Oito poemas de Li Bai (Li Po)

Por Pedro Belo Clara
(Seleção, versões e notas)*




 
 
PARA TU FU,1 COM HUMOR
 
Ei! És tu, no topo da montanha Fan-Ko,
Com um enorme chapéu ao sol do meio-dia?
Quão magro, miseravelmente magro, tu estás!
Deves ter sofrido outra vez de poesia…
 
 
O TEMPLO DO CUME2
 
Esta noite fico no Templo do Cume.
Aqui, posso colher as estrelas com a minha mão.
Nem me atrevo a falar alto no meio do silêncio:
Temo perturbar os residentes do paraíso.
 
 
A TABERNA LAO-LAO TING3
 
Os amigos vêm até este lugar para se despedir, entre lamentos.
Oh, Lao-lao Ting, a taberna onde todo o coração dói.
Aqui, até a brisa da primavera conhece a mágoa da partida;
Não permite que os ramos do salgueiro fiquem verdes.
 
 
A NOITE DOS LAMENTOS
 
Uma bonita mulher descerra
A delicada persiana de bambu.
De expressão ausente,
As sobrancelhas tremelicam como mariposas.
O que lhe pôs o coração dorido assim?
No seu rosto apenas
Húmidos vestígios de lágrimas.
 
 
NUMA NOITE SILENCIOSA
 
Reparei no luar aos pés da minha esteira,
E pensei se não seria geada cobrindo o chão.
Ergui o rosto e olhei a lua sobre a montanha.
Baixei-o ao pensar na minha casa – distante.
 
 
A MONTANHA CHING-TING
 
Bandos de pássaros voam alto e para longe;
Um resto de nuvem parte também, errante e só.
Sento-me sozinho no cume de Ching-Ting, acima de todas as coisas.
Nunca nos cansamos um do outro, a montanha e eu.
 
 
EM VIAGEM
 
O delicioso vinho4 de Lan-ling tem quase a cor do oiro, e é cheio de sabor.
Vem, enche a minha taça, deixa o âmbar reluzir!
Se apenas consegues pôr-me ébrio, meu anfitrião, será suficiente;
Não mais sentirei as amarguras duma terra estrangeira.
 
 
DESPERTANDO DA SESTA NUM DIA DE PRIMAVERA
 
A vida é um sonho imenso. Para quê tanta labuta?
Sonolento o dia inteiro pela graça do vinho,
Encostado ao poste da porta de entrada.
Despertando, observo as árvores do jardim.
Escuta! Um pássaro canta entre as flores.
Por favor, em que estação estamos?
Ah, o cantor é um papa-figos,
Trovando à passagem da brisa primaveril.
Vou de pensamento em pensamento até a tristeza chegar.
De novo sirvo o meu vinho, começo a cantar alto,
E assim espero o cintilante nascer da lua.
A minha canção chega ao fim.
O que me apoquentava o espírito? Não mais o sei.
 
 
***
 
Li Bai, também grafado Li Po, nasceu no longínquo ano de 701, segundo a opinião da maioria dos estudiosos, na actual província de Sichuan, na China.
 
Vivendo na gloriosa era da Dinastia Tang, onde “cada homem era um poeta”, com apenas seis anos já sabia ler. Pela altura do seu décimo aniversário era versado nos grandes clássicos chineses e nas obras confucianas. Terá sido com esta idade que começou a escrever os primeiros poemas.
 
Adolescente, retira-se para a montanha Min, no norte da sua região natal, juntamente com um amigo eremita. Pela segunda década da sua existência, Li Bai percorre o país em deambulações constantes. Este carácter errante, e devoto das benesses do vinho, irá atribuir ao poeta a imagem de alguém livre e selvagem: um homem que renega a sociedade e os seus preceitos para abraçar uma vida de estrada e montanha, vivida pelo palpitar do próprio coração. Numa dessas viagens encontra a sua futura esposa, neta dum antigo ministro.
 
Após três anos no mesmo lugar, os frutos do sedentarismo matrimonial, muda-se com a sua família para um sítio onde via “carroças e cavalos a passar em frente da casa”. Nutrindo uma existência simples, de parcas ambições, deixa correr os anos sem alcançar qualquer conquista de revelo. Acaba abandonado pela esposa, a primeira de quatro, cansada de esperar pela promoção social do seu preguiçoso marido.
 
Com a fama de poeta a proliferar, retorna à estrada, reafirmando o seu estilo de vida desapegado e frugal. Numa das viagens conhece o poeta Du Fu (ou Tu Fu), um dos maiores de sempre da poesia chinesa, com quem desenvolve uma forte amizade. Pouco depois, encontrando-se com Wu Yun, um escolástico e taoista, visita a capital e acaba sendo apresentado à corte.
 
