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Clarice Lispector ou a alegria do descobrimento

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Por Christopher Domínguez Michael No dia 15 de janeiro de 1944, o crítico literário brasileiro Sérgio Milliet observou em seu Diário crítico : “Raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Os livros que recebe dos conhecidos consagrados não lhe trazem mais emoções. Já sabe o que contêm, seria capaz de sobre eles escrever sem sequer folheá-los. Quando porém o autor é novo há sempre um minuto de curiosidade intensa: o crítico abre o livro com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo. Pois desta feita uma que me enche de satisfação.”   Milliet (1898-1966), paulista que descobriu sua vocação crítica como jovem testemunha da mítica Semana da Arte Moderna, acabava de descobrir Clarisse (sic) Lispector e seu primeiro romance, Perto do coração selvagem . Seria um pseudônimo? ― perguntou a si mesmo em seu Diário crítico . E logo soube que Clarice Lispector (1920-1977) era uma emigrada judia ucraniana que chego...

Pequeno-burgueses, de Maksim Górki

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  Por Joaquim Serra   Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras? “Perguntas de um Operário Letrado”, Bertolt Brecht. Maksim Górki. Foto: General Photographic Agency / Getty   Dois nomes, Anton Tchekhov e Maksim Górki, marcariam de forma diversa a literatura russa da passagem do século. De um lado, o escritor contido, já inovador do gênero conto e da dramaturgia, dono de uma prosa concisa “também testemunha por excelência, sutil, e aparentemente imparcial, de uma época sombria, a Rússia das duas últimas décadas do século XIX” (Angelides, 2002, p. 27). Do outro lado, Górki surge com um evidente sucesso nos fins dos anos 1890, com suas personagens saídas do submundo, vigorosas e obstinadas, que marcariam definitivamente o imaginário russo e abririam espaço para uma nova forma de realismo nos anos seguintes. Os dois escritores mantiveram um diálogo epistolar intenso. Górki mostra grande entusiasmo pe...

Fisionomia afetiva das estantes

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Por Guilherme Mazzafera Biblioteca de Antonio Candido. Foto: André Seiti   A estante é o homem: eis a máxima imperecível. Não se trata de apostasia pelas verdades transcendentes, mas daquela devassa ao material que nos define como seres históricos, enraizados nas palavras de romances que nos levam... às verdades transcendentes. Ou ao Japão feudal, à Samoa do tísico Stevenson, e, quem sabe, a algum lugar em La Mancha de cujo nome não me quero lembrar.       Todo leitor se depara com aquele momento crucial de adquirir (ou mandar fazer) uma ou mais estantes. Quando perguntados sobre o sentido de estocar material já lido (falarei dos não lidos adiante), não há melhor resposta que a do cético George Costanza ― o mesmo que, perenemente corrompido pelos hábitos televisivos, não conseguiu encarar mais de duas páginas de Breakfast at Tiffany’s ― diante do esgar prático de seu amigo Jerry Seinfeld: it’s a book ! Há todo um universo vocabular próprio para o armazenamento ...

Boletim Letras 360º #404

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    DO EDITOR   1. Saudações, caro leitor! Neste 27 de novembro de 2020, o blog Letras in.verso e re.verso ultrapassa a linha para os 14 anos online. Neste tempo muita coisa aconteceu ― boas e ruins. Se olharmos de perto, não é gratuito que primeiro apareçam as coisas boas. Um espaço que nasceu sem quaisquer pretensões alcançar os limites que alcançamos talvez seja a melhor delas. 2. Vale partilhar com vocês alguns números que ainda servem de espanto para um blog num país acusado reiteradamente de pouco afeito à leitura. Pelo Letras, os leitores passaram 2,7 milhões vezes (dos recantos mais variados do mundo, p.ex., Hong Kong nos visita mais que o país-irmão Portugal e nosso maior público visitante depois do Brasil é dos Estados Unidos). 3. Em termos de conteúdo, já editamos mais 3,7 mil textos sobre livros das mais variadas feições literárias, perfis de escritores, comentários sobre filmes, listas de leituras e de filmes, ensaios sobre temas e questões das mais variadas...

Mecanosfera/Monoambiente e os desafios da escrita

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Por Paula Luersen Criticar até mesmo aquilo que está em risco. Sabemos que não é tarefa do escritor zelar por instituições. Afinal, na maioria das vezes, escritores têm pouca influência prática e imediata sobre o rumo dos eventos que definirão a permanência ou extinção daquilo que está posto. É um grande desafio, contudo, revelar contradições e injustiças de situações sob o alvo de ataques políticos que não preveem qualquer crítica construtiva, apenas o escárnio. Falo da situação atual do mundo acadêmico no Brasil, transformado por instâncias governamentais, através de um olhar infantilizado, em uma espécie de inimigo a ser combatido. Longe de ser aquilo que pintam as tintas de uma postura ideológica e mal intencionada, esse mesmo mundo acadêmico também não está isento de críticas. Ao performar os vícios do sistema no qual se inscreve, ele promove assimetrias entre produção de conhecimento e seus modos de circulação e mensuração. O livro de Fabrício Silveira Mecanosfera/Monoambiente s...

Billy Budd, de Herman Melville

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Por Pedro Fernandes   É verdade que o trabalho da literatura, por mais que se acuse do contrário, não se estabelece pela alteração das coisas ou dos destinos sociais. No entanto, nela se manifesta o espaço privilegiado para o aceso debate sobre aspectos que atuam nessas modificações. E, talvez por isso, toda vez que as sociedades recrudescem seus limites de liberdade, logo se encontre na literatura o papel de bode expiatório e, consequentemente lhe imprimam a censura. Exemplos sobre o tratamento questionador exercido por algumas obras estão em toda parte e este pequeno texto de Herman Melville é um deles.   Ainda nos instantes iniciais da narrativa, o narrador de Billy Budd recorre ao discurso de verdade para justificar o que conta. Diz estar fora do grupo de ficcionistas que ignoram o fatual e se deixam seduzir pelo fabular; as provas, apressa-se em mostrá-las, se oferecem por uma variedade de atalhos que adiam o acontecimento principal e ao mesmo tempo demonstram que é alg...