Os melhores de 2019: prosa



Serotonina, de Michel Houellebecq.
O escritor francês é, sem dúvidas, um dos romancistas contemporâneos com melhor faro para dizer sobre o longo período de intermitência para o fim dessa civilização. Não são poucos os escritores que ocupam esse lugar, mas o francês tem uma vantagem própria: está entre os mais originais pela precisão com que consegue capturar no interior da volubilidade ou da multiplicidade das questões o ponto fundamental capaz de nos colocar frente a frente com a versão mais amarga e cruel de nós mesmos. O romance aqui em destaque não foge desse interesse. Ou melhor, se desfaz da exceção ao constatar nossa própria condição de limitados e incapazes frente aos problemas do mundo. Alguns leitores poderão perceber que na atmosfera carregadamente sombria e intempestiva dessa narrativa paira algum veio de esperança. Mas, não. No deserto, nem tudo que reluz é água. Este é um romance sobre a incerteza de encontrarmos uma alternativa capaz de nos reabilitar enquanto humanidade. Leia mais aqui

Por cima do mar, de Deborah Dornellas.
Com este livro, a escritora recebeu o Prêmio Casa de Las Américas em 2019 na categoria Literatura Brasileira. Nele se conta a história de Vitalina da Conceição Brasil, uma mulher negra, historiadora, professora na Universidade de Brasília, filha de pai cearense e mãe mineira. A protagonista nasce numa favela no Distrito Federal e em pleno período da construção da capital do Brasil. É ela própria quem reconstrói sua história que começa por Benguela, em Angola. Além do denso tecido feminino com o qual a narradora entretece sua narrativa, este é um romance que perfaz o caminho inverso da diáspora africana e nos oferece, no seu intercurso, uma parte importante da história do Brasil circunscrita nas bases de formação e margens do país. O trabalho de Dornellas não se restringe apenas a escrita; ela também construiu um conjunto de telas que ilustram e ampliam as fronteiras da narrativa.

Os anos, de Annie Ernaux.
Este romance se constitui de, e pode ser descrito assim, um conjunto de reminiscências que evocam desde as raízes familiares mais próximas da narradora até alcançar o presente, o tempo da narração. Além da universalização do sujeito da enunciação, a escritora privilegia um tempo eterno, o presente. Mas, apesar de todas as inovações narrativas, digamos assim, esta não é uma obra cujo interesse é se filiar no acalorado debate (patente sobretudo nos estudos literários) acerca da condição conceitual de um termo de um todo problemático, herança do complexo conjunto de desconstruções operadas no interior das revisões sobre as noções vigentes durante longo tempo da narratologia: a autoficção. De toda forma, da mesma maneira que sempre lembraremos Annie Ernaux por sua posição inovadora na transformação do eu em elemento universal, também lembraremos sua literatura com a que demove a autoficção do conceito simplista de confissão. Ao destituir a singularidade de sua existência em nome de um universo desfeito de fronteiras subjetivas (ou limitado apenas pelas linhas de seu lugar) Os anos também não deixam de problematizar a força subjetiva que antecede a existência de toda narrativa. Isto é, estamos diante de uma obra que problematiza indiretamente alguns lugares do debate sobre o modo narrativo ao qual se filia. Leia mais aqui

Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos.
Este foi o romance de estreia do escritor mexicano. Publicado em 2010 e dois anos depois traduzido no Brasil. Essas informações, apesar de encontradas em qualquer lugar na web, são aqui recuperadas por algumas razões e a principal delas diz respeito à maturidade literária de um escritor logo na sua primeira aparição; isso não é um fenômeno inédito – novidade é se sustentar no mesmo ponto alto de estreia – mas é, cada vez mais, algo raro e incomum boas estreias. O natural é que toda obra interessada em merecer o designativo de literária – e não é possível se desfazer do valor embutido nesse termo – ofereça-se como novidade, no sentido de propor alguma distinção entre o usual, no amplo universo das criações. Festa no covil desafia os limites mais complexos de construção de uma narrativa. É um relato contado em primeira pessoa e esse ponto de vista é o de uma criança. Tochtli é um pequeno príncipe herdeiro do narcotráfico e ele nos conta sobre seu mundo em três partes: seus gostos nada usuais nessa fortaleza de muitos quartos e alguns segredos onde vive recluso com o pai e os empregados; a viagem de fuga do México à Monróvia onde fica por algum tempo sempre alimentado pela ideia fixa de completar seu minizoológico com um hipopótamo anão da Libéria; e sua obsessão com a cultura dos samurais japoneses, adquirida pelos filmes do gênero vistos repetidas vezes, bem como a conquista de acesso a uma parte significativa do mundo privado do pai. Tudo nesse romance é simbólico e situado entre o limite do factual e do imaginário. Leia mais aqui

