Literatura e viagem: dez livros fundamentais da literatura universal


A ideia e o ato de viajar são responsáveis em grande parte pelo modo como amadurecemos na visão sobre a cultura, nossa e alheia; são também maneiras de repensar nosso lugar no mundo, de reinventar maneiras de ser e estar, de se relacionar com o espaço, de construir afetos ou desconstruí-los, formar conhecimento, aproximarmos melhor da história. E antes de ser ideia ou ato, talvez tenha sido uma das primeiras formas encontradas pelo homem de responder por uma das questões mais caras que nos acompanha desde sempre: de onde viemos e, para onde vamos. Não foi só um rito de sobrevivência; foi também uma inquietação de ordem filosófica cuja resposta por mais que se escreva e se rediga, nunca estará concluída.

Como a literatura é um objeto não dissociado da existência, foi através dela que encontramos uma possibilidade de registro da viagem e também de criar outras formas de viajar, seja pelo nosso próprio interior, seja por lugares que só conseguiremos alcançar pela imaginação (grande parte da ficção científica). A seguir, fizemos uma pequena lista de algumas obras literárias que se beneficiaram do tema da viagem de maneira diversa e, que alcançaram ao longo de história uma presença quase irrecusável em algumas listas de leitura; entre esses textos ousamos acrescentar outros nem sempre mencionados, mas igualmente importantes. Só lembramos que esta não é uma lista acabada, mas aberta, o que significa dizer que o leitor pode incluir outras preferências suas; também não um ranking de melhores ou piores livros, é só uma sequência de títulos; e as sinopses foram escritas copiando, muitas das vezes, os textos de resumo oferecidos pelas editoras responsáveis pela edição dessas obras no Brasil.

James Joyce. 

1. Odisseia, de Homero: dificilmente uma lista que queira algum toque de seriedade dispensaria de colocar este título no topo das recomendações. A razão é muito simples: por mais que aos olhos de algum leitor, sobretudo os mais jovens o texto grego tenha uma linguagem de difícil acesso, não há outro clássico que melhor tenha servido no cimento da literatura ocidental. E, se não é tempo de lê-lo, é ao menos tempo de tê-lo para um dia encará-lo; o verdadeiro leitor, com certeza, precisará dele algum dia. Mas, se resolver ler desde cedo, basta encarar a obra como o grande itinerário de retorno de Ulisses ou Odisseu da Guerra de Troia – episódio relatado parte dele na Ilíada. A viagem do herói é um desafio aos deuses: ele, mesmo sabendo qual o caminho certo, digamos assim, de retorno para Ítaca, prefere escolher outro. Nesse roteiro sem mapa ou bússola pelo desconhecido desafiará a ira dos deuses que no Olimpo se dividem entre proteger ou amaldiçoá-lo.

2. Ulysses, de James Joyce: um homem sai de casa pela manhã, cumpre com as tarefas do dia e, pela noite, retorna ao lar. Foi em torno desse esqueleto enganosamente simples, quase banal, que o romancista elaborou o que veio a ser o grande romance do século XX. Inspirado na Odisseia de Homero, o romance é ambientado em Dublin, e narra as aventuras de Leopold Bloom e seu amigo Stephen Dedalus ao longo do dia 16 de junho de 1904. Tal como o Ulisses homérico, Bloom precisa superar numerosos obstáculos e tentações até retornar ao apartamento na rua Eccles, onde sua mulher, Molly, o espera. Para criar essa personagem rica e vibrante, Joyce misturou numerosos estilos e referências culturais, num caleidoscópio de vozes que tem desafiado gerações de leitores e estudiosos ao redor do mundo.

3. As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift: é o trabalho mais conhecido do escritor inglês; e trata-se de uma grande sátira à sociedade de seu tempo e, claro, aos romances de viagem, muito em voga então, assim como eram os de cavalaria na Espanha de Cervantes. Dividido em três partes, o leitor pode interpretar esse itinerário por duas vias possíveis: tendo por base que a narrativa se inicia com o naufrágio do navio onde Gulliver fazia viagem, é possível que tudo seja nada mais do que produto da imaginação do viajante enquanto espera uma possibilidade de retomar a viagem. Mas, também pode o narrador ter sido levado pela correnteza e depois pelas andanças pela diversidade de lugares que visita.

