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Os últimos poemas de Wisława Szymborska

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Alma era uma palavra-enigma. Sou seu maior problema. E os mapas? Os mapas a encantavam por seu dom de mentir ao implantar um mundo “não deste mundo”. Foram as últimas revelações que Wislawa Szymborska (Polônia, 1923-2012) deixou escrita, de seu punho, em 13 poemas póstumos. Dela, que é considerada um dos grandes nomes que recebeu o Nobel nas últimas décadas, apenas um grupo de amigos alcançou falar alguns deles antes de lhe viesse a morte em fevereiro de 2012. E entre os poemas lidos estava “Alguém a quem observo desde há um tempo”* cujo fim é ela mesma: Uma vez encontrei no mato uma gaiola de pombos. Peguei-a e para isso a tenho para que permaneça vazia. Uma estrofe que guarda uma história, mil histórias. Memórias que não peregrinam e determinam o rumo do pensamento e da atitude ante a vida. Como ela, a maioria de toda sua existência, sob o regime comunista polaco nos anos da cortina de ferro. “Para que permaneça vazia”. Vibra incessante o último verso d...

O mendigo Sexta-feira jogando no Mundial

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Por Mia Couto Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas, eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que freqüento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos meus pais. Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apresento hoje com séria e verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu quando assistia jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra** do Dubai Shopping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra para os pagantes contraírem ganas de comprar. Sento-meno passeio, tenho meu lu...

Nenhuma vida, de Urbano Tavares Rodrigues

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Por Pedro Belo Clara O escritor Urbano Tavares Rodrigues Nesta nova edição, retoma-se a debate sobre os trabalhos do autor referido em epígrafe com o intuito de dar a conhecer aquele que foi o seu derradeiro romance, concluído apenas poucas semanas antes da sua morte, em Agosto de 2013. Editado em Outubro passado, e com a particularidade de possuir um fac-símile fragmentado do original escrito pela mão de Urbano Tavares Rodrigues, Nenhuma vida é, nas palavras do próprio autor, um “romance breve ”  que, em quatorze capítulos, consegue ser transversal às principais ideias e temas defendidos por Urbano ao longo da sua existência terrena. Como obra, digamos, de “fim de vida”, e conhecendo o autor como a grande maioria do público português o conheceu, nada mais para além disso se poderia imaginar. Embora, sublinhe-se, em Urbano coabitavam pacificamente as linhas, firmemente desenhadas, de um pensamento nítido e interventivo com a gentil brandura de um trato - apare...

Campeões

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 Por  Ferreira Gullar © Márcio Petini Não sei quem terá escapado à atmosfera de alegria e pânico em que o Rio mergulhou  nestas últimas semanas com os últimos jogos da Copa do Mundo. Sem saber como nem porque, vi-me de repente de ouvido grudado ao rádio, submetido a uma tortura diabólica: era como se cargas de eletricidade (ou o que fosse) me entrassem pelo ouvido numa frequência poderosa e instável que ora me fazia suar frio ora estremecer de expectativa e apreensão. Vejo-me agora, de longe. Prometeu doméstico com um abutre a me devorar pelo ouvido. Eu mesmo ligara o aparelho de tontura, eu mesmo cuidava dele regulando cuidadosamente o volume e a clareza do som, e se qualquer coisa interceptava a transmissão e de deixava livre por um segundo, tinha ímpetos de arrebentar o rádio, porque eu queria ser torturado! Vivia o drama de quase 60 milhões de expectativa e apreensão. Vejo-me agora, de longe. Prometeu do Brasil. Confesso que há ...

Boletim Letras 360º #70

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Este é um fragmento de uma carta inédita de Charles Baudelaire. O poeta de As flores do mal era todo elogios pela frente de Victor Hugo, mas por trás era língua comprida para falar do  “ amigo ” . Mais detalhes ao longo deste boletim. Uma semana extensa; é o que leitor assíduo do Letras terá percebido entre postagens aqui e nas redes sociais do blog. Bom, o tempo está atípico e isso se reflete por aqui. De CHICO7.0 é possível vir ainda mais – apesar das homenagens de segunda até ontem com uma panorâmica por sobre a extensa obra do multiartista, Chico é Chico. Para a próxima semana ainda continuaremos lendo textos sobre o futebol de alguns dos nomes da literatura nacional e estrangeira. Isso irá durar até o fim do Mundial. Até lá dura também as inscrições para participação da  promoção Gol de Letra . Mas, vamos, também ao que foi notícia no nosso Facebook. Segunda-feira, 16/06 >>> Brasil: Mark Twain inédito entre nós É a primeira vez que uma ed...

Bolítica

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Por Décio Pignatari Há dez anos atrás, no começo da primavera, atravessei a Mancha rumo à Inglaterra, em companhia de um inglês e um israelense. Este lutara contra os nazistas, no exército de sua majestade britânica, e perdera as duas pernas dando combate aos árabes, nas lutas pela independência de seu país. Não era judeu – era israelense, fazia questão de frisar, mostrando um certo orgulho e uma certa irritação na necessidade que sentia de afirmar sua nova nacionalidade. O outro era um operário de volta das férias, velho e bem humorado militante do Partido Comunista inglês. Com não menor orgulho, exibia sua carteira de filiação, datada de 1935. No meio da travessia, a barcaça começou a jogar; o israelense não podia manter-se de pé, no convés: penoso demais. Ajudamo-lo a descer para o bar, com as suas três pernas mecânicas (uma sobressalente que carregava numa caixa) e voltamos para cima, o inglês e eu, rumo a um estranho bate-papo, entre solavancos ...