David Foster Wallace na linguagem do outro

Por Alejandro Zambudio

David Foster Wallace. Foto: Gary Hannabarger


 
Ele foi o melhor escritor de sua geração. Um gênio sem igual. Parecia estar à frente em todos os sentidos. Foi uma criança diferente, com pais cultos que discutiam Ulysses na cama. Era elitista e obsessivo. Tão esperto que ficava entediado na escola, mesmo com os que eram bem mais velhos que ele. David Foster Wallace teve uma infância feliz e normal. Anos depois, ele insistiria muito nisso. Era um garoto magro, com o mesmo penteado de John Lennon em Rubber Soul. Como D. T. Max relata em Every Love Story A Ghost Story: “Embora gostasse das palavras, Wallace não era muito aficionado pela literatura; na verdade, achava que era mesmo bom em lógica e quebra-cabeças. Um de seus amigos de infância conta que certa vez compareceu a uma sessão de autógrafos de Wallace e ficou surpreso ao ver que seu amigo ainda era capaz de recitar o número de vinte e cinco dígitos que aprenderam quando crianças”. Foi na escola que começou sua luta de corpo e alma contra o que chamava de “a Coisa Ruim”: a depressão que o levou ao suicídio. Ele não aceitava ser diferente do resto e se esforçava para parecer “normal”. Quando sofria de ataques de ansiedade, rodava transpirando pela universidade com sua raquete de tênis para se distinguir de seus colegas e não ficar preso na figura do rato de biblioteca que tanto o incomodava.
 
Sua carreira literária começou nos Estados Unidos de Reagan, na época em que o projeto neoliberal acabou com o horizonte utópico do projeto popular da modernidade. Os personagens de seus romances eram sujeitos passivos e frágeis: pessoas isoladas de seu ambiente e viciadas na cultura do entretenimento. Sua literatura situava os personagens de seus romances em seu ambiente social como seres vulneráveis, deprimidos e impotentes em sua solidão. Refletiam o tédio diante do genocídio cultural levado a cabo pelo capitalismo, expressando-se coloquial e espontaneamente, mas também ansiosos, exigentes, ácidos e angustiados. Foi muito crítico da sociedade de seu tempo. Ele a sentia de muitas maneiras estranhas aos seus interesses. Para ele, não só Deus havia morrido, mas também o conhecimento. Em toda a sua obra, o niilismo de seus personagens não corresponde à desmobilização das massas nem é acompanhado pelo desespero e pelo sentimento do absurdo, mas por sua própria autodestruição como consequência do vazio do mundo. A pura indiferença designa a apoteose do sincretismo temporal e individualista. O homem cool de seu tempo não era um cidadão, mas um consumidor: uma pessoa que havia abandonado a esfera pública e os assuntos comunitários e se tornado um telespectador viciado em esportes e reality shows noturnos.
 
Como um bom nostálgico da modernidade, era obcecado pela aura que as grandes obras e seus autores exibiam. Sua escrita era torrencial, precisa, excessiva e exagerada. A prova disso não são apenas as notas de rodapé de Graça infinita, sua obra-prima. Em A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again, é possível ver essa dicotomia entre sátira e seriedade: a melhor carta de apresentação de um escritor que nunca renunciou ao olhar preciso do jornalismo ou à imaginação do romancista. Ele não estava interessado no niilismo de Bret Easton Ellis em Abaixo de zero ou O psicopata americano, que considerava mesquinho. Tanto ele como o seu amigo Jonathan Franzen sabiam que a ficção do final do século XX corria o risco de se esgotar com o poder da mídia, sobretudo da televisão: “O grande gancho da arte televisiva é ter descoberto formas de recompensar a visualização passiva. Algumas das coisas conscientes na maneira como escrevo tentam — qualquer que seja seu efeito — fazer o oposto. Elas deveriam ser desconfortáveis. Por exemplo, o uso de muitos cortes rápidos entre as cenas para que o leitor tenha que fazer algumas adaptações narrativas, ou a interrupção do fluxo com digressões e interpolações que o leitor tem que trabalhar para se conectar entre si e com a narrativa”, afirmou numa entrevista. Wallace também queria seduzir e persuadir, convencer por meio da inteligência. Muito antes de se tornar mundialmente conhecido com Graça infinita, ele publicou The Broom of the System em 1988, livro que passou praticamente despercebido na época. Em 1989 mudou-se para a cidade de Boston, para dividir um apartamento com seu amigo Mark Costello, e juntos escrevem Signifying Rappers. O livro é um híbrido entre a reportagem e o ensaio, no qual o rap é apenas a desculpa para falar sobre a frivolidade da indústria do entretenimento, a fronteira entre alta e baixa cultura ou a absorção da arte pelo capitalismo, e todas as obsessões de Wallace como um escritor.


