Paulina Chiziane

Paulina Chiziane. Foto: Douglas Freitas.



A chegada da obra de Paulina Chiziane por uma importante casa editorial no Brasil reafirma o destaque da sua obra fora de seu país e, ao mesmo tempo, nos oferece uma possibilidade de ampliar o reconhecimento sobre as literaturas produzidas em África, este vasto território de rica variedade cultural sempre silenciado ou colocado à margem pelas expressões ocidentais.
 
Sabe-se que a escritora pertence à terceira linha na recente historiografia literária de seu país, Moçambique. Isso significa que a memória cultural, a formação da identidade e os horrores do passado colonial estão recorrentes na sua literatura. Esse envolvimento ressalta a proximidade que a literatura sempre mantém com o social, naquilo que em “Literatura e Sociedade” Antonio Candido designa como dialética da criação. Não se pressupõe, é claro, numa representação no sentido de reflexo ou transposição imediata da história, por exemplo, mas esta enquanto contexto participa ativamente no desenvolvimento dos universos forjados pela arte, estabelecendo ora o mundo do qual participa ora um mundo outro, feito aqui, de uma elaboração crítica sobre elementos que na estrutura dominante estavam sublinhados ou negados da pauta.
 
Paulina Chiziane nasceu em 1955 em Gaza. Seus estudos finais foram em Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Em Moçambique, foi a primeira mulher a publicar um romance e com isso também uma das primeiras a enfrentar alguns temas ainda circunscritos nas grades do tabu masculino, como o papel da mulher nas sociedades africanas, os impasses destas diante das inseminações coloniais do Ocidente, como o ideal do amor, além, das modificações da história por um ponto de vista até então inusual e, por isso, ampliador, retirando várias questões do lugar-comum ou das determinações racionais forjadas pelo ponto de vista masculino e dominante.
 
Sua obra ainda é moldada pela força da experiência adquirida entre a coletividade, sobretudo de mulheres contadoras, como a avó, que misturam história, fantasia e ensinamento numa mesma tessitura verbal. Neste sentido, a literatura de Chiziane se reveste daquele valor essencial nas antigas sociedades, estas que logo passaram pelo trânsito entre a oralidade e escrita; isto é, sua literatura finda por exercer ainda outro papel, que é o de singularizar pela escrita aquilo que corre o risco de se perder no esquecimento pela rápida ascensão da técnica.
 
A experiência criativa de Paulina Chiziane mistura as histórias de seus antepassados, suas próprias vivências numa comunidade onde ela própria alcança uma condição elevada em relação aos demais e das histórias trocadas no longo convívio que estabelece com as histórias alheias. Para esta última linha, foi fundamental sua colaboração com a Cruz Vermelha de Moçambique, ponto que contribuiu para também vivenciar diretamente alguns dos dramas da realidade em seu país.
 
A estreia literária da romancista ― o romance tem sido a forma literária de predileção ― acontece em 1990 com a publicação de A balada de amor ao vento. Neste livro, fortemente modelado pelos traços do ideal amoroso, narra-se a história de Sarnau e Mwando. Quer dizer, apesar do enredo apostar no amor como uma chama que alimenta a existência conturbada do casal, não se deixa de tratar que esses impasses são produzidos pelos princípios culturais e históricos e o que vigora é uma leitura acerca do passado como um elemento não apartado do presente. A centralização do drama a partir do lugar da mulher amplia ainda o simbolismo dessa personagem para a narrativa, ressaltando o que Hilary Owen1 discrimina como modelos diferentes de colonização para homens e mulheres. Este romance, diz, “funciona como um ‘novo começo’ estratégico para a consciência política das mulheres moçambicanas, na medida em que expõe um mito marxista anticolonial de falsas origens, segundo o qual as mulheres foram assimiladas pelo masculino por serem alegadamente oprimidas ao nível econômico pelo capitalismo nos mesmos termos que os homens, sem qualquer referência a especificidades sexuais.” Este tema será um crescendo na literatura da escritora.
 
