Hans Fallada. Loucura e inferno

 
 
Por Fernando Clemot
 
Meu querido filho, Uli, mamãe me disse que você não está se sentindo muito bem, que está muito abatido. Suspeito que você pode ter ouvido coisas sobre seus pais que o deixaram muito triste. Quero ser honesto com você...
 
Algumas coisas aconteceram — por minha causa — que nunca deveriam ter acontecido. Mas nada do que se conta aconteceu como as pessoas dizem: tudo foi menos grave e, sobretudo, reina a certeza de que tudo voltará ao seu lugar. Fiquei doente por muito tempo sem saber... Estou me curando e espero...
 
Vou escrever algumas linhas sobre mim: a casa em que moro é triste e estranha, e está cheia de homens muito doentes, dos quais sou o mais saudável. As regras da casa são muito rígidas: eles nos fazem ir para a cama às sete e meia e se levantar perto das seis. Como você entenderá, seu pai não consegue dormir tantas horas. Passo a noite acordado, olho as estrelas no céu, ouço o zumbido dos aviões, ouço o relógio bater as horas, invento histórias e penso em você.
 
Esta noite, seu pai, que lhe envia muitos cumprimentos, pensou apenas em você.
 
Ditzen
 
— Hans Fallada, em O bebedor

Hans Fallada. Foto: Ullstein Bild


 
 
Rudolph Dietzen vs. Hans Fallada
 
A literatura centro-europeia do entreguerra parece abalada pelo ódio, pela dor e pelo excesso. Escritores como Stefan Zweig, Joseph Roth, Walter Benjamin, Franz Kafka, Fernando Pessoa ou o protagonista deste artigo, Hans Fallada, buscam refúgio de uma sociedade que se transforma em tragédia por meio de drogas, álcool ou loucura.
 
Talvez um dos casos mais paradigmáticos seja o de Hans Fallada, cujo verdadeiro nome era Rudolph Willhelm Friedrich Ditzen¹ e que nasceu em Greifswald, no norte da Alemanha, em 1893. A carta enviada do asilo Strelitz a seu filho Uli em o outono de 1944 pretendia representar um marco, um ponto de virada numa vida comum. Algumas semanas antes, em julho de 1944, num incidente inexplicável, ele havia disparado uma arma que feriu levemente sua esposa Anna “Suse” Issel e entrou no manicômio com uma acusação de assassinato nas costas. Mas na vida de Fallada não era uma exceção. Desde sua juventude, sua vida tinha sido até aquele momento um carrossel de vícios, de momentos baixos, depressão e loucura. O escritor já havia atingido o fundo do poço muitas vezes. Talvez tenha sido marcado desde a infância pela presença de um pai severo e distante, um juiz da Suprema Corte, e por um acidente em 1909, quando mal tinha dezesseis anos, que quase lhe custou a vida e a febre tifoide pouco tempo depois do acidente reduziu sua saúde para sempre.
 
Crucial para o futuro do autor também parece ser um falso suicídio mascarado em duelo com seu amigo Hans Dietrich von Necker em 1911 e que terminou com a morte deste. Possivelmente, o fato escondia algum tipo de relação homossexual que eles queriam abafar, mas o fato marcou de forma definitiva a personalidade de Fallada, que desde então embarcou em intermináveis ​​comportamentos autodestrutivos.
 
Desde sua juventude Fallada se tornou um viciado em morfina (que ele reflete tão bem em Diário de um morfinomaníaco), álcool, nicotina e todos os tipos de fármacos*. Sua juventude e maturidade será um vai e vem entre hospitais, manicômios e clínicas de desintoxicação. Já durante a Primeira Guerra Mundial foi demitido do emprego e internado em várias clínicas na Turíngia, de onde saiu em 1919, terminada a guerra e com a Alemanha atingida por uma das maiores crises econômicas da sua história. Nesses anos trabalhou como agricultor num curral, uma vida que o apazigua e que de certa forma tentará reproduzir anos depois com seu exílio rural em Carwitz, onde viverá os anos mais calmos de sua existência.
 
