No comovente documentário sobre
sua vida
Unstuck in Time, Kurt Vonnegut passa boa parte do tempo em
crises de riso, mas, depois de um tempo, começa a parecer que bastaria
simplesmente dizer qualquer coisa, que ele passa boa parte do tempo
simplesmente em crises de riso, com uma espécie de tristeza que decidiu
combater mascarando-a com um riso estridente. Não há dúvida sobre a existência
dessa melancolia, pois o diretor do documentário, Robert W. Weide, ocasionalmente
segura a cena por tempo suficiente para que possamos ver como aquele riso
alegre termina com um timbre ligeiramente amargo. Eu diria até que o diretor
chega ao ponto de desacelerar algumas cenas e dar zoom, usando truques da
ficção televisiva para mostrar claramente a dor profunda do coração de
Vonnegut.
Mas como ele poderia não perceber
a tristeza de Vonnegut? O que sempre surpreende é seu vigor, a vitalidade em
seus livros e seu amor e curiosidade pelos outros, que também transparecem nas
cartas e conselhos aos jovens que ele seleciona em palestras universitárias e
ocasionalmente publica em revistas diversas que lotam a internet. Não é de se
surpreender que ele tenha ficado triste após o bombardeio de Dresden e ser um
dos poucos soldados estadunidenses que conseguiu recontá-lo (embora — ou
precisamente — como ele explica no documentário, a composição de
Matadouro cinco
tenha levado anos), e isso apenas alguns meses após o suicídio de sua mãe.
Uma cena romanesca mostraria o
momento crucial em que o personagem decide que vai reagir ao infortúnio com uma
poderosa vontade de viver. Se tal momento existiu na vida de Vonnegut, ele não
o reconta. Deter-se naquele momento solene e épico seria obscurecer a dor.
Quando lhe perguntam sobre o atentado, ou quando, durante uma visita à sua
escola, ele para em frente à placa ornamentada em memória de todos os ex-alunos
que morreram na Segunda Guerra Mundial e a revê, apontando com o dedo para os
nomes daqueles que conheceu e recordando seus sobrenomes — e eram muitos, e
todos ainda praticamente crianças —, nesses momentos, Vonnegut responde com um
riso nervoso, como se insinuasse que aquela é a única resposta possível ao
horror. Ou talvez esse riso seja seu aviso para não lhe fazerem mais perguntas.
O vitalismo também é evidente
quando ele recomenda que encontremos uma família grande, conselho que repete
com frequência. Ele próprio cuidou de sete filhos: os três que teve com Jane
Marie Cox e os quatro que ficaram órfãos quando, com poucos dias de diferença,
morreram sua querida irmã e seu cunhado. Os quatro sobrinhos adotivos aparecem
no documentário, sentados lado a lado em um sofá como personagens de desenho
animado, relembrando como, naqueles anos selvagens, Kurt saía da cabana onde
tentava se concentrar na escrita para gritar com eles para que parassem de
fazer barulho.
Há também entrevistas com suas
filhas, que se lembram com carinho do homem distante, porém delicado, que foi
um modelo e um bálsamo para tantos leitores, mas com quem nem sempre foi fácil
se aproximar. Mas, em meio ao riso, elas também imitam como seu pai escrevia,
sentado em uma cadeira de criança, quase agachado, sobre uma mesa a apenas
trinta centímetros do chão. E, ao contemplarem o que para elas era uma
domesticidade cômica e para os espectadores uma mitomania literária,
compreende-se um pouco melhor a exortação a se cercar de pessoas, a ter uma
família grande — “mesmo que sejam idiotas”, acrescenta ele ocasionalmente —
porque se sente que, no fluxo frenético dos dias, a transmissão e os momentos
compartilhados e fugazes são muito importantes, mesmo que sejam
incompreensíveis para nós. Que não entendemos nada do que fazemos no mundo e a
consequente dedução de que devemos nos esforçar para ser gentis uns com os
outros.
