Cortázar forasteiro

Por Andrés Neuman




Desconhecido íntimo

Por seu impacto iniciático, normalmente se repete que Cortázar é uma descoberta de adolescência. Esta afirmação, que contém suas doses de injustiça, omite ao menos outra realidade: há sobretudo uma maneira adolescente de ler e recordar Cortázar. E essa, definitivamente, não é culpa sua.

Sua aproximação ao vínculo entre escritura e vida, herdada do romantismo mas também das vanguardas, o converte no grupo de autores que gera uma imaginária relação pessoal com seus leitores. Para bem e para o mal, Cortázar é contagioso. Por isso mesmo quem finge desdenhá-lo na realidade estão se defendendo dele.

Duas forcas complementares o mantém num raro equilíbrio emocional. Uma força centrífuga, o humor, que permite distanciar-se de si mesmo; e outra centrípeta, a ternura, que provoca adesão íntima. Seria esnobe subestimá-las.

Outras mecânicas

Os contos fantásticos de Cortázar têm sido isolados num cânone restrito que tende a trair a genuína variedade de sua poética. As peças perfeitas (um dos epítetos mais recorrentes em sua prosa) ao estilo de Continuidade dos parques, escritas durante os anos cinquenta e sessenta, ficaram eclipsadas numa extraordinária periferia que, contradizendo a opinião oficial, inclui sua obra tardia. Apesar de artefatos sobrexplorados como “Axolotl”, muitos contos memoráveis (“A autoestrada do sul”, “Casa tomada”) não condescendem ao malabarismo estrutural, nem concluem com surpresa. Noutras palavras, a maioria dos contos de Cortázar opera à margem da simplificadora equação com que costuma identificar-se sua narrativa breve, perseguindo melhor do que alguma vez ele denominou “mecânicas não investigáveis”.

Um exemplo desses de fora é “Queremos tanto a Glenda”, do livro homônimo, legível como parábola da reescritura, mas também da censura autoritária; trata-se de um excelente conto político, repleto de características panfletárias. E sobretudo “Diário para um conto”, do Desoras. Neste texto final e sem dúvidas fundacional, Cortázar declara sua intenção de escrever “tudo o que não é verdadeiramente o conto”, os arredores do narrável: o contorno de um gênero. Talvez por isso repita a frase “não tem nada a ver”, a modo de mantra digressivo. Para êxtase da hermenêutica acadêmica, neste conto se cita e traduz, acaso pela primeira vez de uma obra de ficção latino-americana, um fragmento de Derrida.

Experimento autoficcional que se antecipa a atitudes literárias hoje percebidas como pós-cortazarianas, “Diário para um conto” exibe uma magistral reflexão sobre a história do estilo, sobre como afeta o tempo as maneiras de contar. O narrador nomeia várias vezes Bioy como alguém capaz de descrever o personagem “como eu seria incapaz de fazê-lo”. Além de uma homenagem, se trata do estabelecimento de uma fronteira: o território em que está aventurando-se faz Cortázar transgredir muitos códigos geracionais e estéticos. Esta última grande peça, conto e anticonto, decreta a negação de uma tradição que ao mesmo tempo havia colocado em destaque.

Julio Cortázar e Gabriel García Márquez

Amores duais

Quiroga tateou uma divisão de sua própria narrativa em contos de efeito e contos a punho limpo. Por anacronicamente viril que soe hoje esta nomenclatura (quase tanto com a lamentável distinção em O jogo da amarelinha entre leitores masculinos e femininos), a matiz era pertinente: os textos de estrutura clássica frete aos que saem sem bússola em busca de um impacto visceral. De maneira análoga, resultaria factível agrupar os contos de Cortázar em função dos dois conceitos mencionados pelo autor: aqueles com a milimétrica vocação de convergir num golpe final, um knock-out; e aqueles outros com preferência pela improvisação, a partir de um tema dado, ou seja, por um take. Entre esses últimos poderiam incluir-se epítomes como “Carta a uma senhorita em Paris”, “O perseguidor”, “História de cronópios e famas”, e títulos menos conhecidos como “Um tal Lucas”.

