Oscar Wilde e aquele certo rapazinho de olhos escuros



As mãos são imundas e o colarinho da camisa um desastre, irregular, composto só por alguns fios, sujo – mas os olhos do prisioneiro 1122, um colega de cela do prisioneiro mais famoso da prisão, ainda estão brilhando com a vida e as travessuras. Não há nenhuma prova de que Harry Bushnell tenha sido o rapazinho de olhos escuros sobre quem Oscar Wilde, ao cumprir pena de dois anos por atos de atentado violento ao pudor com outro homem, escreveu carinhosamente numa de suas cartas e com quem pode ter tido um affair.

No entanto, Bushnell, de quem se descobriu fotografias presentes nos arquivos da antiga prisão de Reading, foi certamente um dos companheiros do escritor inglês em 1895: era moreno e bonito de um modo travesso.

Não há nenhuma evidência de um interesse erótico, e Bushnell certamente também não foi o último grande amor da vida de Oscar Wilde, mas houve, da parte do escritor para com o preso, um interesse amigável. Wilde chegou a lhe enviar algum dinheiro quando saiu da cadeia, mas Bushnell, que tinha pela vida outro padrão, voltou muito cedo para o mesmo lugar onde conheceu Wilde. Assim analisa Peter Stoneley, professor de Literatura Inglesa na Universidade de Reading, que vem estudando através dos antigos registros da prisão, agora disponibilizados na Record Office Berkshire sobre o período. As imagens que integram o arquivo vieram a lume no ano em que se marca os 160 anos do nascimento do escritor. A prisão só foi fechada em 2013, mas os arquivos que dão conta da passagem de 18 meses, período em que Wilde esteve detido, estão intactos, embora, as imagens agora apresentadas de Bushnell sejam os únicos registros de homens simples com quem o autor fez amizade nesse período.

A pesquisa de Stoneley também não acusa nenhuma fotografia de Wilde na prisão. Fotografias eram caras; o Ministério não pagaria para fazer imagens de todos os prisioneiros; apenas determinadas categorias é que eram fotografadas. As reincidências de Busnhell no mundo do crime certamente são os indícios de que ele se enquadrava numa dessas categorias. Além disso, Wilde já tinha sido infinitamente desenhado ou fotografado; era um dos homens mas reconhecidos a olho nu na Inglaterra de seu tempo, por isso nenhuma necessidade de fotografá-lo.

O local onde as fotografias foram feitas na prisão é tão macabro que Stoneley ficou convencido de que Wilde certamente nunca esteve nele; caso contrário, o escritor não teria resistido e escrito sobre: a cela tinha um piso falso que poderia ser removido a qualquer instante e logo ser transformada numa câmara de execução.

Wilde, como dissemos, cumpriu 18 meses de sua sentença de dois anos em Reading; pela amizade construída com o diretor do presídio, esteve permitido a continuar a escrever e estabeleceu vínculos com funcionários e colegas de cela. Tudo isso não pela simpatia do escritor – que nunca deve ter se descuidado do comportamento de lorde inglês. A aproximação era mais porque o nome e a literatura de Wilde já tinha uma penetração popular àquela altura.

A experiência da prisão está registrada em algumas cartas de forte cunho melodramático, em De profundis, livro escrito na prisão e integralmente dedicado a Bosie, seu ex-amante Lord Alfred Douglas e, depois de sua libertação, em “The ballad of Reading Gaol”, que se tornou seu poema mais famoso.

Stoneley tem dedicado sua pesquisa em agrupar informações sobre os homens que estiveram presos com Wilde. O aponte feito para o nome de Bushnell não é, portanto, uma suposição gratuita. Isso porque, ao contrário do escritor inglês, Bushnell era muito popular entre os da prisão, devido sua constante reincidência no mundo do roubo. Mas ele não era, como muitos dos que se encontravam na prisão, uma vítima da desigualdade social latente naquele país por essa época. E quando os roubos cometidos eram mais de produtos para uso comum – comida, roupas, sapatos. Alguns se deixavam ir preso de propósito: com as condições degradantes porque passava a população da Inglaterra pobre, ao menos na cadeia teriam a chance de trabalho e algum tipo de abrigo.