Berlim: triunfo literário, prisão e loucura
 
O início dos anos vinte representa a decolagem literária de Fallada. A cidade, apesar da terrível crise econômica, é uma colmeia de vida e ideias que o alimentam. A capital alemã nunca esteve tão viva como naqueles anos: Potsdamer Platz, Alexander Platz, Unter den Linden, são uma colmeia de cafés, encontros, aproveitadores e sobreviventes. Desses anos são seus dois primeiros romances: Der junge Goedeschal, de 1920, e Anton und Gerda, de 1923, que ainda não têm grande repercussão. Os vícios de Fallada ainda estão lá, ele escreve com raiva e delírio, mas também se envolve em problemas financeiros repetidamente que terminam com alguns meses de prisão por fraude em 1923 e depois com uma sentença mais longa e encarceramento na prisão de Münster, por peculato.
 
A morfina é a principal companheira dessa época, mesmo acima do álcool. Ele não está mais em Berlim, mora na cidade de Neumünster, cerca de sessenta quilômetros ao norte de Hamburgo. Só por volta de 1928 parece que o destino lhe dá uma pequena trégua: se filia ao SPD (Partido Social-Democrata Alemão), começa a trabalhar em um pequeno jornal, o General-Anzeiger, e fica noivo de outra jornalista, Anna Issel, o grande amor de sua vida agitada.
 
Parece que algo muda nesses anos, que ele pode, apesar de continuar com seus vícios, redirecionar sua vida. Em 1931 mudou-se de volta para Berlim, para Neuenhagen, na zona leste da cidade. Já trabalha para a editora Rowohlt, seu filho Uli nasce, publica seu primeiro romance de sucesso Bauern, Bomben und Bonzen (1931) que é seguido logo após Pequeno homem, e agora o quê? (1932) que amplifica o eco do anterior. Nos Estados Unidos e no Reino Unido se tornaria o livro do mês em 1934 e com os direitos que arrecada parece que sua situação financeira é, a priori, aliviada de forma definitiva.
 
Os anos de Carwitz
 
Em 30 de janeiro de 1933, o Partido Nacional Socialista Alemão chega ao poder e Adolf Hitler é o novo chanceler. Após a morte de Hindenburg no ano seguinte, Hitler assume pleno poder como Führer (líder) da Alemanha. Nasce o Terceiro Reich.
 
Logo as leis antissemitas são aplicadas e Fallada começa a ser visto com desconfiança, desde seu romance Pequeno homem, e agora o quê? foi transformado em filme em Hollywood por produtores de origem judaica. Em abril de 1933, sua casa em Neuenhagen é invadida por membros da Gestapo e Fallada passa algumas horas em uma masmorra. O escritor está perto de um colapso nervoso. Sente-se ameaçado. Alguns escritores e amigos intelectuais são presos, retaliados e até enviados para um dos primeiros campos de concentração, Dachau, na Baviera. A saúde mental de Fallada sofre. Ele tem crises de ansiedade e fobias e seus problemas de dependência reassumem o controle. Nesse mesmo ano, 1933, tomou a decisão de se exilar internamente e para isso comprou uma fazenda em Carwitz, a uns cem quilômetros ao norte de Berlim, região rural onde permaneceria pelos próximos dez anos.
 
Esse exílio interior consciente é uma minoria na intelectualidade alemã. Escritores e intelectuais que optaram pelo exílio ativo o criticam por seu silêncio e até figuras emblemáticas da literatura alemã como Thomas Mann escrevem artigos criticando a decisão de Fallada.
 
Nos primeiros anos em Carwitz encontrará um refúgio que lhe permitirá escrever com alguma tranquilidade. Ele cuida de um pomar e tem colmeias. A filha deles, Lore, nascerá lá. Em 1935, a censura se intensificou e Fallada foi declarado um “autor indesejável”. Sua obra não pode ser traduzida ou reproduzida no exterior. Seu próximo romance, Coração velho para aventura, também tem problemas para ser publicado. A rédea da censura é apertada e nos anos seguintes o autor se concentrará na publicação de livros infantis e juvenis, inofensivos para os censores do Reich. Em 1937, essa situação se inverte. A publicação e sucesso de Wolf unter Wölfen marca o retorno temporário de Fallada ao seu antigo estilo sério e realista. O censor nazista reconhece no livro uma crítica contundente à República de Weimar e, assim, sua publicação é aprovada. Joseph Goebbels o destaca como “um grande livro” e até sugere que ele trabalhe em um livro de propaganda nazista.
 