Por uma teia de encontros furtuitos e amizades travadas, os poemas de Li Bai chegam aos mãos do Imperador. Este, agradado, decide envolvê-lo na sua asa protectora. Até se dar um certo encontro de teor artístico, uma espécie de sarau de música e poesia, em que o poeta comparece totalmente embriagado na presença do Imperador.
 
Após três anos de vida na corte, não sem criar algumas inimizades graças à sua sátira afiada, Li Bai regressa à vida errante, desfrutando das suas deambulações por dez longos anos.
 
Quando se instaura uma rebelião contra o império, Li Bai vê-se no seio do movimento subversivo, apenas por aceitar um convite que, manda o bom-senso, deveria ser recusado. O movimento falhou e Li Bai, por volta do ano de 757, é encarcerado, com a pena de morte a pairar sobre a sua cabeça. Porém, os oficiais que analisaram o caso decidem-se pela via da clemência. Assim, Li Bai é exilado para o lugar a que hoje corresponde a província Yunnan. Dois anos depois, recebe amnistia.
 
Decorria o ano de 762 quando se regista a morte de Li Bai, na actual província de Anhui. Não se sabe ao certo o motivo, dividindo-se os estudiosos entre um envenenamento acidental por mercúrio ou o consumo abusivo de álcool. Os mais românticos apoiam-se, decerto, na lenda construída em torno do seu último momento: enquanto navegava, de noite, numa pequena barca, Li Bai, ébrio e fascinado pela beleza da lua, lançou-se ao rio para abraçar o seu reflexo nas águas, afogando-se.
 
Não necessitamos de recorrer a fantasias líricas para apurar a importância do seu trabalho não só na poesia chinesa como, muito mais tarde, nas produções que surgiram no mundo ocidental. Sem sombra de dúvida, Li Bai é um dos nomes maiores da poesia chinesa, um dos seus célebres Imortais (poucos mereceram tão alta distinção). Cerca de mil poemas permaneceram incólumes ao avanço dos tempos, embora sob alguns recaiam suspeitas quanto à veracidade da autoria. Ao ocidente, chegaram as primeiras traduções em 1862, por mão de Marie-Jean Léon. Ezra Pound, um dos mais fascinados com tal trabalho, considerou a obra de Li Bai “o maior exemplo da visualidade” na poesia chinesa.
 
Os seus versos são fluidos e tão naturais como o correr dum rio. De expressão simples, as imagens despertam emoções em traços que tocam fundo. Apresentando-se espontânea, capaz de elevar o extraordinário dentro do banal, a sua poesia abraçou aquilo que hoje poderemos designar de “louvores do vinho e da embriaguez”. Com tal originalidade, desbravou caminhos a imensas gerações futuras, nacionais e estrangeiras, a arriscar a expressão poética no campo da ebriedade.   
 
Notas:
1 Também grafado Du Fu (712 – 770). Um dos maiores poetas chineses de sempre, pertencente ao famoso grupo dos “Imortais”. Neste breve poema bem-humorado é possível entender as diferenças entre os dos amigos, no que diz respeito ao entendimento da poesia e a sua expressão: enquanto Li Bai valia-se essencialmente da inspiração, sendo um poeta muito natural e espontâneo, Du Fu era o típico arquétipo do artífice da palavra, pautado por níveis máximos de exigência. Não admira, portanto, que a sua poesia tanto se tenha distinguido pela excelente técnica de execução.
 
2 Poema de autoria incerta. Originalmente escrito numa pequena placa ostentando uma certa pintura, foi encontrado entre as vigas do tecto numa sala deste templo. É preciso esclarecer que o lugar é bastante remoto, pelo que o poema permaneceu escondido nesse local por vários anos, até um magistrado o ter descoberto. Li Bai visitou realmente o templo, e muitos reconhecem nas linhas do poema o seu estilo. Outros, defendem ser um trabalho dum certo Yang, um obscuro poeta (e aqui colocamos uma interrogação) mudo.
 
3 Situava-se no topo duma colina, às portas da cidade de Nanquim, no leste da China. Era um lugar de confraternização, um ponto de despedida, onde amigos se reuniam para a prestar o seu “até breve!” àquele que iria empreender uma qualquer viagem — não sem antes trocaram as costumeiras “taças de despedida”.
No último verso do poema temos uma referência a um antigo costume chinês: quebrar um ramo de salgueiro e presenteá-lo ao amigo que estava de partida.
 
4 É sempre importante relembrar que, apesar da palavra empregada, “vinho”, no universo oriental, não é uma referência à famosa bebida tão apreciada no mundo ocidental. Aqui, o principal componente não é a uva, mas o arroz.

 
* A partir das versões inglesas e anotações elaboradas por Shigeyoshi Obata para The Works of Li Po, The Chinese Poet (E.P. Dutton & Co., New York City, 1922. reimpressão da Kessinger Publishing)

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