Ninguém precisa acreditar em mim, de Juan Pablo Villalobos

Por Pedro Fernandes

Juan Pablo Villalobos. Foto: Metal Magazine.


 
Muito se repetiu sobre o romance enquanto enquanto um rico repositório das mais variadas expressões da linguagem. Uma parte dessa complexificação do romanesco se amplia com acentuado vigor a partir do século XX, muito embora, os resultados nem sempre sejam satisfatórios. Depois do sopro modernista, o que mais encontramos são tentativas fracassadas, pouco convincentes ou insatisfatórias dos usos da forma. É válido repetir que não é suficiente ao escritor o bom exercício da técnica; é tão ou mais importante certo talento para oferecer naturalidade ao andamento da narrativa, processo que inclui, o trato da verossimilhança e o manejo da linguagem. Essas qualidades sempre raras se encontram na literatura de Juan Pablo Villalobos.
 
Este Ninguém precisa acreditar em mim se organiza por dois fios narrativos principais — um deles com transição entre o registro despretensioso de eventos e circunstâncias ao seu tratamento romanesco. São dois narradores: o estudante de literatura Juan Pablo e Valentina, também ligada às letras, que o acompanha numa viagem de estadia em Barcelona, cidade espanhola onde o namorado cursará um doutorado que a princípio guarda interesse pela obra de Jorge Ibargüengoitia Antillón.
 
Mas, não é a nova vida que favorece aos narradores o interesse para a escrita do que recebemos como romance; se fosse apenas pelo trato acadêmico, feito em grande parte da sisudez, do retiro e dos exercícios para o desenvolvimento da pesquisa, parece, estaríamos diante de um problema: o assunto constituir de alguma maneira em tratamento desfavorável ao desenvolvimento do ficcional. Entra em questão um valor dos mais caros ao ofício da criação literária: a experiência. E mais que isso: o tratamento do experienciado. Sem isso, sabemos, por mais excepcional que seja o acontecimento, a ficção não o sustém.
 
Assim, o acontecimento desencadeador do romance é o envolvimento de um rapaz de simpáticos interesses, por um desses lances do acaso, com o crime organizado. Criado na crença inabalável de fazer a vida pelos seus próprios esforços tendo em vista o literário — primeiramente não como expressão e sim como objeto de estudo e interesse — Juan Pablo se descobre envolvido numa trama adversa, obscura, muitas vezes sem sentido, graças as atitudes de um primo em tudo o seu contrário, uma vez que um sonhador tentado pela vida fácil e prática do capital financeiro. É uma trama subterrânea, ainda que continuamente envolta no cotidiano e enredada nos maiores poderes de mando, e para a qual o jovem de uma pequena província de Lagos, no interior profundo do México, é arrastado entre o pânico e a subserviência, como se esperasse encontrar uma saída diferente do fim trágico do primo Lorenzo.
 
A primeira linha narrativa, portanto, acompanha as variações de mando e o trabalho cuidadoso de Juan com os seus superiores, sempre interessados que ele cumpra com despropositadas alterações no curso de sua vida. O crime atua aqui como um deus nesse tempo sem deuses. O homem, pela garantia da sua própria existência e dos que tem em conta, é submetido aos gostos desse além, fazendo-se um incapaz de organizar e controlar seu destino. Tudo isso é irônico, se pensarmos que ganhar uma bolsa de estudos para um doutorado em Barcelona representava, finalmente, o alcance de uma liberdade e a abertura para uma autonomia numa vida continuamente subjugada, inclusive pela própria família que nunca depositou qualquer crença num futuro de algum valor nos interesses de Juan Pablo e apenas o criticava repetidamente pelo distanciamento da vida comum e os gostos incompreensíveis dos seus interesses.
 
Logo percebemos que neste caso o doutoramento se modifica pela extensão do sentido comum e simultaneamente sua força alheia. Entre nós, que convivemos continuamente com a violência, se cunhou a expressão sindicato do crime; ao mesmo tempo que se designa com isso a ideia de estreitamentos em nome de uma unidade coletiva, se manifesta o trato de uma aprendizagem acerca dos papéis e do funcionamento da corporação. É nessa última linha que esse romance se desdobra: Juan Pablo é levado a se especializar numa prática que lhe é alheia e mão condutora nesse novo mundo que misteriosamente a ele se apresenta pelo codinome de Doutor, repetindo os mesmos tons do tipo de humor que o doutorando buscaria compreender a partir da literatura de Ibargüengoitia.
 
Marcado por uma visão derrisória do mundo, esse primeiro narrador, fabula todas as novas vivências sempre acentuando sua misantropia, por vezes facilmente confundida como uma ingenuidade diante do mundo pesado no qual se vê casualmente metido; acentua-se ainda o nonsense sempre a corromper o aspecto de suspense que ora demonstra se constituir em tom para o romanesco. O que se propõe, portanto, não é fixar o romance num tipo, e o que se narra ainda não são os acontecimentos imediatos — mesmo que estes não deixem de se mostrar na narrativa — e sim o resultado dessa mediação a que chamamos ficcional; entre o real interfere-se variavelmente o imaginário acrescendo, diminuindo, inventando, enfim, deformando o visto. Mais tarde, esse material encontrará no interior do próprio romance sua própria prova de recepção, ora encarado como verdade indelével, prova material, descontadas as fabulações, ora encarado como pura mentira.
 
