George Steiner, um mestre da literatura comparada

Por Jordi Llovet





Antes de entrar em contato com as grandes correntes da crítica literária do século XX, George Steiner (1929-2020) havia sido criado e educado em meios onde se falava e escrevia em três idiomas: inglês, alemão e francês. Esse poliglotismo fundacional na vida de Steiner foi o que mais tarde, em um de seus livros mais minuciosos e bem urdidos, Depois de Babel, permitiu-lhe não apenas praticar uma defesa da linguagem de acordo com a tradição que parte de Wilhelm von Humboldt e dos escritores do período romântico, mas também considerar que não havia melhor definição de cultura humana, como diversidade harmoniosa, do que aquela gerada a partir da multiplicação e dispersão de línguas. A admiração pelo mito de Babel, presente em todo o seu trabalho, permitiu a Steiner observar com suspeita todos os discursos e culturas que poderiam ter sido gerados em um só idioma. Sua ideia sempre foi que toda obra de arte da linguagem, como tal, fosse incorporada a um legado tão antigo quanto o nascimento simultâneo de literaturas orais, depois escritas, como fundamento universal da “humanidade”.

Sua experiência acadêmica nos Estados Unidos lhe permitiu conhecer as correntes da crítica literária anglo-saxônica, solidamente ligada à moral protestante, para cujos seguidores não há crítica melhor do que aquela que destila o próprio texto após uma leitura sensivelmente atenta: the close reading. Seus anos em Innsbruck o colocaram em contato com a filologia alemã, segundo a qual, como veria também na rica obra de Walter Benjamin ou Peter Szondi, não há melhor crítica a um livro do que aquela que consegue, nas palavras antigas de Hölderlin,  definir primeiro um texto e depois interpretá-lo, levando a um diálogo ilimitado com todas as suas determinações: biográfica, sociais, históricas, artísticas, ideológicas ou relacionadas ao peso da própria tradição literária. Mais tarde, novamente na América do Norte, graças à migração de intelectuais franceses ligados à crítica estruturalista, Steiner conheceu em detalhes os postulados pós-modernistas de seus representantes parisienses, pelos quais nunca demonstrou a menor admiração. Jacques Derrida, por exemplo, a quem ele respeitava, mas em cujo método ele nunca concordou, foi um dos líderes visíveis dessa crítica niilista, na qual um homem como ele, cheio de esperança, não podia acreditar, mesmo que lhe fosse proposta ou mesmo que ditassem as modas acadêmicas.

Ele herdou importantes contribuições da filosofia de Heidegger, a quem dedicou um livro fundamental; aceitou os postulados do new criticism até certo limite e leu estruturalistas e pós-modernistas relutantemente. Mas ele não concordava com nenhuma dessas escolas, que sempre se movia em torno de um único idioma e uma única tradição crítica e filosófica. Sua ambição sempre foi muito superior, sem dúvida, graças ao seu portentoso conhecimento: culminando na tradição do comparatismo – hoje ainda escasso –, Steiner moveu-se entre várias línguas e escolas de crítica literária em busca não de um método, mas de uma atitude generosa, expectante diante da riqueza de todo livro, curiosa e aberta à recepção de tudo o que seria o enriquecimento do escrito. Era uma mente que absorvia o máximo que podia, sempre longe de preconceitos.

Esse foi um projeto que Steiner construiu, desde seus primeiros livros, não apenas por sua condição de perfeito trilíngue, mas também por ter lidado, desde o doutorado, com os problemas, exemplos e lições levantadas pelas línguas e pela literatura clássica – sabia que hoje são tão clássicas a Odisseia quanto os romances de Thomas Mann – e, ao lado deles, o Antigo Testamento como uma pedra angular de suas ideias sobre a Palavra e seus poderes. Se esteve ou não aliado ao ofício litúrgico próprio de suas origens, o fato é que George Steiner sempre carregou plena consciência de ser judeu, isto é, pertencer a uma religião do Livro e da Palavra, uma que, mais do que as outras, não pode se compreender ou se praticar fora do campo da linguagem e da tradição escrita.

Se Benjamin era obstinado em submeter todo o texto – também “a história como texto” – a um exame rigoroso para alcançar os famosos 49 sentidos de uma passagem bíblica segundo a tradição talmúdica, Steiner chegou a postular que essa crítica literária – muitas vezes confundida com a crítica a tudo o que pode ser verbalizado; a música seria a grande exceção – deveria ser uma jornada sem fim em torno das palavras, nunca sujeita a um horizonte final, e muito menos a priori: a crítica seria um caminho sem fim, um procedimento hermenêutico ad infinitum. Essa é a tradição exegética do judaísmo, que permeia todos e cada um de seus livros.