Em 1993, ela escreve Ventos do apocalipse. Este romance é designado por Katya Queiroz Alencar num texto publicado na revista mineira Scripta como uma “tentativa de narrar o inenarrável”2. A constatação acentua por esses a brutalidade do que narrativa oferece: uma descida aos infernos, numa viagem alucinada e alucinatória que nos coloca em contato com o cenário degenerativo da guerra e seus desenlaces: a destruição, a miséria, o sofrimento, a humilhação, a morte. Na sinopse oferecida pela editora portuguesa que publica as obras de Chiziane, se lê que o cenário desta narrativa é simultaneamente dantesco e boscheano. Mas, por mais que as imagens levantas pela ficção, o que se conta tem sua estreita ligação com o vivido, o que coloca o ficcional como o discurso que questiona a limpidez da história oficial em relação aos horrores da guerra colonial.
 
O próximo romance da escritora aparece sete anos depois: O sétimo juramento. Aqui, o tratamento criativo de Chiziane é colocado em questão. São quarenta e sete passagens que, em modo de recordação constituem o tecido narrativo que expõe pelo menos três dimensões representativas do mundo: os feitiços e tabus da cultura moçambicana, reafirmando-se os valores da tradição; a corrupção e a degradação, colocando em destituição os saberes ancestrais; e dramatizações do contemporâneo, articuladamente o mundo resultado do embate entre tradição e modernidade. Tudo isso pelo ponto de vista que ora acentua certo realismo ora infiltra-se pela dimensão imaginativa e onírica da personagem.
 
Niketche. Uma história da poligamia é a obra mais recente na literatura de Paulina Chiziane. O livro publicado no Brasil, assinalando a estreia da escritora neste lado da língua portuguesa, é descrito da seguinte maneira: “Niketche conta a história de Tony, um alto funcionário da polícia, e sua mulher Rami, casados há vinte anos. Certo dia, Rami descobre que o marido é polígamo: tem outras quatro mulheres e vários filhos. As esposas de Tony estão espalhadas pelo país: em Maputo, em Inhambane, na Zambézia, em Nampula, em Cabo Delgado. Numa decisão surpreendente, Rami decide ir atrás das mulheres do marido. O romance retrata a busca de Rami como uma incursão pelo desconhecido e uma tentativa de lidar com a diferença, simbolizada pelas amantes do marido. Narrado em primeira pessoa por Rami, o livro alterna bom humor e lirismo.”3 
 
As primeiras leituras desse romance que se publica em Portugal dois anos de sua edição brasileira, isto é, em 2002 esclarecem que a escritora se utiliza do protótipo das narrativas de amor, envolvendo o mesmo drama que inclui sexo e infidelidade, ciúme e vingança, para construir uma leitura que ao mesmo que interroga denuncia a sociedade patriarcal africana marcada pelas tradições sexistas que depositam na mulher o papel de passivas. É esta a leitura de João de Mancelos que chama atenção para o que podemos designar como ampliação dos modos inventivos para a narração praticados por Chiziane: “O estilo narrativo do romance evoca uma dança circular, feita de hesitações e digressões, monólogos e diálogos, a lembrar a forma como as histórias são narradas entre os africanos. Reunidos ao redor da fogueira, os membros da tribo vão assumindo, um por um, a função de acrescentar detalhes ao enredo, fazendo progredir a acção, revisitando e mudando aspectos anteriormente referidos.”4 
 
É assim que o romance, esta forma narrativa que alguns dizem está morta, se renova. Paulina Chiziane é autora de uma escrita singular justamente por construir uma obra que revisita algumas determinações criativas e as desconstrói ou amplia à sua maneira oferecendo-nos sempre possibilidades novas de redizer. E mais, a secular arte de contar histórias é ainda não só o que nos anima, mas o melhor lugar pelo qual se é possível refletir e questionar sobre nós mesmos, nossa cultura e nosso mundo.
 
Notas

1 Este texto de Hilary Owen é intitulado “A língua da serpente: a auto-etnografia no feminino em Balada ao vento de Paulina Chiziane” e está publicado em Moçambique. Das palavras escritas, livro organizado por Margarida Calafati e Maria Paula Menezes (Porto: Afrontamento, 2008).
 
2 Esta passagem foi acrescentada ao texto em 10 de janeiro de 2021. O texto de Katya Queiroz Alencar está na edição n.35 da Scripta (Belo Horizonte, jul.-dez. 2014, p.219-236).
 
3 Sinopse publicada Companhia das Letras.
 
4 O texto de João Mancelos está publicado na revista Máthesis, da Universidade Católica Portuguesa (2007).

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