Unidos pela terra
Por Pedro Fernandes
O que se registra aqui é parte das incursões de um curioso por tudo aquilo com o nome de José Saramago. A partir
deste centro, todo um universo se amplia descoberta após descoberta. Também poderia
ser uma parte na história dos acasos, essa dimensão do pouco provável tantas
vezes reiterada como o ponto de inflexão ou de partida para a narrativa saramaguiana.
Alcancei o livro Terra pela primeira vez na
visita a um sebo, este território que, com as livrarias e as bibliotecas, é meu
lugar favorito, onde me sinto mais à vontade no mundo. Desta vez, José Saramago
só entrará depois nesse encontro. O estímulo que moveu meu interesse para o
livro de Sebastião Salgado foi outro: no sebo, minha atenção foi capturada pelo rosto desvalido de uma menina cujos
olhos minados d’água olha para a câmera à procura do futuro e da esperança que
deviam significar, que dizemos significar toda criança. Está na capa e recuperou de imediato na minha memória um
instante de quando o encontrei na última infância.
Num ano de mais uma difícil seca
no sertão, quando entravámos naquele tempo de piora de tudo, da total escassez, incluindo a de
perspectiva, meu pai acompanhou uns homens que andavam de terra em terra reunindo
outros homens à procura de lutarem pelas desapropriações de latifúndios sem
uso. Foi em um desses papéis que ele trazia amassados entre a bagagem toda vez
quando regressava de uma das suas missões, sendo ele, agora, um daqueles que
pregavam a palavra da terra para quem trabalha, que vi pela primeira vez o
retrato aparecido na capa de Terra.
Evidentemente que, no reencontro com aquela imagem no sebo, não tive o dinheiro para comprar o livro. A motivação ali instalada
não foi suficiente porque outras necessidades se impunham para um estudante que
possuía o mínimo para escapar, sozinho, numa cidade estranha e distante da
família. Mas li o prefácio escrito por José Saramago, quando o descobri autor desse texto, vi o CD de Chico Buarque,
observei as fotografias que situavam pela primeira vez aquilo que meu pai participara e testemunhara quando estava fora de casa.
Eu e o restante da família só nos
tornaríamos assentados numa propriedade distante da vida de pedra do sertão
muito tempo depois da primeira saída do meu pai. Nunca vivi os enfrentamentos,
nunca vi a prisão ou a violência da polícia sempre enviada para
atacar com toda força gente despossuída. Meu pai, sim, mas, naquela altura para
alguma coisa serviu o machismo: a mulher e os filhos não podiam acompanhá-lo, nem
deviam passar por essas coisas comuns a tantos outros homens, mulheres, meninos e meninas.
Entre uma viagem e outra, das
muitas que duraram pelo menos uns três anos, ficávamos sempre no silêncio e no
escuro da espera, sem qualquer notícia que valesse, sem saber mesmo se um dia
ele voltaria, se um dia nos resgataria da nesga de terra que mal possuíamos, se
um dia escaparíamos da vida despossuída de futuro, minguada de tudo.
Foi Sebastião Salgado os olhos do
passado que não vivi; que preencheu a lacuna de uma memória que não tive, deu
forma ao pouco que eu só pude capturar com a imaginação a partir dos papéis trazidos
por meu pai e do pouco que ele nos contava ou do que eu pescava na conversa dos
adultos quando regressava de viagem: as propriedades tomadas, a luta, o embate
policial, os muitos problemas de união coletiva, as violências, a prisão, as reuniões,
a pequena formação marxista, os sonhos de encontrar a terra para onde pudéssemos
nos fixar etc.
O encontro com Terra no
sebo me deu ainda uma estranha consciência: estive sem presença no epicentro de
uma das lutas mais marcantes no Brasil do século XX. Que José Saramago tenha
sido, com Sebastião Salgado e Chico Buarque, vozes disso, me fez desprender de
uma recusa carregada durante tanto tempo nos primeiros alvores de uma
consciência deformada com a televisão; contava catorze anos, quando me disseram, na única
tv da terra para onde nos mudáramos, que o que gente como pai fazia era invadir
terra.
Essa revolução interior para me afastar disso não foi
pequena e o meu tateio por tantas questões sociais e políticas vislumbradas em escritos incipientes como este é uma prova. Espero um dia carregar Terra entre meus livros na biblioteca
que terei. Só agora, alguns anos depois desse encontro, pude com o limitado acesso
à internet, completar, separadamente, algo do restante da primeira leitura do livro
enquanto meu ouvido descobria Milton Nascimento cantar “Levantados do chão”. Nada está resolvido. Daqui, me lançarei ao romance de Saramago que testemunha da mesma luta de outro povo contra esse sistema
de uns poucos com tanto e uns tantos com quase nada numa terra esquecida de Deus.
Ligações a esta post:
Post scriptum:
Terra saiu em abril de 1997
pela Companhia das Letras, quando o massacre conduzido pela polícia militar que arrasou a vida de dezenove integrantes do Movimento dos Sem-Terra em Eldorado dos Carajás cumpria um ano; um dentre tantos massacres e tantas mortes por conflito de terras no Brasil. O livrou reuniu 137
fotografias. Sebastião Salgado usa o registro preto-e-branco, reaproveitado como uma marca do seu estilo. Das imagens realizadas entre 1980 e 1996 em
assentamentos de vários lugares do Brasil, a da capa, com a menina Joceli Borges, ilustração deste texto, se destacou amplamente dentro e fora do país, constituindo um marco no registro documental do fotógrafo. No ano seguinte, o livro foi
premiado com o Jabuti, na categoria Reportagem. Sebastião Salgado, Chico Buarque
e José Saramago cederam os direitos autorais para o MST.
* Publicação atualizada em 24 de março de 2014.
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