Imposturas e simulacros em Umberto Eco

Por Alfredo Monte




“Existem por aí muitíssimos seguidores da teoria da Terra Oca. E é inútil dizer que os sites (e os livros que divulgam) foram criados por alguns espertalhões que especulam com um público de tolos e/ou devotos da New Age. O problema social e cultural não é representado pelos espertalhões, mas pelos tolos, que evidentemente ainda são legião”. 

(Umberto Eco, Sobre a Literatura)


Após a morte de Umberto Eco (1932-2016), com sua trama conspiratória que vinha de longe no Tempo, não houve outro jeito senão voltar a um romance que, em 1989 (época do seu lançamento por aqui), causou decepção a quem aguardava com sofreguidão um novo O nome da rosa.

Mais tarde, numa resenha, condensei meu precipitado desagrado no seguinte veredicto: pernóstico e insuportavelmente chato. Ainda mais constrangedora, relida hoje (bom que “mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”, nos ensina Guimarães Rosa), esta outra afirmação: a atualidade não é o forte de Umberto Eco como romancista! Ele, grande investigador da tolice humana, acharia muita graça, pois já colocara uma maliciosa armadilha para incautos no prólogo de O nome da rosa:

“… sinto-me livre para contar, por mero gosto fabulatório, a história de Adso de Melk… tão gloriosamente privada de relações com os nossos tempos, intemporalmente estranha às nossas esperanças e às nossas certezas. Porque esta é uma história de livros, não de misérias cotidianas…”

O pêndulo de Foucault narra como Casaubon (o narrador), Belbo & Diotallevi, funcionários de uma editora, durante o planejamento de uma coleção destinada a divulgar livros esotéricos e ocultistas, diante da mixórdia do material que se lhes apresenta (fãs de Dan Brown encontrarão o casamento de Jesus com Maria Madalena e sua relação com o Santo Graal no capítulo 65) e diante da constatação de que “quando se entra num estado de suspeita não se deixa de lado mais indício algum”, resolvem elaborar um Plano Único  cuja origem remontaria aos Templários, claro. O seu sucesso dependeria de encontros em determinados lugares na virada para o dia 24 de junho, a cada 120 anos. Só que o Plano se extraviou e agora inúmeras seitas e sociedades secretas andam à caça de pistas.



O Plano, portanto, é uma impostura engendrada por três intelectuais desencantados frente a um universo de simulacros e analogias forçadas (“esta extraordinária capacidade de colocar tudo junto…”; “… quando se quer encontrar conexões, encontra-se sempre, por toda a parte e em tudo, o mundo explode numa rede…”). Todavia, são levados a sério e, enquanto Diotallevi se encontra no estágio terminal de um câncer, Belbo é perseguido. O romance começa com Casaubon à sua procura, vasculhando seus arquivos de computador, depois indo a Paris. Isso aí, leitor, Paris, como em O Código da Vinci. Em vez do Louvre, o menos turístico Conservatoire des Arts et Métiers, onde está o pêndulo do título, cuja trajetória apontaria na data certa a localização do segredo resguardado pelo Plano.

Pernóstico? Insuportavelmente chato? A atualidade não é seu forte? Poucos livros têm momentos tão saborosos, quando o trio passa em revista as teorias e proposições das doutrinas secretas. Como Umberto Eco não é raso como Dan Brown e conhece tudo, movimenta uma massa de informações que ameaça tornar-se indigesta num volume de 600 páginas e 120 capítulos. Mas estamos num mundo de delírios, de suspeita (e a atualidade se desenha de forma inequívoca e vigorosa, principalmente no contraste das gerações a que pertencem Belbo e Casaubon), por isso o excesso é pertinente. Mais ainda, coerente. A parte inapelavelmente mal resolvida e enfadonha é a dos files do computador de Belbo, mesmo se considerarmos o pioneirismo na introdução do cotidiano informatizado no espaço ficcional.

Na maior parte do tempo, essa volta ao Pêndulo foi uma experiência deliciosa e uma revelação: como os filmes de Stanley Kubrick, esse livro já nasceu com a vocação de esgotar todo um gênero. Contribuem muito para o prazer inesperado alguns personagens secundários: Lia, uma das amadas do narrador, com seu bom senso inabalável e sedutor (a outra, Amparo, recebe a Pomba Gira na parte brasileira do livro); Aglié, o pretenso Saint Germain atuando ainda em nossos tempos; e sobretudo o delicioso dono da editora, o sr. Garamond, useiro e vezeiro em roubar cenas. Prova de que, se for perdoável a pobre rima, enquanto seus heróis reciclavam impostura, Eco criava autêntica literatura.

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