Mas há algo mais. Steiner fugiu da ameaça nazista com seus pais e irmãos em Paris e depois em Nova York, os primeiros anos de um exílio que o forçou a se considerar, por toda a vida, um ser “desterritorializado”. Da mesma maneira que ele se manteve impermeável ao caráter dogmático das escolas de crítica literária que direta ou indiretamente possuíam uma impregnação mais ou menos visível de um cultura nacional não sucumbiu a nenhum nacionalismo – nem mesmo ao derivado da existência do Estado de Israel. Sua própria biografia – muito mais complexa do que a de Goethe, considerado precursor do tema “literatura universal” – o levou a se colocar em um lugar internacional, em um território “babélico” no qual todos tinham que ser contempladas e admiradas todas as produções humanas nascidas no coração da linguagem, a literatura como a mais rica de todas elas. Mas ele também se ateve aos frutos da história da filosofia, da sociologia de sua época, da evolução das ciências puras e aplicadas e de todos os discursos, científicos ou não, que lhe chamaram ao interesse, ainda que pequeno, por essa dignidade de Homo sapiens sapiens derivada de sua condição de “ser falante”: uma dignidade imerecida, como ele próprio considerou no final de sua vida, por causa da amnésia generalizada no mundo da educação – algo que lhe causou medo – por causa de desvio burocrático de universidades em todo o mundo e, finalmente, por causa do surgimento de novas tecnologias, que ele sempre observava com temor e desconfiança.

Os meios acadêmicos acabaram por respeitá-lo, mas por muitas décadas consideraram seu trabalho muito eclético e pretensioso, de perspectivas excessivamente vastas, frágil sobretudo em relação à institutio filológica – algo que Steiner sabia que sua filha havia superado, de sólida formação filológica – e algo mais próximo de um amateur do que de um especialista: havia o exemplo desses grandes sábios e filólogos muito bem formados, como Erich Auerbach, Ernst Robert Curtius, Karl Vossler ou Leo Spitzer, ainda muito influentes no campo universitário alemão e no anglo-saxão. Mesmo França havia seguido esse caminho, como evidencia o trabalho de comparatistas e “universalistas” tão imponentes quanto Sainte-Beuve, Paul Hazard ou Fernand Baldensperger, mas o feitiço do surrealismo e o enorme equívoco do nouveau roman – que se ruiu na França não apenas aherança de Proust, mas também a de Céline – fenômenos de pouco impacto nas letras alemãs e anglo-americanas, impediram que a crítica e a teoria literária francesas adotassem efetivamente a causa do comparatismo, algo que Steiner percebeu desde o início de sua carreira.

Outra virtude que acrescentou razões para o descrédito de Steiner entre os meios acadêmicos até muito tarde: sua declarada hostilidade aos parâmetros do “politicamente correto”. Para ele, como foi o caso de seus contemporâneos Allan Bloom e Harold Bloom, não havia mais literatura do que aquela que pudesse ser colocada no mesmo nível das grandes produções dos clássicos, de sua amada Ilíada – que leu pela primeira vez quando criança – até as produções dos autores exemplares do século XX. Esse extremismo se une ao conceito de “cânone”, do qual Steiner, como os Bloom mencionados, sempre foi um defensor fervoroso. Da maneira iluminista, ele imaginou uma humanidade educada no crisol da grande literatura, escrita na língua que foi, ou traduzida, enquanto dotada de uma categoria estética e dando outro passo – que talvez seja o que mais caracteriza o conjunto de seu trabalho –, dotado de uma densidade político-moral clara e insubordinável.

Por esse motivo, é conveniente encerrar essa reflexão sobre o lugar de Steiner no panorama da crítica literária dos últimos 60 anos, lembrando ao leitor algo que apenas sugerimos até agora: sua paixão – veja, nesse sentido, seus livros Paixão intacta e Presenças reais – e seu enorme respeito não apenas pelas grandes realizações da tradição clássica e pelo cânone do Ocidente, mas principalmente pelos livros fundadores – a Bíblia, no idioma grego – de sua linhagem. A leitura de qualquer uma de suas obras destila uma atmosfera piedosa que sempre leva a uma lição moral, como geralmente corresponde a qualquer teoria com base religiosa. Não há escritos de Steiner nos quais o estilo de um rabbi não ressoe – uma palavra equivalente a “professor” e “rabino” – nada pode ser lido sem que se ouça a voz de um crítico incomum que gerou um trabalho que não esteve apenas a serviço do esclarecimento dos textos, mas também, e talvez principalmente, do pensamento, escrita pensada enquanto bem-estar – salus, salvação – de uma humanidade que Steiner supunha, com certa tristitia, não mais a caminho da fala, mas caminhando em direção a uma silenciosa desolação.

* Este texto é uma tradução de “George Steiner: un maestro de la literatura comparada”, publicado aqui, no jornal El País.

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