Uma cosmogonia e uma ética muito
simples que emanam de seus livros. Eles são tão divertidos que apagam a
sensação de isolamento que deve tê-los alimentado, mas quando vemos no
documentário, e ele nem precisa estar falando sobre sua vida, quando está
dirigindo ou fumando um cigarro em uma posição impossível ou subindo uma escada
com o ímpeto de um adolescente, de repente sua solidão se torna evidente, e
talvez seja por isso que ele teve que arrancar isso rindo e escrevendo até
cercá-la, porque senão, qual o sentido de escolher a profissão de escritor com
sua renda escassa quando se tem que criar sete filhos, mesmo vivendo na era de
ouro das revistas estadunidenses.
Isso também é contado no filme,
como somente quando a televisão começou a roubar fãs de revistas literárias
Vonnegut passou a escrever romances, que até então lhe rendiam muito menos
dinheiro do que contos. E também fala da coragem de Jane Marie e da injustiça,
tão tristemente frequente por outro lado, que sofreu quando foi abandonada por
outra mulher mais jovem quando Vonnegut se tornou famoso, porque quando Kurt se
trancava para escrever, era ela quem arrumava as camas e cozinhava para todos,
escrevias para revistas para compartilhar as histórias do marido e o encorajava
quando as dele falharam. E Vonnegut devia saber que isso era injusto, e é
também por isso que às vezes parece perturbado.
Quando terminei de ver o filme, a
noite estava tempestuosa como no início de uma história macabra. Voltei
pensando na minha premissa psicológica recém-inventada de que se você assiste a
um documentário e não se identifica com o tema, seja um escritor famoso de
Indianápolis ou um ovo Fabergé, se está um pouco louco. Tentar encontrar um
nome para a síndrome. Eu me sentia muito próximo de Vonnegut, atravessando a
cidade sozinho, enrolado no meu sobretudo. Aos arredores da minha casa, vi que
a energia elétrica tinha acabado no quarteirão inteiro.
Enquanto caminhava pelo corredor
escuro que levava à minha porta da frente, entre os contornos sinistros das
casas iluminadas apenas pelo reflexo avermelhado do céu, temi que o fantasma de
Rafael Cansinos-Assens, que morava a dois quarteirões de mim e em quem penso
frequentemente quando ando por aqui, me aparecesse. As ruas deviam ser tão mal
iluminadas naquela época. Então me lembrei de ter lido que Cansinos, que era
como o pai de todos os escritores miseráveis
da
vida bo
êmia anterior à Guerra Civil, dissera certa
vez, indignado, a um jovem escritor, talvez numa noite semelhante, algo como:
“Você nunca poderá escrever bem porque não tem coração”, e me pareceu que o
fantasma de Cansinos se sobrepunha ao fantasma de Vonnegut, ambos com seus
bigodes, um usando um grande sobretudo e o outro seu próprio grande sobretudo,
com o coração dentro, e me lembrei da edição que a revista
Poesía publicou em 1982 do romance curto de Cansinos,
Muerte e Transfiguración de Última, com umas ilustrações coloridas de
Ceesepe na capa que lembravam um pouco as capas de Anagrama daqueles anos e os
desenhos de Vonnegut que aparecem tão frequentemente no filme.
E foi pensando em todas essas
coisas que me pareciam enormes semelhanças entre os dois escritores tão
distantes que entrei em um bar onde duas garçonetes assustadas, iluminadas só
pelas luzes de emergência, me informaram que não podiam me atender porque a
energia tinha acabado e o caixa não estava funcionando, mas surpreendentemente podiam
aceitar se o pagamento fosse com cartão; eu não tinha cartão, então fui para
outro bar e a energia logo voltou para o quarteirão inteiro, e enquanto eu
estava tomando uma cerveja uma família estrangeira entrou para se abrigar da
chuva e comer algumas tapas. Uma das crianças me olhava com uma expressão
curiosa, então coloquei os óculos que eu estava usando como uma faixa na cabeça
sobre meu cabelo molhado, e quando a criança estrangeira me viu olhando para
ele com meus óculos embaçados e discretamente desviou o olhar, percebi que o verdadeiro
fantasma do bairro tinha aparecido, e era eu.
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