Sobre Tolstói e Machado: duas concepções da natureza


Por Davi Lopes Villaça



Em seu livro Tolstói ou Dostoiévski, George Steiner aponta uma série de semelhanças entre as narrativas de Tolstói e as epopeias de Homero, buscando demonstrar o estilo épico do escritor russo. O crítico reflete sobre a relação entre autores e personagens, que se reflete em Homero na própria relação entre deuses e homens:

“O criador está onisciente e presente em toda parte, mas ao mesmo tempo é desprendido, impassível e incansavelmente objetivo em sua visão. O Zeus homérico dirige a batalha da firmeza de sua montanha, segurando os pratos da balança do destino, mas sem intervir. Ou, ainda, intervindo, somente para restaurar o equilíbrio, para garantir a mutabilidade da vida humana contra a ajuda milagrosa as excessivas conquistas do heroísmo. Assim como no distanciamento do deus, na visão clara de Homero e Tolstói há crueldade e compaixão.

Eles enxergavam com esses olhos vazios, ardentes e diretos, que nos observam através das fendas dos capacetes das arcaicas estátuas gregas. Suas visões eram terrivelmente sóbrias. Schiller maravilhou-se com a serenidade de Homero, com sua capacidade de comunicar o máximo de terror e dor em perfeito equilíbrio de tom. Acreditava que essa qualidade – essa naïveté – pertencia a uma época mais anterior e era impossível capturar com o temperamento sofisticado e analítico da literatura moderna. Daí Homero tirava seus efeitos mais pungentes. Tome, por exemplo, o assassinato de Laocoonte por Aquiles, no Livro XXI da Ilíada.

‘Meu caro,
Morre também tu. Tanto lamento, por quê?
Pátroclo, muito acima de ti, não morreu?
Não vês como sou belo e vigoroso? Venho
De um pai nobre e uma deusa gerou-me. Mas sobre-
Levam-te, e a mim, a morte, tanto quanto a Moira
Má. De manhã, de tarde ou no pino do dia,
Alguém, na refrega Ares-fogosa, o meu sopro
Vital há de tirar à lança ou, vibrando o arco, à flecha’.
Falou. Joelhos e coração falham
Ao outro: abaixou-se, ergueu as mãos, largou
O dardo. O gládio agudo sacando da bainha,
Aquiles golpeou-o, entre a clavícula e a gorja,
Nele embebendo a lâmina bigume. Caiu
De bruços e estendeu-se na lama. Espirrou
Um sangue escuro que a ensopou.

A calma da narrativa é quase desumana, mas, em consequência, o horror expõe-se a nu e nos comove de modo indizível. Além do mais, Homero nunca sacrifica a firmeza de sua visão às necessidades do páthos. Príamo e Aquiles encontraram-se e expressaram suas queixas, mas então eles se lembram da carne e do vinho. Pois, como diz Aquiles, de Niobe: ‘Ela se lembrou de comer quando ficou fatigada de chorar’. Novamente é a seca fidelidade aos fatos, a recusa do poeta em se comover por questões externas, que comunicam a amargura de sua alma.”

Steiner busca demonstrar como as qualidades de Homero, que Schiller julgou inacessível aos escritores modernos seriam atualizadas, na obra de Tolstói. Tornou-se lugar comum dizer que o moralismo do autor jamais conseguiu abafar a vitalidade épica, profundamente amoral, da vida retratada em seus romances. Como observa o crítico, “nenhum pacifismo tolstoiniano pode negar o êxtase que o jovem Rostov sente ao avançar sobre os vacilantes franceses”. Na perspectiva dos autores da Ilíada e de Guerra e paz, dotados daquela serena impassibilidade de deuses pagãos, Steiner identifica um elemento chave para a compreensão da obra de Tolstói, que é a ideia de natureza. Ela está associada, em ambos os autores, ao pulsar vigoroso, contínuo e inclemente da vida, que dá o tom e o ritmo da própria narrativa. Embora o retrato da morte seja uma presença constante e terrível na Ilíada, ele nunca serve de suporte a uma condenação da estupidez ou da futilidade geral da guerra – pelo contrário, esta é vista como valorosa, enobrecedora. De modo geral, todos os acontecimentos e catástrofes se integram numa percepção harmônica da realidade:

“Guerra e mortalidade trazem devastação nos mundos de Homero e Tolstói, mas o centro permanece: é afirmação de que a vida é, em si, algo belo, que os trabalhos e os dias dos homens valem a pena registrar, e que nenhuma catástrofe – nem mesmo o incêndio de Troia ou de Moscou é definitivo. Pois além das torres carbonizadas, e além das batalhas, ondula o mar escuro como vinho, e quando Austerlitz for esquecida a colheita irá, na imagem de Pope, mais uma vez ‘tingir a encosta’”.

