Henry James, o abismo entre a Europa e a América

Por José Andrés Rojo


O jovem Henry James. Foto: Alice Boughton/Corbis



Já quase no final de O início da maturidade (título inédito no Brasil, tradução livre a partir do espanhol), Henry James se ocupa de um encontro com Louisa Lady Waterford, uma fascinante dama da velha aristocracia. Refere-se a ela em termos de uma rendida admiração, deslumbrado pelo preciso e finíssimo conhecimento que têm da pintura veneziana e de outros mestres como Ticiano e Rubens, e se vangloria de haver chegado a tempo para conhecer os restos da velha ordem,  o que restou desse Ancien Régime que liquidou a Revolução Francesa. Lady Waterford é uma das últimas sobreviventes de um mundo onde uma mulher como ela podia alcançar “tais alturas no ar extático da sabedoria”.

O início da maturidade reúne as recordações que Henry James conserva de suas primeiras impressões sobre a Inglaterra depois de desembarcar em Liverpool em 1870 e é, também, uma reconstrução do final da juventude: estava a ponto de completar 26 anos. Não tarda instalar-se em Londres e se ocupa, página a página, em descobrir uma “perfeita felicidade”, e atribui ter sua disposição afetada por toda a inabarcável sofisticação e complexidade da velha Europa. E é por isso que se entende tão bem as palavras que dedica sobre aqueles que quase um século depois hão sobrevivido aos embates da história, tais como Lady Waterford: “Era como se houvesse chegado até a borda mesmo do terreno que logo começaria a desmoronar-se abaixo de seus pés; e mesmo assim, faziam olhando mais além, sempre sem deixar de olhar e olhar, com uma confiança onde não se transparecia nenhum temor”. 

Esta vendo como, com esse mesmo gesto impassível da nobreza, o velho mundo se vê definitivamente no fracasso, esse refinado mundo que sempre havia querido conquistar como o maior dos tesouros. E Henry James está aí para contá-lo. Em boa medida toda sua obra pode ser lida apontando a essa crise profunda que o empurra à vida, a de uma sociedade que se desmancha, a de outra que nasce, todavia, as duas sem ter suas formas precisas. Em Londres o jovem James vai percorrendo um par de lugares sombrios, mas celebra ir conhecendo um montante de pessoas sobre as quais, confessa, não chega sequer alcançar-lhe os tornozelos e que sem elas, nunca haveria descoberto seu imenso disfarce. Ele deve ter tido que chegar a Londres para inteirar-se, “no centro do absurdo”, que estava acontecendo coisas interessantes na América. É aí onde está surgindo esse novo mundo que, a larga, vai mudar de verdade as coisas.

Pandora, um desses deliciosos romances que pareciam sair da pena de Henry James como quem sopra por puro capricho uma lufada de ar fresco, dá conta justamente do que se move do outro lado dessa velha Europa que tanto admira. Em vez do jovem americano de boa família, o mesmo que é preso em mil ressonâncias que provoca cada uma  das pedras de Londres, desta vez o que é colocado em cena é um jovem conde alemão que viaja a Nova York para ocupar um posto diplomático e que conhece no barco uma dama que regressa para casa depois de haver percorrido toda Europa com sua família e que o deslumbra pela naturalidade e a falta de impostação de sua conduta. Otto Vogelstein é “um rígido conservador” que forma parte da nobreza latifundiária e que viaja aos Estados Unidos com distância daquilo que lhe é superior e teme ser assaltado por uma descarada caça-fortunas: “Parecia, por sua vez, está também em risco permanente de contrair matrimônio com aquela jovem americana. Era uma ameaça ante a qual jamais poderia baixar a guarda, como sucedia com os vagões do trem, com o telégrafo, com o descobrimento da dinamite, com o rifle Chassepot, com o espírito socialista... Indubitavelmente, constituía uma a mais das muitas complicações da vida moderna”.