Nem as personagens femininas de Cortázar escapam a esta sorte de amor dual. De um lado pululam diversas magas e figuras mais ou menos contagiadas pela nouvelle vague. Penso em Alana de “Orientação dos gatos”, atrozmente abalada como “uma maravilhosa estátua mutilada”, e cujos encantos pareceriam transcorrer “sem ela saber”, graças a seu exegeta becqueriano. Do outro lado sobressaem, por sua capacidade de contradição, retratos mais complexos de personagens femininos tradicionais. Assim acontece com a mãe de “A saúde dos enfermos” ou a prostituta de “Diário para um conto”, cuja foto aparece como inquietante (e acaso irônica?) marcador de páginas de um romance de Onetti.

O tom e o túnel

Sempre me intrigou o conflito entre as imagens populares de Cortázar e Borges e seus respectivos tons como ensaístas. Borges é muitas vezes considerado (sobretudo por quem não o leu) um clássico de sisuda seriedade. Mas sua escrita, em particular a ensaística, está repleta de provocações, ironias, riso e piadas hilárias. Cortázar é tido como um autor lúdico, de amenidade essencial. Seus ensaios, entretanto, mantém uma surpreendente postura professoral.  

Tal é o caso de Teoria do túnel, cujo árduo empenho em transcender a razão positivista e pensar historicamente o surrealismo, resulta num curioso, se considerarmos que ditos objetivos são alegremente alcançados em seus contos de Bestiário, escritos na mesma ocasião. Quanto Cortázar afirma que a narrativa de ideias não existe, já que “as ideias são elementos científicos que se incorporam a uma narração cujo motor é sempre de ordem sentimental”, e que é preciso “fazer a linguagem para cada situação”, não se pode deixar de pensar que ao menos contos confirmam o que dizem seus ensaios.

Algo parecido poderia observar-se sobre Imagem de John Keats, minuciosa indagação ao maior poeta romântico em língua inglesa, quer haveria deixado o anglófilo Borges com ganas de diversão. Se bem que nesse ensaio há momentos aforísticos capazes de sintetizar o mesmíssimo Funes: “Toda folha é uma lenta e minuciosa criação da árvore”. De maior vivacidade, talvez pela urgência de seu pulso jornalístico, resultam os textos compilados no volume Argentina: años de alambradas culturales, livro em que Cortázar trabalhou antes de morrer e de fundamental revisão para aqueles leitores interessados em suas ideias políticas, mas matizadas e dialéticas do que às vezes se tem querido difundir.




“Traduttore trovatore”

Um dos aspectos mais significativos e menos estudados de Cortázar é seu trabalho como tradutor. Não apenas porque o retrata como leitor e viajante, mas também porque ajuda a definir sua relação forasteira com a própria língua materna. O Cortázar que traduz Poe, Yourcenar ou Defoe é esteticamente o mesmo que luta com hipnótica dificuldade por pronunciar o erre, que se cambaleia em O jogo da amarelinha ao reproduzir sua diante fala portenha ou que desconstrói o gênero romanesco (e a certa do idioma autoral) em 62 modelo para armar.

Deixou escrito em francês o poeta equatoriano Alfredo Gangotena, recompensado por uma rima intraduzível: “J’aprrends la grammaire/ de ma pensée solitaire”. Em suas incursões como poeta mentor, Cortázar adquiriu a ambição linguística dos maiores prosadores. Alguém poderá pensar que algo similar ocorre com Bolaño. Mas a poesia de Bolaño discorre sempre em diálogo com a sua narrativa, como parte de um mesmo projeto. Se nele ou em Borges seu relegado corpus poética resulta por completo reconhecível junto a suas grandes obras, no caso de Cortázar os poemas foram bem mais um adestramento, o testemunho inquieto de um narrador diferente. Numa carta de 1968 recolhida no fascinante volume Cartas a los Jonquières, envia a seu amigo Eduardo um soneto eneassílabo com o seguinte comentário: “É absolutamente o contrário o que penso e faço em prosa, e por isso é muito útil como polarização de forças”.

Precisamente em “Los amigos”, incluído em  Preludios y sonetos, encontramos um verso capaz de definir essa sensação de proximidade com que hoje tantos leitores celebram seus primeiros cem anos: “os mortos falam mais, mas ao ouvido”. Muitos gritaram mais que Cortázar. Poucos souberam, como ele, levantar uma voz.


Em 2013, ainda no cinquentenário de O jogo da amarelinha editamos uma série de textos Juan Cruz Ruiz e uma leva de outros trabalhos:
>>> Crônica 1;
>>> Crônica 2 + trecho de Los nuestros

* Texto traduzido livremente de "Cortázar forastero" de Andrés Neuman El País

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