A rapidez e a impassibilidade com que o poeta da Ilíada conduz a descrição dos horrores e sofrimentos expressam a fluidez de uma vida natural, orgânica. Uma vida aquém de qualquer complicação, que é exatamente o que deveria ser. A observação de Aquiles sobre Niobe – “ela se lembrou de comer quando ficou fatigada de chorar” – testemunha o movimento incessante de uma ordem natural (neste caso, fisiológica) que se reflete em todo o universo homérico, desde os feitos dos grandes heróis até o trabalho dos camponeses. Tudo faz parte do ritmo cíclico de um mundo harmônico, em seu processo contínuo de nascimento e morte, destruição e regeneração.

É somente quando esse movimento tem sua regularidade interrompida que a vida perde sua saudável organicidade, e a natureza cede lugar a uma condição problemática. Tolstói, a despeito de seu “parentesco” com Homero, é um bom exemplo disso. No início de Guerra Paz, deparamo-nos com uma miríade de personagens ricamente detalhadas, cada uma seguindo seu caminho particular. Parece então que o narrador bem poderia se limitar a acompanhar o fluir dessas vidas inconscientes e espontâneas, mas ele eventualmente se foca no destino de algumas personagens problemáticas: Pierre, Andrei e Nikolai. Personagens que acabam se deparando com o vazio da existência e por isso se colocam à margem dela. Já não são, portanto, como os heróis de Homero. Se Aquiles, ao invés de lançar-se impetuosamente no caminho da batalha, se perguntasse: “afinal, para que tudo isso?”, já não seria Aquiles, mas alguém como Hamlet, esse grande arquétipo moderno do indivíduo problemático. Diante das incumbências que a vida e o destino lhe colocam, Hamlet sonha com o suicídio. Todos os heróis problemáticos flertam com a morte, ainda que pareçam ou se mostrem incapazes de buscá-la: ela acena para eles com o apaziguamento de suas contradições, com o cessar da consciência que questiona e subtrai o valor de qualquer ação. O esforço dos heróis tolstoinianos é, primeiramente, o de reintegrar-se ao fluxo da vida que para eles se interrompeu. Mas isso jamais é atingível pela simples supressão da consciência, pelo retorno a uma condição anterior de ingenuidade e inocência. Essas personagens estão em busca de uma verdade que, na concepção tolstoiniana, como Steiner observa, só pode existir também na natureza. Um dos grandes desafios do autor ao longo de toda a sua obra foi o de conciliar seu desejo de aperfeiçoamento moral com sua expectativa de uma vida espontânea e natural – desvencilhada das convenções e instituições de uma pretensa civilização que tolhe no homem seus impulsos mais autênticos.

Parece-me interessante contrapor certos aspectos da narrativa de Tolstói a certos traços de nosso Machado de Assis. Em especial porque muito do que Steiner afirma sobre Homero, mirando sua ressonância no grande épico russo, vale também para o autor brasileiro, a quem dificilmente alguém atribuiria algo de épico. Recuperemos a observação do crítico sobre a Ilíada: “a calma da narrativa é quase desumana, mas, em consequência, o horror expõe-se a nu e nos comove de modo indizível”. Isso se aplica perfeitamente a Machado. Poucos autores foram capazes dessa comovente impassibilidade. Nos romances de sua fase madura, é difícil não nos abalarmos com a aparente indiferença que ele demonstra pelo sofrimento de suas personagens – mas é precisamente dessa atitude que nasce nossa compaixão. Assim como Tolstói (ainda que com diferenças gigantescas) Machado procura um olhar impessoal, que nada julga e mostra “as coisas como elas são”. Essa seria a perspectiva da própria natureza. Não confundir isto com o que faziam muitos dos representantes da literatura naturalista, que expunham o ser humano como um mecanismo previsível, determinado por alguns poucos e grosseiros impulsos animalescos. Tanto em Tolstói como em Machado a natureza é o que há de mais misterioso no homem, sempre maior do que ele mesmo e jamais se permitindo conhecer a fundo.

Como em Homero, o olhar de Machado passa pelo destino dos infelizes sem se deter sobre eles, acompanhando o fluxo dinâmico e incessante da vida. Mas tanto em Machado como em Tolstói há também uma profunda consciência desse processo, o que implica um distanciamento em relação a ele. Em Khadji Murát, Tolstói descreve como um jovem oficial no Cáucaso, embriagado pela vida e pela natureza selvagem, desvia os olhos dos companheiros feridos ou mortos em batalha. Ele instintivamente evita olhar para a morte, embora ela seja uma possibilidade constante para ele. Esse olhar, que suscitaria muitas e demoradas reflexões, é contrário ao espírito do épico, ao pulsar impetuoso da vida – ele pertence aos melancólicos, para quem o valor da existência foi posto em suspensão. Mas o narrador que descreve o comportamento do oficial está já dotado de outro espírito: nele há uma melancolia apenas sugerida. Isto talvez seja ainda mais sutil em Machado.