O espírito dos meus pais continua a subir na chuva, de Patricio Pron.
Este é um romance que se refere aos apagamentos da memória e à necessidade de não nos perdermos totalmente de seus fantasmas; por mais perturbadores que sejam, perdê-los, ainda que aparentemente isso seja uma inevitabilidade, pode significar definitivamente nossa morte: “nós também somos pessoas que ainda vão chegar”, diz a citação a Marcelo Cohen na última parte do romance. A conclusão poderá parecer óbvia, mas sua lição, em tempos de negação, é profunda. É um alerta. Leia mais aqui

Moedor de carne, de Eduardo Lisboa.
No campo das artes, o minimalismo trata-se de uma corrente surgida na década de 1960 que tem como objetivo reduzir os elementos que constituem o objeto artístico às suas formas mais simples, no intuito de alcançar um lugar central e constitutivo da representação. Desde sua aparição nas criações plásticas, esse conceito se expandiu e se tornou presença em várias frentes dos saberes, constituindo mesmo num estilo universal de ver e ser. Na linguagem, por exemplo, na década de 1990, se constituiu o que agora se conhece como Teoria Minimalista a partir da perspectiva de uma gramática universal reduzida a apenas dois níveis de representação, o de forma fonológica e o de forma lógica, de acordo com Noam Chomsky. Eduardo Lisboa construiu assim, com esta base e se utilizando do que na teoria narrativa agora se conhece como micronarrativa, um exemplo de transferência desse conceito de arte minimalista para a literatura. E se esse experimentalismo ainda não fosse suficiente, integrou a estrutura do microconto ao poema. O resultado pode ser apreciado num conjunto de 64 textos que percorrem e recontam situações das mais triviais. Propositalmente repetitivo na maneira como nos apresenta suas personagens – um traço distintivo do estilo minimalista – o que se observa é uma tentativa de captar o cotidiano por aquilo que o é: uma complexa integração de situações que são, quando vistas de perto e na sua repetição, completos absurdos. Isto é, estamos diante de um conjunto de observações muito agudas do nosso mundo cujo interesse é sublinhar que as fronteiras entre o que designamos como verdade das coisas se situa entre o fato e imaginação. A saída desse universo nos coloca em choque com o nosso próprio universo e essa uma força formidável que coloca Moedor de carne entre os livros feitos para permanecer em nós porque capazes de refundar nossa visão da grandiosidade das coisas, figuras e situações comuns.

A uruguaia, de Pedro Mairal.
Neste romance, o escritor recupera uma variedade de situações para legitimar a inoperância do amor enquanto chama eterna capaz de fazer perdurar o que é simplesmente pulsão de um corpo por outro corpo alimentada por uma durabilidade longa ou breve. Através desse romance, que deve ser lido como uma carta na qual um narrador se confessa para sua companheira, Pedro Mairal universaliza toda a angústia dos sujeitos incapazes de colocar um ponto final numa relação ainda que em frangalhos e posterga pela farsa dor e ódio. Não sobra mesmo nem para o idealismo platônico, é claro. Lembre o leitor que o amor em ruínas que presenciamos é termo de um romantismo que seduz a todos com sua lábia de paraíso eterno. Leia mais aqui

A promessa, de Friedrich Dürrenmatt.
A riqueza dessa novela reside na maneira como o narrador se detém não na ação, caso também recorrente nas narrativas policiais, e sim na condução do acaso. Quer dizer, não estamos diante de uma investigação, quase sempre beneficiada por uma pequena marca, hipótese ou suspeita, mas somos levados a mergulhar no interior de um dilema do homem por redescobrir outras estratégias de alcançar a compreensão sobre a realidade a partir das vias quase inacessíveis do simbólico. Nesse ínterim, o investigador precisa substituir a razão pela intuição, a precisão do cálculo pelas possibilidades de resultados oferecidas e estar preparado para o pior dos destinos: o de não desvendar a verdade que procura. Substitui-se, por fim, a própria noção do homem enquanto potência capaz de justificar sua realidade como um modelo fundado em verdades incontestes pelo homem entregue às potências do acaso, estas que são as que regem toda a existência. Friedrich Dürrenmatt aproxima a narrativa policial do lugar que qualquer obra de arte não pode deixar: sua própria natureza e as múltiplas cores que dão tom à vida corriqueira a fim de explorar nela o que de monstruoso protegemos ou como estamos fadados ao fracasso de não nos conhecermos integralmente, por mais que inventemos domínios e estratégias. Leia mais aqui