Bushnell roubou pela primeira vez a avó; depois um tio. Quando saiu de casa, trabalhou ocasionalmente numa fazenda, mas foi preso, de novo, por roubo. Sua escalada de marginal atesta 21 entradas suas para a prisão só entre 1892 e 1911. Stoneley ficou surpreso de que, mesmo assim, ele viveu tenha vivido até aos anos 1950 e foi enterrado como um mendigo em Reading. As suspeitas de que ele seria o personagem a que se refere Wilde está ainda nas intervenções financeiras feita pelo escritor, lidas como uma tentativa de fazer com que o rapaz saísse do mundo pregresso do roubo; Wilde chegou a enviá-lo mais de dois salários mensais de um trabalhador comum.

Entre os materiais que compõem o arquivo, Stoneley registra o documento que atesta a execução de Charles Thomas Wooldridge, o soldado enforcado por assassinar sua esposa em 1896, tema dos versos do famoso poema de Wilde: “No entanto (ouvi!) cada um mata o que adora:/o seu amor, o seu ideal. [...] O covarde assassina dando um beijo,/ O bravo mata com um punhal.”

O poema relata sobre o silêncio frio que cai sobre a prisão com a execução e o “carrasco o sinistro afago”. O nome de registro da execução James Billington de Bolton redige notas sobre o comportamento de Thomas – “comportamento geral satisfatório, ele parece uma pessoa respeitável”. A causa-morte é descrita como “deslocamento de vértebras”.

Wilde escreveu que seus primeiros seis meses, depois de ter sido transferido de Wandsworth, levou maior parte do tempo colhendo matéria-prima para fabricação de estopas, “até que meus dedos sangrassem”. E a única coisa que lhe salvava naquela ocasião era a companhia dos outros prisioneiros.

O escritor foi certamente o único preso de classe média e com formação universitária na prisão. E preso pelo crime que cometeu; apesar de ser crime comum no seu tempo, Stoneley ainda não alcançou outro registro de quem tenha sido preso nesse período por sodomia. Nas fotografias, é impressionante como as mãos de Bushnell são imundas e qualquer trabalho forçado não seria tão difícil quanto para alguém de mãos finas como as do escritor inglês.

A estadia na prisão deu a Wilde outra visão sobre a sociedade, principalmente sobre o exercício desvairado do poder da elite sobre os mais necessitados. Quando em 1897 se viu livre do cárcere redigiu uma longa carta ao Daily Chronicle atacando amargamente o tratamento dado a um carcereiro de Reading: comovido com a situação de uma criança presa – as crianças de rua eram também levadas para os presídios – o carcereiro foi demitido simplesmente por ter dado alguns biscoitos à criança quando outros guardas tinham sido incapazes de encontrar uma roupa que servisse para o menino. Naquela ocasião Reading tinha em torno de 22 crianças presas.

Evocando De Profundis é possível ter uma noção do que foram os meses nessa prisão,  tida como um pedaço do inferno na terra; isso depois de passar por Pentoville e Wandsworth,  Como preso comum, Oscar Wilde deve ter passado pelas mesmas formalidades usuais de outros presos: despir-se completamente para ser examinado pelos médicos, ter os cabelos raspados para evitar a proliferação de piolhos, usar o famigerado uniforme listrado, comer do mingau de aveia ralo. Wilde não foi informado que em 30 de maio de 1895 sua obra A alma do homem sob o socialismo havia sido publicada.

Ligações a esta post:
Oscar Wilde lê uma passagem de “The Ballad of Reading Gaol”, aqui.


* Texto escrito a partir de anotações de “The beau of Reading jail: was prisoner 1122 Oscar Wilde's lover?”, de Maev Kennedy para o The Guardian.

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