Recordemos a passagem de Dom Casmurro em que Bentinho, voltando de um dos seus encontros com Capitu, é chamado na rua pelo pai de Manduca, o menino leproso, para ver o corpo deformado do filho recém-falecido. Assim como o oficial de Tolstói, Bentinho evita olhar para a morte, tão contrária à vida que pulsa nele sob o efeito do recente encontro amoroso. Tal como esse encontro interrompe inoportunamente o fluxo dos devaneios do herói, interrompe também o curso do próprio romance. Por alguma razão, o narrador se põe a rememorar os antigos encontros e a troca de correspondência que mantivera com Manduca, em que os dois travaram acirrada polêmica acerca da principal matéria dos jornais da época: a guerra da Crimeia (1853-1856) – da qual participara o próprio Tolstói, então um jovem oficial de artilharia. Bentinho toma o partido dos russos, e Manduca o dos turcos, encerrando suas cartas sempre com a mesma declaração: “os russos não hão de entrar em Constantinopla”. Essa polêmica, para Bentinho apenas um passatempo do qual ele logo se cansa, constitui para o doente Manduca o próprio sentido de sua existência, o campo de batalha no qual ele se pode jactar-se com a mesma dignidade de um Aquiles: “Não vês como sou belo e vigoroso?”. Compreendemos então que um pobre leproso se agarra ao seu fio de vida com ímpeto igual, senão maior, ao de um adolescente que vive o êxtase do primeiro amor.

Em seus romances, Machado de Assis jamais criou heróis como os de Tolstói, para os quais o sentido da vida é posto em dúvida, pondo-se a buscar ou esperar uma resposta para o seu insuportável vazio. Tipos como Bentinho e Brás Cubas podem até tornar-se melancólicos, mas apenas em função de perdas bastante objetivas, como o afastamento das mulheres amadas. As personagens de Machado são, no mais das vezes, bons filhos da natureza, a cumprir de maneira inconsciente as demandas que lhes são impostas. Toda a complicação desses textos fica restrita à figura dos próprios narradores. Voltando do encontro com Capitu, Bentinho deseja evitar a visão de Manduca morto, e o narrador (isto é, o Bentinho velho) assume como seu o tom egoísta do adolescente enamorado, que só percebe a morte do outro como uma inconveniência:

“Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Por que morrer exatamente há meia hora? Toda hora é apropriada para o óbito, morre-se muito bem às seis ou sete horas da tarde”.

E, no entanto, é esse mesmo narrador que opta agora por interromper novamente “as melodias de sua alma” para contar a história de Manduca com uma consciência que o Bentinho de antes jamais poderia ter, como ele mesmo admite. A aparente insensibilidade do texto – que quer nos chocar justamente pela sua insensibilidade – aproxima os pontos de vista do velho e do adolescente de modo a, no fundo, apenas acentuar a distância entre eles. Seria possível ao Bentinho de antes desfrutar da vida de maneira tão intensa e espontânea se ele estivesse dotado da mesma consciência que se manifesta agora no narrador? É a partir dessa consciência, também, que conhecemos o real valor da polêmica sobre a Guerra da Criméia para Manduca. Entendemos que o movimento de cada personagem, por diferente que seja, expressa um mesmo anseio pela vida – anseio esse jamais desprezado pela figura dos narradores.

Em Tolstói, a natureza existe em conflito com as estruturas repressoras da civilização, que embotam e degeneram a sensibilidade humana, impedem o indivíduo de realizar sua personalidade. Em Machado, esse conflito simplesmente não existe, porque em sua obra não há qualquer oposição entre natureza e sociedade – afinal, a segunda só pode existir dentro da primeira. Não há em seus romances distinção entre personagens mais ou menos autênticas: cada uma age de acordo com necessidades, da qual no mais das vezes jamais se mostram verdadeiramente conscientes. Esse autores parecem ter concepções muito diversas de natureza, mas que não necessariamente se excluem. Trata-se, na verdade, de angulações diferentes sobre um mesmo tema (e é bom que não tenhamos que escolher entre uma e outra). 

Tolstói quis mostrar a natureza no homem: aquela parcela sensível e primitiva de nós que aspira à liberdade e se revolta contra as delimitações de uma sociedade fundada sobre preconceitos, constituída de forma arbitrária e artificial. Em seus romances, a busca do natural, do espontâneo, traduz-se como a busca de uma profunda verdade moral, o que só pode ser empreendido a partir do despertar de uma consciência verdadeira e dilacerante. Machado, por outro lado, mostrou-se mais preocupado em retratar o homem na natureza – uma natureza cujos desígnios não revelam de todo nem mesmo à onisciência dos narradores. Suas personagens jamais atingem aquele grau de consciência e ruptura característico dos heróis de Tolstói. Elas vivem, alheias à toda crise, sob a mira de um narrador que desvenda nelas necessidades particulares e inconstantes; isto é, necessidades que nunca são as mesmas para todos e tampouco permanecem as mesmas para cada um. Sejam quais forem as convenções, os preceitos morais que cerceiam a conduta de seus heróis, o que neles se manifesta com mais força é uma vida que se deseja cumprir e que se vale de todos os recursos para isso.

STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.

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