O rei das sombras, de Javier Cercas.
Já uma vez Javier Cercas havia visitado o tema da Guerra Civil Espanhola: em Soldados de Salamina. Mas, se é dito que um escritor forja de suas experiências o material com que produz seus universos ficcionais, ainda havia ficado coisas para dizer. Os fantasmas que levaram o escritor a retornar à questão provam que eram maiores e mais complexos e, portanto, impossíveis de apaziguá-los com a ficção. Desses fantasmas, quase todos nós temos os nossos; acontece que nem todos são, como Javier, escritores. A razão porque o retorno do escritor espanhol ao doloroso tema do romance de 2001 se constitui sempre um receio que nasce da crítica interrogativa – mais um romance sobre a Guerra Civil – e se transforma em espécie de refrão ao longo da obra, numa tentativa de convencimento do próprio autor e, por conseguinte, do leitor, de que este não é mais um romance sobre a Guerra Civil. O rei das sombras é a história possível de um rapaz que lutou por uma causa injusta e morreu do lado errado da História, qual sublinha redutoramente a sinopse da obra; nele se perfaz a compreensão segundo a qual se o passado não altera o presente, ele modifica o sentido e a percepção do futuro, ou para recuperar os termos aqui parafraseados: “Se não é verdade que o futuro altera o passado, é verdade, no entanto, que ele modifica o sentido e a percepção do passado”. A primeira sentença é do leitor, a segunda do escritor. A do escritor recobra sobre a inviabilidade de acesso à verdade histórica; a do leitor é de que o passado pode servir de instrumento a que não se cometa os mesmos erros em nome de idealismos gratuitos. Leia mais aqui

Assombrações, de Domenico Starnone.
O enredo de Assombrações é bastante simples: um artista plástico de meia-idade quer isolar-se para dar conta de uma encomenda quando sua filha lhe entrega o pequeno neto para uma estadia enquanto ela viajará a um congresso. A objetividade do escritor italiano não se resume ao plano morfossintático, expande-se ainda para a conformação da narrativa; isso porque se dedica à minúcia, a uma escrita do reparo, razão aliás fundamental para o exercício de exploração sobre a profundidade das situações e como os pequenos gestos não são casualidades e sim forças fundamentais para levar os indivíduos às condições menos esperadas. A maneira como Domenico Starnone organiza toda a ossatura da narrativa arrebata o leitor profundamente para aquelas fronteiras menos imagináveis. Aliás, o trabalho ardiloso do escritor italiano em prender atrair toda atenção do leitor para a situação-limite, tornando-a em algo que impressiona é sua marca – ao menos neste romance e em Laços. Estamos diante um criador em pleno domínio das ferramentas de narrar, condição sempre rara na literatura. Leia mais aqui

O eleito, de Thomas Mann.
É curioso que este romance não figure, de imediato, entre as obras mais importantes de Thomas Mann; curioso, mas compreensível para quem escreveu Doutor FaustoOs BuddenbrookA montanha mágica ou José e seus irmãos, obras de grande fôlego que juntas atentam contra toda impossibilidade de realização de um só homem. Há quase duas décadas fora de catálogo no Brasil, a obra é reapresentada e abre-se, assim, outra possibilidade, a de redescoberta, nesse caso diferenciada, que é a de compreendê-la parte importante do amplo universo de um criador exponencial. As razões para tanto são diversas, mas basta que se diga uma delas: neste romance está toda a técnica do escritor e é, portanto, uma oportunidade valiosa para os que ainda estão à beira de percorrer suas maiores invenções. História, mito e fantasia atuam neste romance e formam uma unidade cujo resultado é uma narrativa de matizes e profundidades diversas. Thomas Mann visita o passado medieval alemão e recria à maneira que só é capaz pela ficção imaginativa a história de um papa chamado Gregório (possivelmente Gregório V, o homem que subiu ao papado entre 996 e 999 precocemente e que findou envenenado possivelmente pelos partidários do papado anterior). À história e à ficção, o escritor revisita a própria literatura da época que registrou o que se formou enquanto matéria cultural e imaginário acerca desta figura, entrevista por pelo menos dupla via: uma reencarnação dos poderes divinos na terra ou o produto não menos miraculoso do demônio que deu graças a uma personagem que na sua gênese foi um enjeitado de Deus e dos homens seus fiéis. Leia mais aqui

O mar, o mar, de Iris Murdoch.
Criteriosamente, Iris Murdoch, revisita a consciência de um sujeito extremamente egocêntrico através de um homem que não se envergonha dessa condição talvez porque sua vivência no teatro, essa arte que ele próprio caracteriza como vazia e mentirosa, o tenha afetado de uma maneira que o afastou da possibilidade de destituição entre o ficcional e o vivido. Todo o verão em Shruff End é o tempo de uma encenação da qual Charles Arrowby perde o controle de dirigir suas personagens e mesmo a si, afinal, nada sai conforme suas marcações, nem seus planos frutificam. Aqui está a outra ponta de seu fracasso, justo porque a medida da vida nunca é a mesma do palco. O romance da escritora inglesa valoriza a existência como limiar, um conflito para o qual nem sempre temos as alternativas de como vencê-lo. Existir é esse eterno embate entre uns e outros, esse eterno conflito entre nosso mundo interior e o mundo exterior. Tudo isso pode até ser representado pela cena, entretanto, impossível de se alcançar sua força como no vivido. Leia mais aqui

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