Senhores do orvalho, de Jacques Roumain

Por Pedro Fernandes



A utopia é o lugar ou estado ideal de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos. Uma vez vencida tantas passagens da história, esse sentido original, como tantos outros, pode se incluir no extenso rol das coisas que atravessam o que rotineiramente chamamos por crise; e, os mais engajados no radical ceticismo do nosso tempo podem bem decretar que a utopia está morta. Ora, é admissível a crise, afinal, nenhuma variação se caracteriza sem ao menos atravessar um estágio semelhante, mas admitir o fim definitivo parece apenas repetir outra vez o interesse pela catástrofe total. Sim, falamos sobre a morte de Deus, da história, do socialismo, das ideologias, do capitalismo, e até, no caso específico do universo literário, a morte do autor, da poesia, do romance, da crítica literária e mesmo da própria literatura. E, curiosamente, tudo isso perdura.
 
É possível dizer que a transformação fator determinante a tudo que vive não deixou de atuar modificando formas e sentidos, multiplicando-os, estabelecendo outros campos criativos, outros conceitos, oferecendo novas variáveis muitas vezes integralmente opostas às formas e sentidos originais (se estes possam mesmo existir). Mas, esses elementos intrinsecamente fixados em nós, uma morte pressupõe o desaparecimento total da nossa espécie, o que não é improvável.
 
No caso da utopia, resulta impossível, depois das frustradas experiências coletivas acreditar em noções de lugar e de ordem total do mundo. Esse conceito acompanhou muito de perto outro: o de revolução. E durante muito tempo se acreditou nas sociedades alternativas, capazes de oferecer uma maneira de estar mundo fora das diretrizes predatórias, da exploração de uns poucos sobre outros muitos. Com isso, alcançamos a agora reconhecida errônea certeza de lugar e de unidade social ou, nesse mesmo sentido, certa ideia de que a utopia se podia situar como instante limite do ideal de civilização.
 
O romance de Jacques Roumain oferece ao leitor uma importante passagem por esse estágio de nossa história, quando os nossos sentidos estiveram adormecidos para a ilusão da utopia como um fim, da revolução como uma possibilidade coletiva capaz de nos oferecer uma alternativa de totalidade entre humanidade e mundo. Como não é um objeto isolado nos campos criativos, é um livro que se integra numa longa tradição que rendeu bons e péssimos frutos: a da chamada literatura social, um termo bastante problemático porque distorce a compreensão melhor aceita segundo a qual não existe arte separada da sociedade.
 
Bom, mas nota-se muito claramente que Senhores do orvalho revisita os protocolos do que melhor se designou como arte engajada, aquela feita ora como registro acerca daqueles lugares não frequentados e por isso mesmo silenciados e marginalizados pelos poderes dominantes ora como denúncia sobre esta e outras violências nunca deixadas de se exercer entre nós. Manuel, filho de um casal de trabalhadores rurais do povoado de Fonds-Rouge, o protagonista da narrativa, é quem inaugura as bases do ideal revolucionário a partir de duas determinantes adquiridas do convívio com os cubanos, povo que melhor singularizava, depois dos horrores da União Soviética, o ideal revolucionário e o utópico. É dele, o sonho de devolver à sua gente, sem distinções, a riqueza da terra, exaurida pela inconsequência e exploração desenfreada dos recursos por seus habitantes. Depois, estabelecer a unidade de classe a fim de garantir aos trabalhadores a capacidade de se fazerem reconhecer os valores, capital e simbólico, de sua força e nas relações de poder.  
 
Sempre apresentada como a obra que inaugurou na literatura do Haiti as diretrizes da modernidade nesta forma narrativa o que deve ser verdade, se considerarmos à maneira como o romance brasileiro dessa mesma vertente se constituiu este livro de Jacques Roumain se integra fielmente àquelas primeiras expressões do romance cujo interesse estava em oferecer uma história sobre as transformações do homem pela terra e pelo trabalho e a aquisição de uma consciência cívica feita a partir do despertar para as qualidades da sua força e da necessária negação dos instrumentos de controle dos poderes e ideologias dominantes. Quer dizer, o tratamento do ficcional como documento e instrumento de educação, muito embora, essa segunda possibilidade seja sempre ofuscada pelos limites da própria opressão: dificilmente, os trabalhadores podiam se reconhecer ou se educar pela matéria com a qual não travavam conhecimento.
 
E quais elementos, comparando este romance aos nossos publicados muito antes, favorecem este livro na literatura moderna de seu país? Podemos citar vários: a linguagem situada muito próxima das variantes populares, desfazendo todo traço solene ou acadêmico das obras anteriores e abrindo-se para as formas mais livres e leves; o valor documental de registro das variadas expressões culturais populares, as narrativas de exemplo, os ditos, os rituais do vodu, os misticismos, ampliando o regional em relação ao nacional; e a forma fragmentar da narrativa equilibrada entre os traços de certa análise social do coletivo e o relato por vezes cronístico, isto é, interessado em informar dos modos de vida no dia-a-dia das gentes comuns. Além dessas características e esta é a principal qualidade do romance é a maneira como se estabelece as tensões entre os valores dominantes e os novos que brotam com a nova geração de Fonds-Rouge, especialmente sob o comando do homem que forasteiro em terras e situações semelhantes adquiriu outras maneiras de compreender as coisas e traz para sua comunidade.
 