O mundo certamente estava mudando e o que sobretudo era obsessão do conde, agora já instalado em Washington, era como diabos colocar cada americano em seu lugar. Não entendia sua promiscuidade, não dava com um critério indiscutível que lhe permitisse distinguir quem formava parte da elite e quem não. “Em circunstâncias assim só pensava que a monarquia tinha o mérito de transmitir por linha sucessória a faculdade do reconhecimento instantâneo”. Assim esse jovem conservador alemão estava confundindo a nova América, a que tão pouco contava as insígnias do passado e só se importava com o futuro. Havia feito amizade com algumas famílias importantes e de dinheiro, e lhe chamava atenção o despreparo com que tratavam as figuras de relevo: “– Maldita seja, só apenas um mês, sejamos vulgares e divirtamo-nos um pouco... Brindemos ao presidente”, dizia  um de seus novos amigos quando preparava uma festa.

E, justamente nessa festa e conversando precisamente com o presidente, Vogelstein voltou a ver Pandora, a dama do barco, que volta a seduzi-lo com suas maneiras e sua beleza. Não consegue situá-la, lhe escapa, não logra compreender como pode sair uma dama elegante de um povoado tão fechado, Utica, e de uns pais tão toscos. “Sem dúvida, Pandora só havia sido possível na América. O modo de vida americano havia-lhe adubado o terreno da existência. Não era dissoluta, nem estava emancipada, não era vulgar, nem indecorosa e não havia nela, ao menos de maneira ostensiva, um só grama dos ingredientes de que estão feitas as caça-fortunas”.

Havia suspeitado quando veio de longe que podia aproveitar-se dele, e quis proteger-se de seus encantos; um tempo depois se dava conta de que não tinha nada a temer. Pandora era uma nova espécie, uma mulher feita a si  própria, capaz de escapar suas origens e projetar-se para o mundo, de ser diferente, de mandar sobre sua vida e governá-la. Era uma maneira bem distinta de reinar sobre as coisas que definia a conduta de seus amigos aristocratas europeus.

Henry James na maturidade.


Henry James diz num dos textos de A loucura da arte que o que fazia em seus livros era apresentar casos. Ocupar-se deles, bisbilhotar seus rincões, procurar trazer à luz a imensa complexidade de cada caráter. O caso do americano que descobre a Europa, o caso do velho aristocrata alemão que se vê superando pela vertigem do novo mundo. “Coloca o centro do assunto na própria consciência da jovem – disse a mim mesmo – e tem a dificuldade mais interessante e charmosa que possa desejar”, escreveu a propósito de Retrato de uma senhora, um de seus grandes romances. “Não abandones esse centro; coloca o peso maior nesse prato de sua relação consigo mesmo”.

Entre 1907 e 1909, em Lamb House, a casa que havia comprado em Rye para fugir do barulho do mundo e poder assim praticar melhor essa vida lenta que o permitia mergulhar em suas histórias, Henry James escreveu uma série de textos sobre suas obras com a ideia de reconstruir seu mundo literário. Em A loucura da arte, reúne-se uma seleção desses prefácios, podemos assim dizer, com algumas peças de crítica literária e breves ensaios sobre os caminhos do romance. O livro é uma magnífica janela para perscrutar esse grande abismo de que se alimenta a obra inteira de Henry James, a que separa dois mundos radicalmente distintos. Um é que, todavia, conserva as ressonâncias da velha Europa, e que seguramente morreria definitivamente nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, e outro é o da democracia emergente, precedente dos Estados Unidos e de onde se reivindicam novos direitos e se pretende apagar velhos privilégios da antiga aristocracia. Se numa crise dessas dimensões tudo ocorrera para ganhar e não se perdera nada, a obra de Henry James careceria seguramente dessa profundidade que segue comovendo-nos hoje, neste época em que também se está produzindo grandes transformações e em que algo está acabando de forma precipitada e traumática e não termina de impor-se o novo.

Em Henry James, como muitos de seus personagens, transbordam “as complicações da vida moderna” e assiste, abatido, essas marés de novos consumidores que com tanta  facilidade caem presos pelos efeitos espetaculares dos novos tempos e desprezam já a laboriosa trama de claro-escuro e ambiguidades que formava parte do mundo que está vendo. Por isso, num de seus prefácios, sublinha de maneira melancólica que, tal como as coisas estão sendo apresentadas, “as monstruosas massas são tão impermeáveis à vibração que as forças mais pungentes do sentimento, localmente aplicadas, não penetram mais do penetraria um alfinete ou uma estilete na pele de um elefante”.

* Texto publicado no jornal El País; tradução livre para o Letras in.verso e re.verso.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #575