Melancolia, de Carlos Cardoso

Por Pedro Fernandes



Quem tiver lido a poesia de Carlos Cardoso – Na pureza do sacrilégio, é um bom exemplo – não deixará de encontrar na delicadeza do seu verso uma voz tranquila capaz de deixar expressar textualmente certo olhar taciturno sobre as coisas e o mundo. Alguém poderá se apressar em dizer que essa é uma condição natural de todo poeta. Mas, não se pode transformar uma recorrência numa universal. Isto é, há múltiplas possibilidades de ver e cada eu-poético recorrerá àquela mais natural capaz de intuir uma totalidade do seu mundo poético; reflexivo, irônico, revoltado, radical, político, saudosista, entusiasta, erótico, trivial, enfim, as variantes são inumeráveis.

Um desses modos de ver decorre de “um descompasso entre o tempo em que deveria realizar-se uma certa experiência e seu efetivo cumprimento”, o que, Luiz Costa Lima, o autor dos termos antes apresentados em destaque num estudo com mesmo título do livro de Carlos Cardoso distingue de maneira mais precisa como o “desacerto entre a meta e o tempo de sua realização”. Situa-se, nesse ínterim, a melancolia; assim, para o estudioso “o tempo é a atmosfera que envolve” esse estágio ou condição, que aqui, preferimos designar, como um modo de ver.

Melancolia, portanto, não é apenas um título derivado do mesmo termo que nomeia o segundo poema do livro ora em questão; é, sobretudo, a aparição de um elemento cuja significação se manifesta por condições distintas: ora como designação daquela voz oriunda de um olhar taciturno, o olhar com o qual o poeta enfrenta o mundo nesse novo trânsito; ora como signo capaz de constituir um traço de alinhavo entre os textos que formam a composição dessa obra – o leitor não deixará de notar que embora o termo aí apareça poucas vezes está em toda parte como se uma atmosfera indispensável à respiração dos poemas; ora ainda a proposição de um enigma cujas sombras alcançam lugares diversos.

Esses sentidos possíveis para a visão melancólica do poeta fundem-se numa constante universal para a literatura, principalmente, para a poesia lírica. Sabemos da inexorabilidade do tempo, do sabor de despertá-lo e descobrir sobre a inevitabilidade do que já foi. Melancolia se afirma como um livro-reencontro com o perdido e este não se opera na poesia do poeta carioca por revelação e sim por transmutação. O poema é, assim, o objeto manifestado como terceira coisa entre o tempo e a lembrança. Reiteramos, então, como observa Luiz Costa Lima, que a melancolia se constitui no como se; Carlos Cardoso alcança o locus da criação aqui transformada em expressão poética. Outras vezes, ou seja, não apenas no poema-título, o metatexto revela essa expressão: “onde chegar não saberei / o ilimitável me conduz / nessa terra vasta de luz pouca” (“Rimar com palavras simples”); ou “Em meu silêncio moram os verbos / que não sabem de forma clara, / o vírus da insônia / petrifica minhas articulações / e minhas palavras.” (“Assim como a neve”), para citar dois exemplos.

É possível que um leitor com olhos de psicanálise consiga determinar uma patologia do espírito melancólico, o que, o poeta, inteirado do trabalho de fingir, não nega, mas reforça que seu tratamento é a revelação de si palavra: “Para esse livro / não escreverei / o que é fácil de entender / o que é fácil de ler / o que é fácil de não ser / o que realmente sou.” Ou a compreensão do tedium vitae: “quero olhar / para minha melancolia, / e me entristecer, e sentir / que viver é simplesmente viver.” Esse mesmo leitor também não encontrará por entre esses poemas certa insatisfação profunda ante a existência. Olhar taciturnamente as coisas – como fez magistralmente Carlos Drummond de Andrade – não é, propriamente, da vista do sujeito insatisfeito, consumido pelo desencanto do mundo. Não há desencantos puros ou gratuitos em Carlos Cardoso, como poderia acontecer se fôssemos querer encontrar na sua poesia os reflexos da melancolia dos românticos; há necessária renovação do mundo pelo olhar que o perscruta e revisita.



Àqueles inteirados das relações sempre inevitáveis entre literatura e sociedade poderão observar a poética de Melancolia como resultada de um sujeito mergulhado num mundo preso no paroxismo, ora centrado integralmente no eu, ora ainda marcado por certos anseios de uma utópica coletividade. Mas, da mesma maneira que resulta impossível negar as possibilidades acima apresentadas, é notório que o melancólico aqui resulta, como dissemos acima, numa expressão. Ou melhor, essas possibilidades são matérias do próprio poema. No texto que guarda o título do livro, citado desde o parágrafo anterior, assim se revela o eu-poético: “Rasgo meu destino / e o trago sem revolta / retiro do bolso minha arma / uma folha de papel / e uma caneta, / não há pólvora! [...] Então uso as metáforas / e as imagens ao meu favor / quando escrevo sem medo / quando escrevo com dor, // grito grito e fico mudo / quando a tarde escurece, / o dia foi-se, tudo padece, / sem prazer, só silêncio, / um instante de alegria não há!” e, conclui: “Racha na minha cabeça / o sol que o dia quente no Rio de Janeiro / mantém mesmo a meu contragosto, // não gosto mas não fujo, / o frio dos países nórdicos / me atrai, a escuridão / durante o dia me convida / e sem volta ou dia, eu vou!”