Em tudo, a maneira de agir e pensar de Manuel se destaca dos habitantes do povoado: seja no discurso ambientalista que emprega para acusar o seu povo como os responsáveis pela a miséria decorrente da seca que o assola; seja na maneira como compreende o papel dos ritos sagrados da religião dos seus ancestrais, delegando a estes apenas o papel de equilíbrio do homem para com suas forças interiores, nada mais; seja como vive o amor, desobrigado das determinantes familiares; seja como se dedica a modificar as leis de convívio, substituindo a intriga, o ódio e a barbárie pela necessidade da união, do amor e da civilidade; seja como se preocupa em falar às consciências alheias levando-as a compreender que estar no mundo exige de todos a capacidade de se guiar pela combinação entre intelecto e força.
 
Dessa maneira, a personagem principal de Senhores do orvalho reveste-se das qualidades do herói que, neste contexto, favorecem-no ao papel de líder revolucionário. Se prevalece as características favoráveis ao tipo romântico cores com as quais o narrador pinta vários episódios, sobretudo os do enlace amoroso entre Manuel e Annaïse, incluindo as circunstâncias do amor proibido pela rixa entre famílias há um simbolismo bíblico de salvação redivivo nessa personagem e nalgumas situações vividas por ela. Para esta ocasião, basta observamos duas coisas: seu designativo e um pequeno episódio experimentado por esta personagem como ato inaugural do mundo.
 
Manuel é a forma sintética de Emanuel, nome profético citado pelo evangelista Mateus e por ele interpretado, seguindo a mesma rede semântica estabelecida no Antigo Testamento, Deus conosco “E ele será chamado Emanuel, que significa, Deus conosco” (Mt. 1:23); em Isaías, se lê: “Eis que uma virgem conceberá, e dará luz a um filho, e chamará o seu nome Emanuel” (Is. 7:14). Nesse sentido, o retorno da personagem saída de sua terra natal para laborar nas plantações de cana-de-açúcar em Cuba ainda adolescente, feita à semelhança do retorno do filho pródigo, refaz o nascimento do Salvador, como é lida a passagem bíblica, dele dependerá a redenção do seu povo, esta que, na tradição cristã, é designada como a renovação da vida em abundância. Esse sentido é estabelecido no romance. Além do caráter revolucionário já citado, o nome Manuel se destaca de todo o grupo de nomes próprios da narrativa; e é dele a tarefa de oferecer outra oportunidade de vida ao seu povo depois da descoberta de um novo manancial de água. E o gesto messiânico cumpre-se, inclusive, pelo rito sacrificial do salvador.
 
É no interior dessa descoberta que se oferece o episódio genesíaco antes citado. No percurso de retorno a Founds-Rouge, Manuel estabelece uma relação transformada em amor proibido e com feições trágicas ao modo Romeu e Julieta com Annaïse. Eis, outro nome que coparticipa com o recurso semântico do protagonista; sinônimo de amor, a composição feita de Ana (tal como Manuel se refere à amante) e Isa, ambos também de origem hebraica significam, respectivamente, graciosa, cheia de graça e casta, Deus é salvação. Então, situados no interior do pequeno paraíso em meio ao mundo opresso e desvencilhando-se da vida, os dois amantes, performam o episódio genesíaco, ao passo que consolidam fora das diretrizes sociais o enlace amoroso. O segredo de descoberta da fonte é primeiramente partilhado, ainda quando sonho, com ela; realizada a conquista do herói, eis homem e mulher instalados no interior desse mundo outro, o princípio para um mundo novo:
 
― Está escuro, como está escuro. Não dá para acreditar que lá fora o sol brilha forte. Aqui o sol é filtrado gota a gota, o sol. Estou à escuta e não ouço nenhum barulho, estamos como numa ilhota, estamos longe. Manuel, estamos no fim profundo do mundo.
― No começo do mundo, você quer dizer. Porque no começo dos começos havia uma mulher e um homem, como você e eu; aos pés deles corria a primeira fonte e a mulher e o homem entraram na fonte e se banharam na vida.
 
O didatismo da fala do protagonista dispensa qualquer comentário mais elaborado. É esta outra característica essencial desse romance que, repetimos, segue muito de perto certa cartilha do romance social. E porque tocamos nela, vale reparar o que para uma parte dos leitores pode soar como uma fragilidade da prosa de Jacques Roumain; essa didática da expressão, claro, é essencial para que se opere as esperadas transformações ideológicas em personagens aplainadas pelo rigor da vida feita da força, do trabalho e fixada pelos credos místicos, quase sempre simplistas porque concebidos das faculdades imediatas do pensamento, logo, é um recurso do qual o escritor se vê incapaz de desfazê-lo, sob pena de sabotar o valor da verossimilhança.    
 
Agora, o que se coloca como questionável é a profunda identificação assumida entre o narrador e suas personagens. Isso o faz recair nas limitações opositoras entre bem e mal, por exemplo, e a sempre incorrer no tratamento de salvaguarda daqueles com os quais toma partido. A narrativa de Senhores do orvalho segue tão de perto os dramas das suas personagens que o narrador em terceira pessoa flutua proposital e constantemente para a primeira deixando-se penetrar pelas vozes de seus atores. Bem executada, é o caso aqui, essa variante agrega valor àqueles elementos que fazem desse, um romance moderno. Mas, a pura identificação, torna-se um incômodo porque aposta algo que nunca um escritor deve cometer na ingenuidade do leitor.
 
Agora, esse romance não apenas documenta o instante já vencido da história da utopia. Em tempos de investidas opressoras, que nunca deixaram de existir, é importante que possamos, mesmo pela ficção, restabelecer a certeza sobre a variável dos poderes. Outra coisa indispensável, a utopia deve sempre nos impulsionar para fora do sonho. E agora que sabemos da ausência de seu lugar toda vez que dele nos aproximamos, como uma miragem, ela se move é fundamental entender que a vida se é feita de luta, sem isso a vida não tem gosto, a vida não tem sentido.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #574