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Lia, de Caetano Galindo

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Por Gabriella Kelmer Caetano Galindo. Foto: Leticia Moreira   Existe algo curioso nas estreias literárias. Fui recentemente atraída por elas em resenhas anteriores, com O dia dos prodígios , de Lídia Jorge, e Memória de elefante , de António Lobo Antunes. Nas duas obras, em que estão registrados os primeiros movimentos de autores fundamentais à produção contemporânea portuguesa, demarcam-se proclividades estilísticas e temáticas que serviram às produções seguintes. Pessoalmente, a essencialidade da dicção da autora ainda reside para mim em Vilamaninhos, cuja nítida decrepitude entristecida não me foi sombreada por obras posteriores; de outro modo, o romance do autor antecipa em alguns aspectos a cúspide que, considero, é atingida em romances seguintes.   Faço essas considerações não para opor as duas estreias, aliás excepcionais, cada uma a seu modo, mas para balizar as diferentes maneiras pelas quais uma primeira publicação pavimenta alternativas, preocupações e recursos que,...

Boletim Letras 360º #590

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DO EDITOR   Olá, leitores! Foi em alguma edição passada que comentei acerca do andamento de uma longa reforma começada desde a travessia para o aniversário de dezessete anos do Letras . Parte dela já é visível: o visual repaginado e a reorganização de parte do conteúdo.   Um exemplo da reorganização é a presença de uma seção dedicada ao ensaio. Publicamos este gênero desde sempre, mas os textos ficavam escondidos sob rótulo de outra coluna, a intitulada Intervalo e que há muito serve para abrigar conteúdos distintos daqueles que constituem o carro-chefe da página: as resenhas.   Outro exemplo: a seção cinema, com entradas semanais sempre às quartas-feiras, agora se chama Cinema e tv , por razões e motivos precisos, uma vez acompanharmos a viragem dos modos de acesso à sétima arte ou ainda o aparecimento de outros produtos visuais de interesse aos olhos da arte, como a série.   A outra parte da longa reforma ainda durará um bom tempo. Trata-se de passar em revista po...

Nhambiquaras & glitches

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Por Eduardo Galeno Joseph Beuys. Hasengrab, 1964/1979. Art Gallery of Ontario.   Rumores   1. Digamos que não é no imediato, fundado à risca por uma visualidade pura, que o rumor é feito. Digamos que seja um deslocamento simples, mas preciso. Portanto, poderíamos dizer, ou supor, que a linha percorrida por ele, o rumor, dispõe de habilidades, técnicas e modos.   2. [para ser redundante aqui] É por isso que o dispositivo do rumor não pode ser uma singularidade, “una”; ele remete a vários índices de partes que podem ser desiguais.   3. Nesse sentido, o rumor treme, vacila, gagueja. Há rumores .   4. Os rumores são, em contrapartida à forma , aqueles suntuosos elementos de deflagração de senso , se revoltando contra esse Deus exigente e sua maneira de ser que modulam as aparências do mundo (da infra linguagem: o mundo da linguagem dentro de si). Eles — rasgões da língua — abjuram das certezas de sua origem, ratificam uma cautela desinteressada. Essa cautela, poré...

Água turva: a tríade feminina de Morgana Kretzmann

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Por Vinícius de Silva e Souza   “tudo aqui é movido a vinho, carne ou sangue. O teu lugar agora é no vinho. Se não for assim, vai acabar indo direto pro sangue.” Água turva , romance de Morgana Kretzmann, em muito se parece com os romances de Ana Paula Maia: a narrativa seca e direta, sempre ágil, com ares cinematográficos, localizada em ambientes pouco ou nada urbanos e avesso às metrópoles. Porém, Morgana elabora uma narrativa mais intrincada (o que em nada é um demérito para Ana Paula) dividindo o cerne do enredo em uma tríade de protagonistas: Chaya, Preta e Olga.   Os ares de uma tragédia clássica se mostram desde o início, tão logo o livro abre com o perfil dos personagens. À medida que a história avança, em cortes rápidos de episódios, saltando de um personagem para outro, tanto no espaço quanto no tempo, o aspecto de peça de teatro trágica ganha ainda mais contornos.   Com desenvolvimento apropriado entre (quase) todos os personagens, mas principalmente as protag...

Olhando para o passado sem IRA

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Por Philipp Engel Cillian Murphy e Pádraic Delaney en Ventos da liberdade (2006).   Ao contrário da literatura, o cinema é uma arte eminentemente coletiva, tanto na sua produção, um trabalho de equipe, como na sua recepção pelos espectadores, reunidos na sala escura (a televisão à la carte é ainda um complemento mais ou menos útil). E se esta natureza coletiva pode dificultar a rápida rotulagem da denominação de origem de um filme, que corresponde por defeito à(s) nacionalidade(s) da(s) empresa(s) que o produziu — o cinema é antes de tudo uma indústria, um negócio e um custo, para o qual é necessário levantar forças —, tudo é muito complicado no caso irlandês, devido, claro, à turbulenta história de um país dividido, às suas relações conflituosas com a Coroa britânica e aos sucessivos fluxos migratórios, tanto para América, e especificamente para aquele caldeirão de imigrantes chamado Hollywood, e para a vizinha Grã-Bretanha, polos a partir dos quais a diáspora continuou a exercer...

Macedonio Fernández, o eterno retorno

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Por Álvaro Abós “Imitei-o ao ponto da transcrição, até ao apaixonado e devoto plágio”, confessou Jorge Luis Borges, com os olhos rasos de lágrimas, na manhã chuvosa em que Macedonio Fernández foi sepultado. Era 18 de fevereiro de 1952. Tal confissão não foi uma mera manifestação de pesar. No dia seguinte, Borges levou o obituário à revista Sur , onde foi publicado no número 209/ 210. Posteriormente, escreveu outros textos sobre o autor de Museu do romance da eterna , como o prólogo de uma antologia de 1961. A devoção filial por Macedonio nunca cessou em Borges. Porém, nesse prólogo e nos comentários orais que Adolfo Bioy Casares recolheu após quarenta anos de amizade e trabalho comum em seu Borges (2011), o autor de El Aleph reitera repetidas vezes a seguinte ideia: Macedonio Fernández era um gênio verbal. Só quem o ouviu pessoalmente pôde apreciar a sua qualidade intelectual e humana. Como escritor, sustentava Borges, era confuso e medíocre (“Os poemas são pessímos... Macedonio, nos...