Influenciados por Lester Bangs — o Lemmy Kilmister do jornalismo musical — os autores tomam a máquina do tempo para viajar até os anos 1970 e explicar as origens de um gênero que começou como uma explosão contracultural e expressão artística da cultura negra até a década seguinte, quando o rap começou a se posicionar como uma alternativa para aqueles que estavam fartos do pop e do rock de arena. Wallace, como um estudioso da linguagem, dedica um capítulo inteiro para analisar a riqueza lírica dos artistas de rap: sua gíria, os duplos sentidos de suas letras e o dinamismo e a criatividade de suas composições. Prestando atenção às aliterações e variações métricas, Wallace e Costello analisam o uso perspicaz de referências intertextuais da cultura pop e a variedade de interpretações de sua música. Wallace compara o rapper ao menestrel da Idade Média; mas, enquanto o menestrel se limitou a descrever a realidade existente e as façanhas de reis e nobres, o rapper usa seu ego para sobreviver em um mundo hostil. Há raiva, ira e ressentimento em suas canções. Ele é um dândi bastardo, consciente de que a própria vida é ainda mais importante que o trabalho, consciente de que a sociedade só se interessa por arte quando consegue se conectar com o artista. Wallace era fascinado pelo estilo cru da banda N.W.A. e pelo fraseado complicado dos rappers da costa leste. Havia não apenas uma nova forma de jogar com a linguagem, mas também uma forma mais do que certeira de explicar às pessoas as infinitas possibilidades da arte para retratar as mudanças sociais de seu tempo. Os autores viram neste ensaio um método diferente de transmitir ao público branco o que acontecia nos filmes de Spike Lee ou John Singleton. À medida que o rap se espalhava, famílias e centros de poder começaram a aparecer. Aí temos a rivalidade entre a costa oeste e a costa leste. O rap da costa oeste evocava um ambiente mais relacionado a gangues, como em GTA San Andreas. A música refletia o estilo de vida dos membros de gangues. O rap da costa leste enfatizava a pobreza e o aspecto comunitário da luta contra a desigualdade. A brisa suave do Pacífico levava os angelenos para as ruas durante o ano todo; a brisa gelada do Atlântico e os invernos longos e rigorosos de Nova York convidavam os negros a se reunirem em suas casas. Essas condições geográficas se refletiram na música, sendo Los Angeles mais lúdica e Nova York mais sombria.
 
Pensemos no estilo de um dos grandes pops de Los Angeles como Dr. Dre: seu estilo era fresco, despreocupado, com samples de música funky, como Parliament; do outro lado, RZA e seus samples de música de John Coltrane ou Charlie Parker; o resultado? Um som muito mais atmosférico, opressivo e envolvente. Os rappers da costa leste tinham maior proeza lírica do que seus rivais de Los Angeles, com jogos de palavras complexos e metáforas intrincadas. Os da costa oeste, ao contrário, eram mais expressivos e teatrais em seus gestos e mais diretos. Mas isso foi, acima de tudo, uma briga entre gravadoras: Death Row Records (Los Angeles) e Bad Boy Records (Nova York), que, na década de 1990, se transformou em uma briga entre os Corleone e os Tattaglia ou, pior ainda, entre fãs do Blur e fãs do Oasis. A MTV teve um papel fundamental na difusão do rap, tornando-se o leviatã totalitário do mercado fonográfico e o eixo dos desejos e aspirações das passivas classes médias de hoje. Como escreve Rodrigo Fresán: “tornou-se a aspiração warholiana de quinze minutos de fama, subordinando a música ao mercado, a contracultura ao massivo e transformando bandas e artistas em coreógrafos”. Um exemplo foi a colaboração do Aerosmith e Run DMC em “Walk this Way”. Para quem está em Boston, foi útil promover um de seus melhores álbuns: Permanent Vacation; para Run DMC, para invadir o mainstream e mostrar aos executivos brancos que o rap veio para ficar. Foster Wallace e Costello ironizam a união entre um grupo de rappers e roqueiros apaixonados por Led Zeppelin, que tudo aprenderam com artistas de blues como Willie Dixon, Howlin’ Wolf ou Bukka White, que plagiaram descaradamente.
 
