Mikhail Bulgákov e sua sina ou salvação eterna

Por Herminio Requejo Schoendorff


Bulgákov nos tempos de universidade em Kiev.


Os poetas russos e seus discípulos demonstraram incansavelmente que nenhum tema literário é impossível. Tudo pode transitar da ficção para a realidade: o imaginário se torna real, e o real se funde com o imaginário. Eles sabem que a verossimilhança não existe, nem na literatura nem na vida: amantes que, por se amarem intensamente, separam-se para sempre (Evguiêni Oniéguin); homens que, tomados pela felicidade, acabam cometendo suicídio (O idiota); criminosos que assassinam movidos por uma ideia (Crime e castigo); escritores que, condenados por uma obra incompreendida, silenciada e destruída, são salvos pelo poder do amor e do imaginário, onde o infernal e o divino se confundem como formas de justiça (O mestre e Margarida). Somente uma dimensão excessiva, grotesca, quase fantástica, pode nos aproximar da realidade de um país que sempre viveu uma circunstância perturbadora. “Não se pode compreender a Rússia pela razão”, diz um famoso poema, mas pode ser compreendida pela sua literatura. E entre seus muitos escritores notáveis, há um que abriu os olhos de leitores estrangeiros que tentam compreender este mundo inconcebível: Mikhail Bulgákov.
 
Embora seu destino pareça envolto em misteriosa perplexidade, sua figura e legado são essenciais para dilucidar uma cosmovisão indecifrável. Sua genialidade reside em revelar a eterna luta entre o indivíduo e o poder, entre a criação e a censura, entre a verdade e a ideologia, entre o amor e a morte. Conseguiu isso com uma ironia afiada, uma arma perigosa por sua precisão, capaz de revelar realidades imperdoáveis. O exagero da existência revela verdades incômodas e devastadoras.
 
Por isso, não é surpreendente que a casa onde Bulgákov nasceu, no número 13 da Andriivskiy Uzviz, em Kiev, vez ou outra apareça pichada. Em Moscou, no entanto, o escritor continua a ser celebrado sem se questionar suas origens: milhares visitam a casa-museu onde ele criou suas obras-primas, venerando-o como um ícone da literatura russa. Mas será que os russos conhecem a verdadeira história do escritor? Ele é um herói ou um traidor? Tudo parece possível.
 
Alguns artistas eslavos o veem como um precursor da causa ucraniana, tendo servido como médico no exército da República Popular da Ucrânia e, posteriormente, com os brancos, czaristas, enfrentando os bolcheviques, vermelhos, liderados por Trótski e Lênin, que esmagaram a independência ucraniana ao final da guerra civil. Sua figura, disputada entre duas nações, ilumina as raízes do conflito reaberto em fevereiro de 2022.
 
Rejeitado ou celebrado, Bulgákov realizou um feito: escrever a crítica mais brilhante do regime soviético em seus anos mais sombrios. Com O mestre e Margarida, um romance cuja audácia é sua alma, ele tece três mundos que desafiam toda a lógica, unidos por um manuscrito que queima e ressuscita, símbolo de uma arte indestrutível.
 
Na Moscou stalinista, Woland, um demônio magnético, chega com sua comitiva — Korôviev, um zombador com seu monóculo rachado; Azazello, um assassino de rosto feroz; e Behemoth, um gato falante e fanfarrão que bebe vodca — para expor a hipocrisia e a mediocridade de escritores como Mikhail Aleksándrovitch Berlioz e Ivan Nikoláievitch Ponyriov (que escrevia com o pseudônimo de Bezdômny), peões do realismo socialista. O diabo revelando a verdade?
 
Paralelamente, na Judeia bíblica, Pôncio Pilatos julga Yeshua Ha-Notzri, um profeta que encarna a verdade silenciada, o espelho do artista. Em outro plano fantástico, o Mestre, um romancista punido por sua obra sobre Pilatos — que parece ser a narrada naquela Judeia — e Margarita, sua corajosa amante, encontram a redenção por meio de um amor que transcende o humano, guiado por esse demônio, Woland.
 
Esses fios, costurados com zombaria e misticismo, mostram como a criação, movida pelo amor, supera a repressão, fundindo o divino e o infernal em uma justiça poética. Nunca desvendaremos completamente seu mistério, mas podemos explorar os eventos que deram vida a essa obra infinita.
 