Esta primeira linha narrativa é constantemente invadida por outras expressões textuais: são as cartas deixadas pelo primo Lorenzo (espécie de comunicação solitária, enviada do mundo dos mortos com afetações abruptas no mundo dos vivos, visto que, o possível fim de Juan Pablo é em parte oferecido pela atenção desmedida que deposita nos interesses do primo); e são os longos e-mails enviados pela mãe. Já aqui, chama atenção o tratamento de linguagem; cada texto exige expressão própria, seja pela sua natureza, seja pela voz de quem escreve. E falamos de formas pragmáticas de comunicação. O valioso aqui é que mesmo respeitadas as peculiaridades dessas formas textuais elas não se perdem como se um apêndice ao conjunto da narração, mas nele se integra com a naturalidade requerida.



Mesmo o outro fio narrativo, encontra sua integração no romanesco. E sua expressão é de todas a mais destacada. O diário de Valentina é marcado por três instantes da sua vida em Barcelona: o de quando busca reencontrar seu lugar ao lado de Juan Pablo depois de ser imediatamente recusada e novamente aceita por ele na viagem para a Europa — nesse momento, a personagem perfaz algum esforço por construir também uma vida acadêmica; o segundo instante é o de confirmação da separação, que a arrasta para o convívio com a vida periférica, marcada pela contínua espera para o retorno ao México e a falta total de perspectivas; e, por fim, quando se infiltra na vida subterrânea do namorado e organiza esforços para o resgatar outra vez ao mundo dos vivos e adquire, por visível influência dele depois de revisitar os originais, trato para o ficcional. Também essa segunda linha é interceptada pelas formais textuais da primeira: Lorenzo é autor de uma carta para Valentina.
 
A narrativa conduzida por Valentina, notamos, é contraponto e complemento ao tratamento ficcional e ao narrado por Juan Pablo. Se esclarece o que se passa com aquela personagem colocada quase à revelia do próprio interesse do primeiro narrador, ficam demonstrados os princípios que podem resultar na criação ficcional, ao se propor, primeiramente uma revelação imediata do mundo pelo tom de registro dos acontecimentos. No âmbito da metaficção, os registros da narradora funcionam com inferências sobre os possíveis de recepção do romance no interior do romance, considerando-se, inclusive os impasses entre realidade e imaginação, visto que as fronteiras entre o romance no interior do romance se misturam com as do seu universo interior, a começar pelo mesmo nome próprio do escritor e do narrador e protagonista na ficção.
 
Fora das duas linhas principais do romance, um último e-mail da mãe de Juan Pablo constitui o papel de epílogo para uma história com destinos dos mais variados, ainda que o desfecho principal, digamos assim, encontre-se de alguma maneira demonstrado desde o seu começo, afinal, o episódio tomado como prólogo e o seu efeito de continuidade quinze anos depois quando o primeiro narrador se encontra com destino para a Europa é indicativo sobre a revelia da ordem. Isto é, Ninguém precisa acreditar em mim demonstra que entre contar uma história e como se conta, o romance pode se oferecer como um autêntico campo de experimentação capaz de propiciar as duas coisas.
 
É notável que este romance funciona como uma fração num complexo de imagens que se repetem não igualmente num movimento a se perder de vista. Com Juan Pablo não descobrimos em momento algum quais foram as razões que levaram à sua revelia o envolvimento com um poderoso grupo de mafiosos; mas estes também não sabem exatamente quais suas razões operacionais visto que estão submetidos a uma sombra sobre a qual só sabem que é superior a eles. Juan Pablo é marionete para o Doutor, quem dita os rumos da sua vida, e este desempenha, ao que parece, as mesmas funções em relação a este superior. É a dinâmica do poder o que se mostra, esclarecendo que criaturas como Juan Pablo são apenas a pequena ponta de uma organização muito maior e complexa. Mas, no plano da ficção — uma vez ser este romance uma clara expressão do trato criativo — outro tipo de poder aqui se confunde: o instrumental do escritor, este senhor-sombra que participa no curso e destino das vidas fabuladas.
 
Há uma infinidade de coisas a se explorar neste romance — caleidoscópico, original. Traços que atestam, obviamente, seu valor literário. Os leitores com mais experiência de leitura, sabedores disso, entretanto, ainda podem se surpreender com a criatividade de um escritor. Neste caso, alguém capaz do manejo da linguagem com a destreza de combinar seus vários usos em prol do que há de mais interessante: fazer do romance também repositório de um mundo que se abre para ampliar as próprias fronteiras da criação ficcional.


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Ninguém precisa acreditar em mim
Juan Pablo Villalobos
Sérgio Molina (Trad.)
Companhia das Letras, 2018
228p.

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