Teria sido interessante se o livro tivesse sido escrito na década de 1990 e tivesse contado primeiro a amizade e depois a rivalidade entre Tupac Shakur e Biggie Smalls. Do que se passa dos anos 90 até agora, a mesma coisa acontece com a cultura hip hop como com o rock ou punk — especialmente desde que Shakur e Biggie foram assassinados: que foi despojado de qualquer elemento crítico ou de contestação. Veio do cinema para a indústria fonográfica o “mito do bom selvagem” dos rappers — acerto de contas, tiroteios e prisões —para retirar todo o seu poder emancipatório e assim rotulá-lo como objeto de consumo. Puff Daddy ou Jay-Z o tornaram aceitável para o mercado das listas de sucesso. O que seduzia do rap é que era uma música que reforçava os laços comunitários diante do individualismo de sua época. Não foi apenas uma reação à opressão e violência que recebiam dos poderes públicos, mas também uma resposta à desintegração do tecido humano causada pela sociedade de consumo. Mas após as mortes de Shakur e Biggie, os rappers reduziram o confronto político e aumentaram o culto à vida do milionário traficante. Aqui vemos um dos grandes paradoxos da contracultura, seja ela hippie, punk, grunge ou rapper: os rebeldes da contracultura acreditavam que o que estavam fazendo era radical e que estavam mudando a sociedade. Sua incorreção pretendia ameaçar um liberalismo que dependia de um exército de trabalhadores dóceis dispostos a se submeter à disciplina do sistema. No entanto, o próprio sistema parecia aceitar com calma essa suposta rebelião. Por quê? Porque foi ótimo para a indústria que esses caras mostrassem garotas balançando a bunda e usassem linguagem chula para vender rebeldia a esses jovens.
 
Aqui temos o exemplo do trap. Uma música que reflete na perfeição o estado de anedonia passiva de muitos millennials e centennials e o mal-estar da cultura do nosso tempo numa época em que o medo tudo assola. O trap é a música de uma geração que transformou o faça-você-mesmo da cultura punk e hardcore na ética do autoempreendedor: a subjetividade dominante da cultura liberal em uma linguagem muito mais crua, corajosa e polêmica. O trap não aspira emancipar ninguém. Sua ideologia é o lucro: nasceu cultural e morrerá sendo cultural, ao contrário das origens do rap. O trap quis ser mainstream, como sua linguagem, desde o início, e a sociedade rapidamente o aceitou porque reflete o niilismo de nossa época. Teria sido interessante ter lido alguma crônica de Foster Wallace sobre um show de trap. Mas ficaria desapontado: para ele seria apenas um continente sem ilha, uma cultura vazia de significado. Por mais nostálgico que fosse da modernidade, ele teria identificado os trapeiros como Vargas Llosa, aos amantes da telelixo: alguns incivilizados. O estadunidense aplicava o sarcasmo na sua escrita, na sua forma de olhar o mundo: “A tradicional lucidez dos depressivos, muitas vezes descrita como um desinteresse radical pelas preocupações, manifesta-se sobretudo como um descompromisso com os assuntos que realmente são pouco interessantes. De fato, é possível imaginar um depressivo apaixonado, mas um depressivo patriótico é inconcebível”, escreveu Michel Houellebecq em Partículas elementares. Frase com a qual o estadunidense se teria se sentido identificado. As palavras não podem dizer senão mostrar aquelas realidades que escapavam ao tangível como a própria existência: “Tive um professor [...] que me assegurava que a função da boa escrita era acalmar os perturbados e perturbar os que estão tranquilos”, disse numa entrevista. Ante a turbulência do mundo de hoje, Wallace teria rido de muitos de seus diagnósticos. Teria estudado com interesse a cultura do cancelamento ou o efeito do TikTok nos jovens. Também teria gostado dos debates com Žižek sobre a expulsão do homem branco e heterossexual na sociedade atual, e das teorias de Jordan Peterson sobre a coexistência das lagostas para explicar as diferenças entre homens e mulheres. Ou não, talvez ele tivesse se matado de novo.
 
O engraçado teria sido ver a reação de Foster Wallace ao trap e Motomami, para saber se ele teria deixado de lado seu elitismo cultural para colocar em perspectiva ou se havia se embriagado por aqueles meninos de moletom justo, símbolos de dólar tatuados nas pernas. bochechas e músicas que nos lembram que os jovens só podem aproveitar o presente porque o futuro lhes foi tirado. 


* Este texto é a tradução livre para “David Foster Wallace en la lenguage del otro”, publicado aqui, em Jot Down.

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