Nascido em 15 de maio de 1891, Mikhail Bulgákov veio ao mundo no dia da inauguração do Teatro Solovtsov (também conhecido como Teatro Dramático Russo), como que por obra do destino: seria o dramaturgo favorito de Stálin. Quando criança, apaixonou-se pelo teatro e pela música; reza a lenda que assistiu à ópera Fausto mais de quarenta vezes. Pressentia que, nessa história de um pacto com o diabo, o ser humano se debate entre a luz e a sombra. Poderia o mal redimir a alma? Essa ideia germinou em O mestre e Margarida, em que Woland vira Moscou de cabeça para baixo.
 
Filho mais velho de uma família da intelligentsia, com um pai teólogo e seis irmãos, Mikhail cresceu cercado pela fé, pela ciência e pelas artes. Estudou medicina e casou-se com Tatiana Lappa, cujo amor foi seu farol na juventude, salvando-o do vício em morfina. Acreditava em uma vida tranquila, mas a Primeira Guerra Mundial eclodiu em 1914. Designado para uma aldeia em Smolensk, tendo que substituir médicos veteranos que partiam para o front, descobriu, como os grandes artistas — Puchkin, Tchekhov, Tolstói — o atraso de seu povo e a urgência de curar corpos e almas, incluindo o seu.
 
Na estepe gelada, escreveu Anotações de um jovem médico, relatos de sua experiência rural. E entre seus livros, brilha Morfina, fruto de sua luta contra as drogas, vencida em 1919 graças a Tatiana. Com dois narradores e uma história dentro de uma história, este texto antecipa a genialidade de seu grande romance. Reflete sobre a solidão e a dependência: da droga, de uma realidade insuportável ou da própria literatura?
 
As atrocidades que testemunhou como médico, primeiro com a República Popular da Ucrânia e depois com o Exército Branco, levaram-no a fixar o horror no papel, encontrando sua vocação. Dessa crise de esperança nasceu A guarda branca, na linha de seus mestres, perguntando: como viver diante de tanta desesperança? O romance acompanha os Turbin, um reflexo de sua família, em uma Kiev sitiada. Enfraquecido pelo tifo, Bulgákov não pôde seguir os Brancos. Quando acordou, os bolcheviques, vermelhos, governavam. Aos 30 anos, abandonou a medicina: nasceu o poeta.
 
“Grande e terrível foi o ano de 1918. Mas ainda mais terrível foi o outono daquele ano, quando a fome se apoderou de Moscou. A cidade estava devastada, silenciosa, coberta de neve, sem bondes, sem postes de luz, sem lenha. Os jornais não eram publicados. Nas casas, não havia mais nada para queimar. Os livros, as vigas, as cercas de madeira — tudo foi arrancado e jogado ao fogo. A fumaça subia de todas as chaminés. Pessoas rastejavam pelas ruas, esqueléticas, semimortas, com os rostos escurecidos pela fumaça. As bibliotecas foram saqueadas. As estantes estavam vazias, e os livros, aqueles milhares de livros, os mais sábios e os mais tolos, estavam todos queimando, sem distinção.”
 
Num apartamento comunitário em Moscou, apoiado pelo amor de sua segunda esposa, Lubov Belozerskaya, Bulgákov escreveu Um coração de cachorro, uma paródia tragicômica na qual um cão transformado em homem por um cientista personifica a decadência pós-revolucionária e o novo homem soviético criado pela ciência e pelo novo governo todo-poderoso. Censurado por décadas, circulou em samizdat, publicações de textos proibidos que circulavam clandestinamente. Para sobreviver, ele contribuía para jornais e frequentava cafés literários. “Não desapareci, embora não me faltem golpes. A burguesia me manda para o campo proletário e os proletários me expulsam. Estou carregado de certificados, como um cão com pulgas. Meu coração é de aço”, escreveu, capturando o stalinismo nascente. A Rússia Soviética parecia adorar um novo deus: o Estado Soviético.
 
