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A casa de ler no escuro, de Maria Azenha

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Por Pedro Fernandes A vida pode ser uma mulher atravessando a rua A mulher pode ser uma criança com uma flor de cinzas na boca A flor pode ser um homem enforcado na lua Os versos que abrem este texto são do poema “Aviso”, do livro A casa de ler no escuro , um dos vários títulos da poeta portuguesa Maria Azenha – este publicado no Brasil e entre os melhores de poesia editados por aqui em 2016. Antes de olhar mais de perto a antologia, é preciso sublinhar que o livro é um pequeno ponto na constelação poética da poeta, porque sua singularidade divide lugar com outros poemas como os reunidos em De amor ardem os bosques . Neste, há todo um trabalho em torno da palavra que nomeia a obra, o que não chega a constituir o diferencial de A casa , porque aí as preocupações do eu-poético são também outras. Mas, em De amor tudo está alinhado para um só propósito e sua poesia é percepção simbólica em torno de uma palavra, como águas que correm para um mesmo reservatório. Trata-se...

Derek Walcott

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Derek Walcott .Foto: Leonardo Cendamo Desde seus primeiros poemas, as visões sobre o mar de Derek Walcott configuram uma poética que articula saberes e memórias fragmentadas sob a continuidade das reminiscências da resistência africana que persistem sob a história antilhana. Seu longo poema Omeros* foi escolhido como a epopeia genesíaca dos despossuídos da terra porque “inscreve o nome próprio de um povo e de um lugar na tradição narrativa” (cf. Robert D. Hammer), isto em sua própria versão da história e da arte. Ao longo de seu constante movimento poético, o poeta constrói a odisseia do regresso à casa, o canto de uma pátria sonhada, uma solidariedade próximo à criada pela poesia oral tribal. “Qualquer cultura na qual convivem diferentes raças, inclusive aquela em que uma raça se considera corrompida por outras, é, por sua própria mistura, uma sociedade mais rica que qualquer outra. Em literatura, a pureza étnica não existe. E buscá-la seria uma história sem fim. Po...

Boletim Letras 360º #213

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Obrigado, Derek Walcott! É tudo o que um leitor pode dizer por um escritor e sua obra (imagem). Era 11h30 da manhã de 17 de março quando soubemos da morte do autor de Omeros , divulgada no nosso Facebook dez minutos depois. Não importa o que se diga nessas ocasiões, porque é sempre o vazio que fica. Mas, no caso dos escritores, fica também uma obra para ser lida e seus reflexos estarão vivos nas produções mais adiante.  Segunda-feira, 13/03 >>> Brasil: Parte do acervo de Rachel de Queiroz, com 3.063 obras (entre livros e periódicos), estará disponível para visitação a partir de maio na Biblioteca Central da Universidade de Fortaleza Depois que a escritora morreu, em 2003, as obras foram adquiridas pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que acaba de doar o acervo para a universidade cearense. A maioria dos títulos que ficarão expostos traz dedicatórias para a autora de O quinze ; são obras de nomes que vão de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira a ...

Diálogos entre Riobaldo / Tatarana e Tony Soprano na travessia que é o existir

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Por Rafael Kafka Riobaldo / Tatarana me faz pensar em Tony Soprano e vice-versa. Os dois são anti-heróis os quais se utilizam da palavra para dar um sentido pleno aos seus seres em um mundo marcado pela violência e pela dispersão. Mesmo que em contextos e mídias diferentes, o jagunço e o mafioso protagonizam obras cheias de profundo lirismo prosador partindo de estereótipos vistos como rasos por boa parte da crítica. Ambos, no sertão ou na selva de pedra, são prova da condição humana atolada no absurdo, prova que se dá através de um discurso confessional cujo fito visa, em maior ou menor grau, a expiação da culpa e a auto-compreensão. Desse modo, Riobaldo vê no interlocutor em silêncio o mesmo que Tony na psicoterapia: uma forma de se tornar pleno a partir do olhar do outro que empresta o seu ouvido complacente. É na ponte entre discurso e interlocutor que o sujeito se acha. Porém, o jagunço não permite a fala de seu ouvinte, ao passo que Tony aos poucos começa a querer o ...

O leitor Ricardo Piglia: 12 escritores estadunidenses sob a lupa escritor argentino

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Por Patricio Zunini A última grande intervenção de Ricardo Piglia sobre o campo cultural e, certamente, sobre sua própria obra, foi a publicação de seus diários. Escritos ao longo de seis décadas, são textos para serem lidos como um romance de formação; o título do primeiro volume, aliás, indiretamente reforça essa compreensão – é Anos de formação . Entre debates políticos, ideias de contos, visitas à Bombonera, amores fracassados e experiências marginais, Piglia aparece, constante e tenaz, como um homem empenhado em ser um escritor. Mas, como se faz para que alguém se torne escritor? Talvez a resposta possa ser buscado pelo seu avesso. Piglia compreendeu ainda muito jovem, graças a uma conversa com Jorge Luis Borges, que escrever muda o modo de ler. Um escritor, disse, “quer ver como estão feitos os textos, ver se pode fazer algo parecido ou, no melhor dos casos, algo diferente”. O escritor, então, é, primeiro, um grande leitor, apaixonado pelos livros e pela leitura. ...

Presenças de H. P. Lovecraft

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Por Anna Llurba Em sua biografia H.P. Lovecraft: contre le monde,  contre la vie , uma raridade anterior às suas primeiras boutades literárias, Michel Houellebecq analisa a obra e a vida do célebre ermitão de Providence. Explorando sua paixão pela construção de labirintos, o enfant terrible , por sua vez, persegue essa obsessão com os medos secretos, as geometrias não-euclidianas e a fobia à mestiçagem cultural. Mas além da arquitetura, como uma disciplina aplicada ao hábitat humano, e essa raça que tanto Lovecraft parecia depreciar, se faça ao menos mérito a uma arqueologia, uma descrição materialista do passado que prevê o futuro, sua ficção. Uma obra, diga-se, considerada um gênero em si mesma: o terror cósmico. Um subgênero entre o terror e a ciência de ficção que através de um implacável materialismo gnóstico elude os recursos do terror psicológico para abandonar seus protagonistas como marionetes de um destino manipulado por malignas deidade...