4. Uma viagem sentimental, de Lawrence Sterne: escrito em primeira pessoa por uma figura geralmente lida como alterego do romancista, Parson Yorick, um clérigo inglês protestante aparentemente apaixonado pela França e suas mulheres, a narrativa reúne impressões sobre esse país e a Itália, dois lugares pelos quais percorre numa carruagem. A riqueza da narrativa reside no modo como vê a cultura alheia e os aspectos da vida observada, com bastante ironia. O texto que preencheu o gosto de escritores como Machado de Assis e James Joyce não chegou a ser concluído, porque quando foi redigido Sterne já estava com saúde muito frágil; o escritor morreu três semanas depois de publicado a primeira parte. Os planos era que fossem dois volumes.

Jack Kerouac

5. As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain: para Ernest Hemingway não há nenhum outro livro na história da literatura estadunidense capaz de superar este. Para se livrar do pai bêbado e violento a personagem-título se refugia numa pequena ilha do rio Mississippi, onde se junta com Jim, um escravo fugido; duas figuras em busca da liberdade. Para alcançá-la se lançam numa viagem pelo leito do rio, à beira da entrada do país na Guerra Civil entre norte e sul.

6. A volta ao mundo em oitenta dias, de Júlio Verne: este talvez seja o título mais conhecido quando se fala no tema literatura e viagem. Publicado pelo escritor francês em 1873, tornou-se febre entre os leitores no mundo inteiro e mote para quase todas as narrativas que vieram depois, sobretudo, as de cariz fantástico ou de ficção científica. Verne ainda escreveu, embalado pelo sucesso da trama, outros títulos do gênero, como Vinte mil léguas submarinas.

7. On the road, de Jack Kerouac: nos anos que antecedem a década de 1950 surgiu entre os jovens estadunidenses um desejo de fazer uma viagem pelo interior do país a fim de conhecê-lo ou simplesmente demonstrar para si que haviam alcançado maioridade e individualidade. Entre esses sujeitos estava Jack Karouac, mas ao invés de buscar esse sentido que todos buscavam o interesse seu era outro: forjar uma obra literária capaz de revolucionar a literatura de seu país a partir do tema da viagem. Com o Pé na estrada (título com o qual foi traduzido no Brasil) o escritor foi capaz de coletar experiência para escrever uma das obras mais influentes da contracultura e uma das que impulsionaram o nascimento da chamada Geração Beat. Embora não seja um texto que se diga “o romance”, Kerouac foi capaz de recriar o espírito dos loucos anos de efervescência cultural em seu país e, claro, abriu uma porta nesse cenário literário aparentemente paralisado.

8. Viagem ao fim da noite, de Céline: considerado um dos títulos que terá influenciado a Kerouac nas suas andanças, a capacidade do escritor francês está em revolucionar o tema da viagem, uma vez que o leitor não encontrará aqui um périplo físico tal como nos livros até agora citados. A narrativa acompanha Ferdinand Bardamu no seu envolvimento com a Primeira Guerra Mundial, sua ida a África durante o período ainda de colonização francesa, depois para os Estados Unidos como trabalhador da Ford e o retorno à França onde se torna um médico atuante num subúrbio pobre de Paris. A crítica descreve essa obra como uma das mais importantes de sempre e reconhece a força da influência niilista e de uma misantropia selvagem e exultante combinados com um humor cínico de alto pessimismo a respeito da natureza humana.

9. A divina comédia, de Dante Alighieri: dividida em três partes – inferno, purgatório e paraíso – trata-se de uma das obras clássicas da literatura. O poema descreve uma viagem onde se sucedem diversos acontecimentos e sua grande força reside na riqueza com que são construídas as alegorias, uma das características principais pela sua atemporalidade. De estrutura épica, o livro tornou-se clássico na formação da literatura italiana e um dos mais importantes da literatura Ocidental.

10. As cidades invisíveis, de Italo Calvino: a relação viagem e memória, cidades e o desejo, cidades como símbolos são algumas das proposições desse livro do escritor italiano. A capacidade da obra é de pelo cariz de natureza fantástica e imagética reinventar ideias como a de espaço (fortemente marcada pelas construções de Swift); neste livro, Calvino busca exercitar com melhor forma aquilo que enunciou na escrita de Seis propostas para o próximo milênio: leveza, simplicidade, multiplicidade etc. O livro é lido como uma analogia entre a viagens de Marco Polo ao Oriente e seus diálogos com o imperador Kublai Khan, interseccionados na construção da narrativa.


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