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O vermelho e o negro: a tragédia da grandeza temporal

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Por Guilherme França Julien Sorel. Ilustração de Jean-Paul Quint para edição francesa de O vermelho e o negro , 1922. Arquivo BNF. Publicado em 1830, O vermelho e o negro , de Stendhal, inscreve-se como uma das obras mais representativas da literatura francesa, não apenas por sua qualidade estética, também muito debatida, mas sobretudo por seu bom aproveitamento analítico no tratamento de temas como a mobilidade social, a construção da personalidade e os impasses ético-existenciais do indivíduo moderno. Longe de se limitar à moldura de um romance de formação, de um relato psicológico ou de crônica social, a narrativa permite, em alguma medida, o exame das tensões entre as ambições pessoais e as virtudes, a partir das quais surgem essas forças invisíveis que acabam por moldar o destino dos homens, servindo como um alerta quanto às pretensões desmedidas, que podem corroer a essência de nossa vida. Este ensaio propõe, portanto, uma leitura da obra a partir de uma perspectiva exclusivament...

Larraín com sua Maria Callas, um ventríloquo a mais do streaming

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Por Alonso Díaz de la Vega Parece que cada novo filme do diretor chileno Pablo Larraín é uma tentativa de negar a si mesmo. Se compararmos a montagem dos seus filmes de há uma década, mais ou menos — Neruda e Jackie (2016), Ema (2019) —, com a dos mais recentes — concretamente O conde (2023) e Maria Callas (2024) —, poderemos assistir à dolorosa extinção de uma individualidade em ascensão, formada por imagens incoerentes como a consciência, e por uma narrativa difusa que dava mais interesse à sensação do que à história. Em seu lugar surge um estilo cada vez mais claro — para não dizer óbvio —, melodramático e mecânico. Larraín não foi um dos grandes cineastas contemporâneos em seu auge, mas naqueles filmes ele demonstrou o potencial de se refinar até se tornar um, apesar de excentricidades como seu olhar ansioso em um filme de libertação feminina ( Ema ) ou a expressão frequentemente grotesca de abuso infantil dentro da igreja católica em O clube (2015). Aquele Larraín mais livre...

O Grande Gatsby é um título ruim?

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Por Juan Tallón F. Scott Fitzgerald Foto: Brown Brothers   Em maio de 1924, pouco mais de um ano antes de O Grande Gatsby ser publicado, Francis Scott Fitzgerald trabalhava febrilmente no livro, recusando-se a ler qualquer coisa além de Homero e da literatura e história homérica de 540 a 1200. “E rogo a Deus para não ver uma viva alma por seis meses; meu romance é cada vez mais extraordinário; sinto-me completamente no controle de mim mesmo e posso finalmente satisfazer meu desejo de solidão”, escreveu da França ao romancista Thomas Boyd; acabara de chegar com dezessete malas, na esperança de encontrar uma casa generosa com mordomo e cozinheiro para ele, a mulher e a filha.   Ele se encontrava tomado pela excitação e, em agosto daquele ano, confessou a Maxwell Perkins, diretor editorial da Scribner’s: “meu romance é mais ou menos o melhor romance uma vez escrito nos Estados Unidos”. Um autor nunca sente tamanho entusiasmo por sua obra, não dessa maneira, quando a obra ainda ...

“Dias de pedra”, de Isabelle Scalambrini: uma herança poética

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Por Wesley Sousa A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos. — George Bernard Shaw   Em Como ler um poema , Terry Eagleton define que o material ao qual chamamos de “poema” tem certas características mais ou menos consensuais. No aspecto da criação e da técnica criativa, ele menciona da seguinte maneira: “Um poema é uma declaração moral, verbalmente inventiva e ficcional, na qual é o autor, e não a impressora ou o processador de textos, que decide onde terminam os versos” (p.32, tradução minha) Iniciar com esta afirmativa é, aqui, quase uma obviedade se vista de imediato.   A cadência dos versos, a rítmica que se sobrepõe às rimas etc. não é algo simples — e a poética pressupõe uma conexão maior do que o ímpeto formal de deslocamento sintático e do verso. O poema, mesmo se fosse algo fácil de escrever, disso não deriva que a poesia que emerge nos versos seja clara quanto se pensa. Para o crítico inglês: “É certo que a prosa ge...

Boletim Letras 360º #633

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Halldór Laxness LANÇAMENTOS   Publicado em 1957, dois anos após Halldór Laxness receber o prêmio Nobel de literatura, livro conduz o leitor até as paisagens islandesas e os pequenos detalhes da vida cotidiana nas ruas de Reykjavík no início do século XX .   Em Os peixes também sabem cantar acompanhamos a vida de Álfgrímur, um menino órfão criado pelos avós adotivos em um casebre humilde nos arredores da então futura capital da Islândia. Sua narrativa sinuosa se apoia na memória coletiva, nos mitos e nos valores compartilhados para descrever a construção de identidade, tanto individual como nacional. A obra é, ao mesmo tempo, um romance de formação do jovem Álfgrímur e da nação islandesa. De um lado temos uma sociedade em transição na pequena ilha do Atlântico Norte que à época oscilava entre as amarras coloniais e a busca por autenticidade; do outro, um protagonista moldado pela sabedoria tradicional islandesa, mas que se vê atraído pelo brilho ilusório da fama representada p...

O rinoceronte e a metamorfose coletiva

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Por Juliano Pedro Siqueira Eugène Ionesco. Foto: Micheline Pelletier O período do pós-guerra despertaria profundos temores em um mundo que acabara de ser desfigurado pela destruição em massa. Acompanhado do horror, da incerteza e da descrença na razão, emergiu-se uma série de questionamentos existenciais e morais, tendo como pano de fundo a literatura, a filosofia, a arte, a psicanálise e o teatro, que buscaram os fundamentos que levassem a entender o homem a partir de seus símbolos, fanatismos e contradições.   Correntes como o existencialismo, que a exemplo, explorou conceitos como angústia, em Sartre, tempo, em Heidegger, suicídio, em Camus; e do teatro do absurdo, com Samuel Beckett, Arthur Adamov e Eugène Ionesco; além, claro, dos estudos antropológicos de Sigmund Freud, promoveriam um grande debate intelectual no ocidente, submetendo à dúvida o progresso moral, racional e existencial do homem.   Com o advento de movimentos filosóficos de cunho materialista e relativista...