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Oito poemas de “O orvalho numa folha de lótus”, de Ryokan

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Por Pedro Belo Clara (Seleção e versões)*     I.   quem disse que os meus poemas são poemas? os meus poemas não são poemas quando souberes que os meus poemas não são poemas então poderemos falar de poesia!       II.   quando era jovem passeava pela cidade, um rapaz alegre e charmoso ostentando um manto do mais suave que há montado num esplêndido cavalo castanho durante o dia, galopava pela cidade de noite, embriagava-me de pétalas de pessegueiro, junto do rio nunca pensava em voltar para casa quase sempre acabava os meus dias num pavilhão do prazer com um grande sorriso no rosto!         III. ao meu professor   uma velha campa, escondida no sopé duma colina deserta coberta de ervas daninhas, crescendo sem controlo ano após ano não há quem cuide da campa só de quando em vez um lenhador passa por aqui em tempos fui seu discípulo, um jovem de grande cabeleira absorvendo toda a sua sabedoria junto do Rio Estreito uma manhã inici...

Boletim Letras 360º #610

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LANÇAMENTOS   A primorosa biografia de uma das personalidades mais contraditórias da literatura brasileira .   Escrito no estilo cinematográfico de Lira Neto e amparado em farto acervo documental, este livro apresenta Oswald de Andrade em sua verve sarcástica, lírica e demolidora. Neste mergulho radical na trajetória do escritor, o biógrafo explora as muitas contradições da personalidade do polêmico biografado: blasfemo e temente a Deus, burguês e comunista, apaixonado e adúltero. O autor de romances experimentais e poemas revolucionários, exibia comportamento ao mesmo tempo febril e sentimental, amoroso e explosivo. Pensador vigoroso, usava a violência verbal e o sarcasmo como armas contra o conformismo intelectual. Era, acima de tudo, um personagem de si mesmo. Respaldada em vasta pesquisa em arquivos, incluindo cartas, diários e manuscritos, esta meticulosa biografia, narrada em ritmo eletrizante, revela que Oswald não se restringiu ao papel de ativista do modernismo. Inté...

Leituras obrigatórias

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Por Alejandro Zambra Ramon Casas. Jovem decadente , 1899.    Ainda me lembro da tarde em que a professora de castelhano se voltou para o quadro e escreveu as palavras prova , próxima , sexta , madame , Bovary , Gustave , Flaubert , francês . Com cada palavra crescia o silêncio e ao fim somente se ouvia o triste riscado do giz. Já havíamos então lido romances longos, quase tão longos como Madame Bovary , mas desta vez o prazo era impossível: teríamos apenas uma semana para enfrentar um romance de quatrocentas páginas. Estávamos começando a nos acostumar, contudo, com essas surpresas: acabávamos de entrar no Instituto Nacional, tínhamos doze ou treze anos, e já sabíamos que dali em diante todos os livros seriam longos.   Assim nos ensinaram a ler: às pancadas. Ainda penso que os professores não queriam nos entusiasmar e sim nos dissuadir, nos afastar para sempre dos livros. Não gastavam saliva falando sobre o prazer da leitura, talvez por terem perdido este prazer ou n...

Um romance russo, de Emmanuel Carrère

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Por Gabriella Kelmer Emmanuel Carrère. Foto: Franck Ferville   A autobiografia não ocupa tão comumente minhas reflexões sobre a literatura. Talvez a evitação seja por um apego à ficção no seu sentido mais restrito, ou ainda um desejo de evitar o confronto com a escorregadia classificação do que é literário; fato é que, se há romances e novelas autobiográficas que li com prazer, há ainda um caminho considerável para que eu possa discutir as questões teóricas ensejadas pela autobiografia com qualquer propriedade.   Essa lacuna, o interesse em remediá-la ligeiramente que seja, foi o primeiro ponto que trouxe às minhas mãos Um romance russo , de Emmanuel Carrère, autor cujo nome, e até então apenas isto, não me era estranho. O fator segundo consistiu em um desejo de ler algo novo, de um escritor com o qual não tinha familiaridade, sendo enfim essa novidade um dos traços mais atrativos para mim na produção dessas resenhas.   A versão da Alfaguara, que ocupa agora um espaço na...

Buñuel e a aventura surrealista

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Por José de la Colina Luis Buñuel. Foto: Man Ray.   1 Quem visitasse a exposição Surrealismo. Vasos comunicantes 1 precisava passar por uma porta dupla que era ao mesmo tempo uma tela sobre que fluíam imagens do filme Um cão andaluz . Essa obra inicial de Luis Buñuel e Salvador Dalí é marcada por algumas portas emblemáticas, principalmente uma mal entreaberta, (ou entreaberta?), que prende uma mão enxameada de formigas, e outra que, de um quarto citadino, se abre para uma paisagem inesperada de uma praia ensolarada naquela em que os amantes conflitantes se reencontram no desejo realizado e logo são como que vitimados pela escaldante primavera.   Essa porta/ tela pela qual passa Um cão andaluz , essa bela ideia/ ponte da exposição, é obra de Javier Espada, cineasta e diretor do Centro Buñuel de Calanda (Aragão, Espanha), que também havia chegado ao México com um filme de quatro minutos intitulado Al filo de la vida , no qual, ao ritmo vivo e reiterativo dos tambores Calanda, ...

Rulfo, Miyazaki, a morte

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Por Henrique Ruy S. Santos Abraham Matias. Ilustração para Pedro Páramo . No romance Pedro Páramo , de Juan Rulfo, Juan Preciado caminha por Comala, a terra natal de sua mãe, sem aparentemente travar contato com nenhum habitante vivo: ruas vazias, casas derruídas, murmúrios que ecoam pelas paredes. Em A viagem de Chihiro , filme de Hayao Miyazaki, Chihiro se desgarra dos pais e perambula por ruas igualmente vazias, mas que guardam algo de familiar e reconhecível: restaurantes desocupados, fumaça expelida por uma chaminé, um trem que passa com velocidade. É a um certo tipo de morte que ambos caminham, o que se torna logo reconhecível pelo acúmulo de rastros e índices da transmutação da realidade sensível em um mundo de espectros, de fantasmagorias.   Chihiro continua a caminhar até que um garoto desconhecido surge e lhe adverte que é preciso sair dali, pois a noite se avizinha. “É que aqui, essas horas são cheias de assombrações. Se o senhor visse a multidão de almas que andam solta...