasmo causa sempre um imenso enfado misturado com tristeza”; e, por
outro lado, afirma cinicamente que “um homem pode amar duas mulheres”. Toda a
ação acontece, aliás, num momento em que ocorre uma profunda mudança em sua
vida literária: abandona a ficção e agora escreve ensaios. Aparentemente, essa
mudança está ligada ao já citado caso Delamare, em que Delfina Delamare, uma
mulher casada que era amante de Flávio, foi assassinada.
Cada revelação aprofunda o
mistério dos crimes. Embora saibamos que Hilde, com quem começa a série de
assassinatos, também foi amante de Flávio, é difícil considerá-lo suspeito,
pois é ele quem recebe os envelopes com a foto de cada uma das três vítimas.
Mas está claro que o escritor mentindo sobre alguns detalhes e pode saber mais
do que admite.
A emaranhada intriga cresce com
novas revelações eróticas que surgem como consequência das próprias
investigações de Flávio: ele se envolve com Farida, amiga de Hilde, apesar de a
primeira coisa que ela faz é mentir para ele, e com Sílvia, “a mulher com o
corpo mais perfeito do mundo”, que será mais uma vítima dos crimes em série.
O feito narrativo notável de Rubem
Fonseca é manter o mistério até a penúltima página, pois quando, pouco antes,
Flávio se acusa, nem Mandrake nem nós acreditamos: é mais uma de suas
armadilhas; além disso, ele próprio sobreviverá a uma tentativa de assassinato.
E quando, finalmente, o verdadeiro autor do crime é identificado — fato que não
revelaremos aqui —, o próprio Mandrake introduz um elemento de dúvida que torna
a conclusão menos convincente: a arma usada no atentado contra Flávio não é a
mesma dos crimes anteriores. Ou seja, a relatividade impede que a ordem seja
verdadeiramente restaurada, o que garante o viés perversamente ambíguo encontrado
em tudo na obra do autor.
Literatura e perversão
Outra forma de perversão é a da
própria profissão literária, e essa é a lição escondida no enredo policial da
novela. Por meio dos conselhos de escrita que Flávio dá a Amanda, o livro
contém uma teoria perturbadora sobre a arte de ler, escrever e viver. Escolhi
três passagens onde isso se cristaliza.
A primeira é digna de Borges: “Todo
leitor reescreve o livro que lê durante o processo de leitura”, que é
justamente o que o leitor da narrativa de E do meio do mundo prostituto só amores
guardei ao meu charuto é obrigado a fazer. A segunda, que o escritor “tem que
confiar na sua imaginação, mesmo correndo o risco apontado por Plínio, o Velho,
de que a sua imaginação a faça infeliz (quasi quicquam infelicius sit homine
cui sua figmenta dominantur), ou torne você uma delirante, como Balzac no leito
de morte chamando o seu personagem dr. Bianchon para salvá-lo. Sem imaginação
não há literatura. A imaginação é a mãe da ficção, é a mãe da poesia, é até mesmo,
como disseram Mommsem e Burckhardt, a mãe da História.” Para Flávio, a
literatura é antes de tudo expressão de um mal-estar existencial incurável.
E a última passagem é uma espécie
de credo sobre a importância do valor moral necessário para escrever, que
conclui com esta afirmação implacável: “Enfim, coragem de recusar todos os
prêmios, ou melhor ainda, a coragem de não querer merecer prêmios, e o pior de
todos os prêmios, a consagração em vida.” Basta dizer que essas ideias ajudam a
entender o caráter verdadeiramente extraordinário da obra de Rubem Fonseca na
literatura latino-americana.
Notas da tradução:
1 A primeira edição brasileira apresentou a novela E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto como uma separata do livro Histórias de amor. Em língua espanhola repetiu-se o feito, com a novela integrando o mesmo volume de contos. Mais tarde, os dois livros foram editados com independentes.
* Este texto é a tradução livre de “Rubem Fonseca:
la fascinación del abismo”, publicado aqui, em Letras Libres.
Comentários