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A superfície de Hemingway (I) – lendo “Up in Michigan” e “Indian Camp”

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Por João Arthur Macieira Ernest Hemingway, 1921. Arquivo John F. Kennedy Library. É muito raro na literatura, mesmo para aqueles que conquistam o respeito da crítica e o sucesso comercial ainda em vida, serem compreendidos. Mesmo um autor como Ernest Hemingway, que é, certamente, um dos mais lidos autores norteamericanos, ainda não deixou de fornecer material para os estudos literários na nossa geração. É verdade, porém, que o público e os críticos brasileiros que queriam elaborar esse material encontrarão dificuldades: o estudo da obra de Ernest Hemingway simplesmente não existe entre nós. Fora o belo livro de uma professora da Universidade de São Paulo sobre Hemingway e a Guerra Civil Espanhola¹ e uma dissertação defendida em 2019², não há produção acadêmica dedicada ao grande desse autor. Também se trata de uma obra literária que não chegou às grandes editoras, apesar do Nobel da Literatura em 1954. Tudo nos dá a entender que Hemingway é um escritor que viveu sua f...

Nudes Existenciais, de Maria Vaz

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Por Pedro Belo Clara  Apresenta-se o livro de estreia da nossa estimada colunista, nascido após várias publicações dispersas (uma delas culminando na outorga do Prémio de Poesia Fernanda de Castro) e participações em antologias poéticas. Natural de Vila Flor, um pacato lugar de Trás-Os-Montes, na região nordeste de Portugal, Maria Vaz é formada em Direito e Mestre em Ciências Jurídico-Criminais. Não obstante, a expressão poética permanece bastante viva em si, conhecendo agora uma merecida edição (e há muito esperada, dirão os seguidores mais antigos). Antes de iniciar qualquer viagem que seja por este trabalho, todo o leitor deparar-se-á com uma expressão impressa na capa, resgatada a um dos poemas que neste volume se compilam, logo exposta como advertência ou apenas batuta pronta a ensaiar o tom: «Há poesia bastante antes de qualquer poema.» Num sentido lato, a expressão, que intriga, poderá querer retomar, em aparência, um debate talvez centenário entre po...

Boletim Letras 360º #391

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DO EDITOR 1. Durante a semana, entidades ligadas ao livro e leitores como o blog Letras in.verso e re.verso fizeram eco a uma campanha contra a taxação de livros que quer ser imposta pelo governo brasileiro. Um país feito de desigualdades cada vez mais acentuadas, onde o livro é de raro acesso dada todos imperativos que dificultam seu acesso, onde os índices de leitura são sempre reprováveis, transformar o livro em artigo de luxo é uma afronta diante da qual não podemos nos isentar, nem calar. Leia mais sobre a participação do blog no movimento #DefendaOLivro .  2. Abaixo registra-se as notícias que passaram, ou não, pelo mural de nossa página no Facebook. Além delas, as demais seções com novos conteúdos, sempre com o interesse de enriquecer e ampliar sua experiência cultural e literária. Fique bem. Boas leituras! Elizabeth Bishop. Um novo livro e a decisão da FLIP de mais homenagear a poeta em 2020.  LANÇAMENTOS Um retorno ao Portugal profundo . Neste...

O eu que não somos e o desejo que não conhecemos

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Por Rafael Kafka  Alexander Calder Decidi ler Lacan por questões de saúde mental. Optei há algumas semanas em iniciar o processo de análise para cuidar de algumas questões emocionais que muito me afligem há anos. Recomendado por um amigo, decidi tentar e ao mesmo tempo iniciei o seminário que fala da questão do eu dentro da teoria psicanalítica. A frase mais célebre desse texto é sem dúvida alguma simples e profunda: “o eu é o outro”. Temos a ilusão de vivermos em uma personalidade precisa e fechada em seus moldes cristalizados. Contemplamos nosso ser como um objeto que se apresenta a si como opaco, bem definido e nossa personalidade é um discurso que permeia cada uma de nossas ações. Nesse sentido, presos ao ideal cartesiano, separamos nossa percepção do eu do objeto contemplado e vivemos na paz nadificadora que reafirma que somos seres fechados vivos enquanto o outro está delimitado em todas as suas características determinadas. O caminho da liberdade, par...

O trigo e o joio, de Fernando Namora

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Por Pedro Fernandes O medo é capaz de nos conduzir para as situações mais assombrosas. Instaurado na consciência, sua força invisível, de mil garras, infecta e corrompe os corpos de mil maneiras e atinge com a mesma violência os que nos são próximos física e espiritualmente até se converter em pavor e, levando uns contra os outros, conduz toda uma ordem para a loucura, a danação e o caos. Esta poderia ser uma boa síntese sobre O trigo e o joio , de Fernando Namora. É este um livro que ao lado de Domingo à tarde sempre se recomenda entre suas principais obras de elevado fulgor criativo.     Situado no âmbito da ficção neorrealista, este romance não se centra em exclusivo no drama social das gentes de periferia, ainda que a questão esteja muito avivada em toda narrativa: é visível a exploração dos latifundiários sobre os trabalhadores, a luta incansável dos pequenos produtores submetidos ao jugo da pequena maquinaria dos que lucram, o conluio entre os poderes de ...

Paterson, de Jim Jarmusch

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Por Pedro Fernandes Como se determina ou se forma a persona do poeta? A pergunta cavilosa motivou o derramamento de baldes e baldes de tinta na tentativa de se copiar uma resposta que nunca chegou a ser satisfatória, embora a escola romântica tenha se encarregado de fincar suas raízes ao máximo limite da profundidade, ao ponto mesmo de muitos dos brotos da imensa árvore que aí se formou ainda verdejarem sobre nós quase quatro séculos mais tarde. À frente disso, talvez só a escola modernista, mas não sem deixar de barganhar uma conta impagável com a primeira. O poeta como uma entidade em contato com o incognoscível e todas as derivações daí possíveis (o profeta, o louco, o alheado) e a figura de espírito esponjoso, facilmente capaz de absorver as dores do espírito (sobretudo as da coita amorosa) são duas das mais significativas imagens da forja romântica. Depois, sua capacidade individualista de sozinho dizer de si e do mundo com a força da própria luz advinda do gênio qu...