Assim, seu próximo livro Der Gustav foi um olhar sobre as privações causadas pela Primeira Guerra Mundial, mas ao revisar o manuscrito Goebbels sugeriria a Fallada que ele estendesse a linha do tempo da história para incluir a ascensão dos nazistas e sua morte e sua representação como solução para os problemas da guerra e da República de Weimar. Fallada se vê algemado, capitula e escreve um livro adaptado ao que Goebbels lhe pede. Ele se sente mais pressionado do que nunca e com a ajuda de seu editor inglês, George Putnam, planeja uma tentativa de fuga para a Inglaterra em 1938, o que acaba fracassando. Fallada e toda a sua família passarão toda a guerra em Carwitz, no abrigo que finalmente se tornou uma nova prisão.
 
Guerra. O manicômio de Strelitz
 
“Foi uma farsa que o mundo só esperava ajudar o povo alemão a sair da lama, daquela enorme cratera de bomba na qual a guerra jogou todos eles. Por outro lado, também foi uma farsa que ele, o prefeito Doll, merecia uma consideração diferente do resto de seus compatriotas: como todos eles, ele era mais do que um bichinho malvado.”
 
— Hans Fallada, em Pesadelo
 
Hans Fallada. Foto: Uli Ditzen.

 

Os últimos anos em Carwitz são muito mais difíceis. Chega o racionamento, o fanatismo, as leis raciais extremas e até, a partir de 1943, também é racionado o papel que só serve para publicações oficiais. O editor Rowohlt morre e as relações com sua esposa são tensas. Fallada escreve apenas alguns livros infantis por pura sobrevivência e se afunda nos seus vícios e numa série de casos extraconjugais que complicam sua vida doméstica.
 
Quando ocorre o incidente do verão de 1944 que termina no confinamento no manicômio de Strelitz, o casamento está praticamente acabado. Os meses em Strelitz são indescritíveis: pouca comida, frio, privações de toda sorte, loucura e o rumor cada vez mais próximo da avalanche militar russa à espreita no Leste. Nesses meses escreveu O bebedor, um de seus melhores romances. Ele deixa o asilo em dezembro de 1944, com os russos já a poucos quilômetros da fronteira alemã.
 
Os últimos anos
 
Os primeiros meses do ano de 1945 são um banho de sangue. As últimas forças do Reich estão esgotadas na resistência de Berlim que está totalmente devastada. Em 30 de abril, os russos tomam a cidade e algumas semanas depois, com a rendição, a Alemanha se divide em duas zonas de controle: aliados e soviéticos.
 
Os últimos anos de Fallada serão vividos na área controlada pelos russos, que inclusive o promovem a prefeito da cidade de Feldberg, bem perto de Carwitz. Ele se casa com Ursula Losch, trinta anos mais nova que ele e também viciada em drogas. Os últimos meses de sua vida são gastos na escrita de Morrer sozinho em Berlim. Uma escrita louca, febril, que o faz apresentar ao editor um manuscrito de mais de oitocentas páginas em menos de dois meses. Parece que Fallada sabia que seu tempo estava se acabando.
 
Em 5 de fevereiro de 1947, ele foi encontrado morto em seu apartamento em Berlim. O relatório médico indica “causas naturais”, mas um suicídio por overdose provavelmente foi encoberto.

 
Notas
                                             
1 Ditzen adota o nome de Hans Fallada a partir de 1920 como resultado da fusão de dois nomes de personagens dos contos dos irmãos Grimm (“João de Sorte”, Hans, e “A pastorinha de gansos”, Fallada, já que um cavaleiro com esse nome aparece no conto).

Notas da tradução

* Os títulos de livros com tradução para o português são os mesmos com tradução para o espanhol. E as traduções deste texto são feitas a partir do espanhol. Exceto Morrer sozinho em Berlim, que está publicado no Brasil pela Editora Estação Liberdade com tradução de Claudia Abeling. Você pode comprar o livro aqui.

 
* Este texto é a tradução de “Hans Fallada: Belín-Carwitz-Strelitz. Locura y ifierno”, publicado aqui na revista Quimera.

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