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Acerca de um conto de Marques Rebelo

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Por Henrique Ruy S. Santos Marques Rebelo. Foto: Alécio de Andrade / Acervo IMS   O conto “Em maio”, de Marques Rebelo, se inicia com um “Boa tarde!” que demarca o fim de um ato comunicativo, um cumprimento final entre dois conhecidos que se despedem. Após a separação, o narrador do conto se dirige às ruas do Rio de Janeiro em um domingo “límpido de maio”, onde terá a oportunidade de observar o desenrolar cotidiano da vida no subúrbio da cidade, com o movimento dos bondes e a circulação de seus tipos característicos. O texto destoa, de maneira decisiva, do expediente literário que Rebelo tão bem demonstrou dominar em seu livro de estreia, Oscarina , de que “Em maio” faz parte como terceiro conto.  Algumas das narrativas mais marcantes do livro, como o conto homônimo e “Na Rua Dona Emerenciana”, se destacam pela perspectiva inquieta de seus narradores, que a todo tempo transitam entre diferentes focos narrativos, recolhendo fiapos de histórias de cada personagem que atravessa s...

Escritoras à sombra

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Por Agata Sala   Nunca perdem a oportunidade de dizer que as mulheres devem largar as canetas e remendar as meias dos maridos.   — Rosalía de Castro, em “As literatas, carta a Eduarda”   Gabriel Metsu, Elegant Lady Writing at Her Desk  (detalhe)   Ser mulher nunca foi uma tarefa fácil. E ser mulher e escritora, ainda pior. Houve um tempo em que elas não escreviam nem liam. A literatura era um campo reservado exclusivamente aos homens; às mulheres era esperado apenas que tivessem filhos, cuidassem das tarefas domésticas, mas nunca se dedicassem ao trabalho intelectual. Entretanto, apesar dos impedimentos em um mundo que não tinham direitos, algumas escritoras desafiaram as convenções e conseguiram encontrar maneiras de publicar seus escritos. Esconder-se sob um pseudônimo masculino, assinar anonimamente e escrever em segredo foram alguma das estratégias utilizadas por muitas mulheres antes de fazer com que suas vozes fossem ouvidas em público e, mais tarde, uma ...

Boletim Letras 360º #629

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DO EDITOR   Olá, leitores! Aproveito este espaço para reiterar publicamente os agradecimentos àqueles que enviaram suas candidaturas para ocuparem um lugar neste projeto. O Letras iniciou essa alternativa em 2012 e deste então tem enriquecido seus interesses com perspectivas e leituras essenciais e enriquecedoras para o debate acerca da literatura e dos livros, principalmente.   Justamente porque vivemos em um país em que o pensamento e a discussão nessa seara têm andado de joelhos desde o declínio do nosso leitorado e mesmo as dificuldades sendo enormes, parece válido este projeto. É preciso, ao menos, acreditar que não é um bom modo ficar apenas na função de observadores do barco que afunda sem ao menos tocar um réquiem . Certamente, também é esse o ponto de vista de todos que batem à nossa porta atendendo ao nosso chamado. Então, obrigado!   A chamada de 2025 recebeu treze candidaturas. Dessas, foram aprovadas nove. As estreias começam a aparecer por aqui entre as últ...

Uma infância salva pela memória

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Por Manuel Fernández Labrada Christa Wolf. Foto: Oliver Mark   No famoso filme Cidadão Kane , de Orson Welles, os últimos pensamentos do protagonista remontam a um episódio aparentemente insignificante de sua infância, resumidos em uma palavra misteriosa que causou confusão entre seus biógrafos. Somente o espectador do filme descobre, no final, o significado do enigma; ou seja, uma vida cheia de acontecimentos e triunfos pode ser ofuscada pela lembrança de um simples brinquedo: Rosebud . Não há dúvida de que os escritores também, quando chega o momento de fazer um balanço, muitas vezes voltam seu olhar para a infância. As experiências mais banais, até mesmo as mais dolorosas, há muito esquecidas, retornam revestidas de uma nova luz. Talvez prevaleça a necessidade de fazer as pazes consigo mesmo e com os outros. Descobrimos então que a infância, já perdida no passado, era o tesouro mais precioso de todos, e desejamos salvá-lo enquanto ainda resta algum tempo... Há muito disso, par...

Misericórdia, de Lídia Jorge

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Por Gabriella Kelmer Lídia Jorge. Foto: José Fernandes   A filha escritora revela à severidade materna que escreve sobre perdedores por ser como um cão sob a mesa, aguardando os restos — as migalhas, os resquícios — de um opulento banquete de que só pode e deseja participar a partir de um posto de observação subalterna. Justifica, nesse ímpeto, a produção de uma literatura não apenas desprovida de finais felizes, mas também atenta aos esquecimentos e silenciamentos da história. A mãe, inconformada de ouvir a filha dizer-se em termos tão indignos, argumenta a favor dos grandes homens e dos inesquecíveis feitos. Desentendem-se as duas personagens, por um tempo, e fica evidenciado como é diverso o que esperam do mundo e o que veem de si mesmas.   Misericórdia , o romance mais recente da portuguesa Lídia Jorge, publicado no Brasil em 2024, pode ser compreendido como a adoção do olhar crítico daquela mãe, todavia articulado pelo método da filha, com uma visão escafandrista da inti...

Nosferatu: um tributo à sombra junguiana

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Por Diego García Paz   Desde a sua estreia, Nosferatu , de Robert Eggers, tem sido alvo de críticas majoritariamente favoráveis, não tanto pela história, já bastante conhecida (refletida no filme homônimo dirigido por Murnau em 1922 e posteriormente revisitado por Herzog em 1979), mas pela produção. De fato, sua fotografia se revela uma genuína obra de arte, que consegue, dentro de um propósito evidentemente perturbador, mover-se sempre no contexto da elegância visual. Este é um objetivo complicado, porque, depois de assistir ao filme, fica claro que seu diretor pretendeu transmitir ao espectador uma mensagem dupla, em forma e conteúdo: ao mesmo tempo preciosa e desagradável; ao mesmo tempo baseado na realidade e por momentos oníricos.   Um reflexo fiel disso é a própria ideia do antagonista, o Conde Orlok (interpretado por Bill Skarsgard), reflexo do Drácula de Bram Stoker, que, do meu ponto de vista, apresenta nesta obra cinematográfica a imagem perfeita do vampiro, tal co...