Em 1926, A Guarda Branca tornou-se Os dias dos Turbin, um sucesso no Teatro de Arte de Moscou, apesar das tensões com Stanislávski. Stálin, fascinado, viu-o quinze vezes. “Se nós, bolcheviques, derrotássemos esses inimigos de classe, seríamos os mais fortes”, disse. Mas, em 1932, se impôs o realismo socialista, silenciando toda a crítica. Poetas como Óssip Mandelstam pereceram nos gulagui; Isaac Bábel foi fuzilado. E Bulgákov, sob forte vigilância, implorou pela devolução de seus manuscritos confiscados, incluindo esboços para o que se tornaria O mestre e Margarida.
 
Em 1930, desesperado, escreveu ao governo: “Nenhuma das minhas obras foi publicada em sete anos. Minha situação é insustentável. Peço para deixar o país com minha esposa. Se eu tiver que ficar, imploro por trabalho. Se não, não terei escolha a não ser acabar com a minha vida.”
 
No dia seguinte, o telefone tocou. Elena Sergeevna Shilovskaya, sua terceira mulher, e sua Margarida, atendeu. Uma voz firme perguntou: “O cidadão Bulgákov mora neste endereço?” Era Stálin.
 
Bulgákov: “Sou eu.”
 
Stálin: “Você é o escritor?”
 
Bulgákov: “Sim, camarada Stálin.”
 
Stálin: “Você está pedindo para ir para o exterior?”
 
Bulgákov: “Um autor russo não pode viver fora de sua terra natal.”
 
Stálin: “Você quer trabalhar no Teatro de Arte?”
 
Bulgákov: “Sim, desejo.”
 
Stálin: “Pois bem, vá, eles o aguardam.”
 
Stálin, intrigado por poetas, conhecia seu poder, como Woland, o diabo, no romance. Bulgákov trabalhou no teatro, mas vivia um silêncio interior. Chegou a queimar o manuscrito de O mestre e Margarida, uma atitude que simbolizava sua luta — ou talvez seu medo de desafiar o sistema que o vigiava. Assombrado por sua covardia e por não ter desafiado abertamente o regime, o reescreveu secretamente, sustentado por seu amor por Elena, enquanto exigiam uma obra comunista que ele nunca criou.
 
No romance, esse gesto ressoa: “Agachando-se, abriu a gaveta de baixo do primeiro armário e, por baixo de um amontoado de retalhos de seda, retirou a única coisa que tinha na vida. Nas mãos de Margarida estava um álbum velho com a capa de couro marrom, dentro do qual havia um retrato do mestre, uma caderneta de poupança com um depósito de dez mil rublos no nome dele, pétalas secas de rosas esticadas entre folhas de papel de fumo e um pedaço do caderno, com as folhas datilografadas e a parte inferior queimada.” Doente, ele ditou as últimas correções para Elena em 1940. Em 10 de março, ela escreveu em seu diário: “Hoje a luz de Mikhail se apagou.”
 
Em O mestre e Margarida, Woland pergunta: “O que deseja para si?” Ao que Margarita responde: “Quero que me devolvam, nesse instante, o meu amante, o mestre” Quando o mestre reaparece, declara a Woland que o romance dedicado a Pôncio Pilatos foi queimado e o satanás declara: “Manuscritos não ardem.” Este momento resume o espírito do romance: o amor de Margarita, reflexo de Elena, salva o mestre e com ele a sua obra, e demonstra que a criação autêntica pode sobreviver até mesmo à destruição e à censura.
 
Publicado na Rússia em 1966, quase 25 anos após a morte de Bulgákov, o livro viu a luz do dia graças à perseverança de Elena, apesar da censura feroz que assolava toda a expressão artística na URSS. Em suas páginas, Moscou e Jerusalém se entrelaçam, e o profeta se torna um símbolo do artista.
 
Bulgákov se tornou um escritor imortal, mas sua figura permanece em uma encruzilhada. Na Rússia, idolatram-no, esquecendo que sua pena combateu o totalitarismo, um espectro que retornou. Na Ucrânia, repudiam-no como símbolo da União Soviética e do imperialismo russo, que Putin exalta para justificar sua invasão. Condenado ou salvo para sempre? Seu legado responde: “Manuscritos não ardem”. 


*Este texto é a tradução livre de “Mijaíl Bulgákov y su condena o salvación infinita”, publicado aqui, em Letras Libres.

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