Se há algo a que podemos recorrer pela leitura do livro de Carlos Cardoso da psicanálise – e que concilia com o ponto apresentado no parágrafo acima – é que a melancolia “pode ser reação à perda de um objeto amado”; Freud em “Luto e melancolia” também acrescenta que: “O objeto não é algo que realmente morreu, mas que se perdeu”. Assim, as transmutações produzidas pelos invólucros verbais, atestam, não um objeto, mas vários; perfazendo o caminho contrário do livro, destaquemos: a substituição de certo deslumbramento com um tempo rural por um tempestuoso – “Meus olhos já não cabem abertos / o barulho dos raios e dos trovões / me mantém acordado. // A chuva que não se recolhe / por teimosia desaba lá fora / e nesse instante teima / em abruptamente regar as plantas / e estimular o canto dos sapos. // Tudo que serve nesse momento / é silencioso e imprevisível // tudo que chega me deixa pasmo.” (“O canto dos sapos”); e a infância – “Que saudades tenho do passado / da infância onde tudo era sereno / da neve que cai sobre os carros / do vento suave que toca meu rosto / e do abraço de minha mãe. // Meu pai a me jogar para alto / e eu com a certeza de que ele me abraçaria / ficava feliz e sorridente ao flutuar no ar / e sem pressa / e sem alterar as forças da natureza / cair em seu colo.” (“Pretexto”); “Vontade de voltar a ser criança / e brincar de pique-esconde e lambuzar-me / de mariola e rapadura derretida” (“Espanto”).

O passado é uma constante nos poemas de Melancolia; tal recorrência nos leva acreditar que por este tempo outro o poeta guarda uma fidelidade semirromântica. Este não é mostrado com o interesse de cumprir um reencontro capaz de urdir uma unidade dispersa do eu-poético; o passado é interseção. Não é este tempo de refúgio, mas de visitação fundamental para o homem de hoje. É nesse sentido, aliás, que se apresenta o poema revelador “O passado”:

Passadas as horas ficou o passado
e o vago que é a lagoa Rodrigo de Freitas
e seus peixes mortos a boiarem.

É nele que me fixo.

O passado é fonte de riqueza
é nele que busco o saber
é nele que encontro o que busco,

o passado é mais hoje que o presente
que quando ausente
é no passado que eu volto.

O futuro que vejo é refém do passado que eu sei,

como uma couve que bota do seu broto
como uma árvore que um dia foi semente,

o passado é melancolia,
e de repente

isso é tudo o que eu queria.

Este poema, além de nos oferecer uma formulação sobre o tempo, atribuindo ao passado a condição de força perene que alimenta os demais tempos, afastando-se da compreensão cada vez mais ultrapassada de tempo fixado, colhe uma leitura segundo a qual nele reside a melhor resposta para os vazios do presente. Talvez seja este mesmo o signo que se oculta sob a palavra que nomeia esse livro – o antepenúltimo verso de “O passado” não nega essa possibilidade. O sentido é recuperado ainda na recorrência do elemento pedra, visível em vários poemas de Carlos Cardoso. A pedra assume-se enquanto expressão simbólica de união – tal como o enlace de tempos entre passado, presente e futuro; é o que se observa, por exemplo, nos primeiros versos de “O pato de pedra”, que revelam duas imagens do eu-poético ou os dois tempos aos quais pertence: “Vejo a sombra do que sou / nessas duas pedras, / uma alongada é o corpo. / Outra é a cabeça / da melancolia que descrevo.”

No poema “Pedra”, que se oferece como espécie de revelação do fazer poético de Melancolia, o eu-poético relaciona a dureza desse elemento à imutabilidade e à expressão da força concentrada, que nesse caso se mostra como o próprio poema e os interesses revelados nesse itinerário: “e tudo se comprime na pedra, tudo fixa, enrijece, / só o que se retrai se expande, / só o que é pedra me atrai”. Se o olhar taciturno recobra um Drummond, este interesse pelo pétreo logo nos retoma João Cabral de Melo Neto. Embora, o poeta desses versos esteja distante do fazer arquitetado do pernambucano não se distancia dele no trabalho comedido do poema: ora todo o texto, ora a construção dos versos, ora um e outro.

Em “O rolar da pedra”, um poema em que o elemento principal do título se torna figura agente, encontramos suas múltiplas significações e derivações corriqueiras: do apelo geográfico da paisagem que domina e distingue o Rio de Janeiro, cidade-pedra do poeta, aos materiais que formam as ruas, da pedra artifício de defesa das gentes sem defesa aos seixos que rolam dispersamente pelas ruas, da pedra material nas construções à pedra droga. Antes, num poema que carrega certo traço-piadista, “A pedra no carnaval”, o leitor encontra a pedra como personagem – uma transmutação dos sujeitos contemporâneos, envoltos no narcisismo, fechados no seu invólucro rígido e intocável? – ativa de situações e vivências típicas de humanos num carnaval. E, “Pedra pura”, em que a pedra é o próprio espírito ou o interior do poeta.

Em Melancolia encontramos um poeta interessado em constituir um diálogo mais perto dos ventos ainda vivos (porque perenes) do nosso modernismo – não apenas pelas recorrências espirituais desse tempo patentes nessa dialética entre o passado e presente, mas pelas referências ricamente construídas, algumas reveladas, outras nem tanto, e pelo interesse de transformação do lugar da memória e do lugar natal em universalismos do eu-poético. Alguém poderá dizer que existe nisso certo saudosismo. Mas não é. É a direção certa de um poeta cuja maturidade permite aproximar-se dos nossos melhores lugares e, da maneira sempre esperada, alargá-los no intuito de contribuir para o andamento da nossa literatura.

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