"Carne viva", corpo que resiste: a poesia de Livia Corbellari


Por Wagner Silva Gomes



A estreia da poeta Livia Corbellari, jornalista, integrante do núcleo editorial da revista Trino, além de blogueira literária de destaque na cena capixaba, com o blog Livros por Livia, dá-se com o livro Carne viva (Cousa, 2019) com o que há de melhor na poesia, a coragem de colocar o dedo na ferida, estas metáforas que camada por camada estão lá, na palavra, ora dando o óbvio e o não tão óbvio da dor, ora dando o óbvio e o não tão óbvio do prazer. Outras horas apenas sendo, acima de tudo, mulher, já que poesia, a criação, é palavra de gênero feminino, no que há de liberdade, pois como coloca a rapper Drik Barbosa “Menino, atenção! Menino / Não é à toa que liberdade é no feminino”.

O livro é dividido em três capítulos que podem ser entendidos como três poemas. São eles: “fluxo intenso”; “vias de fato”; e “mar aberto”.

Nestes capítulos-poemas, na passagem deles, entre estrofes, e principalmente entre páginas, a autora abusa no uso do enjambement, que é a passagem do último verso de uma estrofe que se completa no verso da estrofe seguinte. O recurso, se se considerar: verso; vazio; verso, é em si uma carne viva, como uma ferida, uma inflamação, já que há uma continuidade que não é contínua (epiderme, derme; tecido muscular, tecido nervoso). Livia torna isso tão evidente que é impossível o leitor ficar insensível. Como nos exemplos: “fluxo intenso / só é mudança se passar pelo corpo” (abertura do primeiro capítulo com o primeiro poema); “vias de fato / dar nós / nas pernas / refazer a costura / apertar o ponto / até estourar a linha” (abertura do segundo capítulo com a primeira página dele); “mar aberto / os olhos nem se tocavam / as palavras iam se acumulando na retina” (abertura do terceiro capítulo com a primeira página sua).

O título do segundo capítulo, não à toa,  guarda, como no cultismo barroco, o seu excesso de imagens, carne viva = soco = sangue = violência, também barroca, se se pensar nas inversões sintáticas às vezes violentas daquele período literário; mas em Carne viva a violência é redundante, pleonasmo preciso, que mostra o excesso de imagens (mulheres que sentem prazer, que sentem a violência simbólica, a violência corporal, sentem dor, e que é horrível quando confundem dor e prazer, não pelo paradoxo, mas por mostrar seu lado sombrio, o costume em permanecer com o parceiro – por vários motivos – opressão, dependência financeira etc.) quando ao se mostrar ameaçador sabe-se ser quase certo resultar em feminicídio, já que o Brasil lidera o número de assassinatos de mulheres na América Latina (16 mil mulheres foram mortas entre 2015 e 2018 no país). Os versos seguintes transparecem esse acúmulo violento que paradoxalmente às vezes é aparentemente inofensivo:

“ainda sobraram alguns cacos de vidros
na garganta
e falar
é sempre dor
e sangue” (p. 16)

“faca de dois gumes
feita pra cortar
pronta pra curar” (p. 17)

“nem toda morte é sangue
o fim pode ser limpo

facas hesitam
palavras não” (p. 18)

Assim, as “vias de fato”, do título do segundo capítulo, são também os fluxos intensos do título do primeiro capítulo, são as ruas, por onde passam tantas mulheres que desafiam o lugar de mulher, como um mar aberto, título do terceiro capítulo,  livres, incrivelmente hábeis onde atuam, pois como coloca a autora Angela Davis em seu livro Mulheres, raça e classe (Boitempo, 2016):

“Na verdade, o lugar da mulher sempre tinha sido em casa, mas durante a era pré-industrial a própria economia centrava-se na casa e nas terras cultiváveis ao seu redor. Enquanto os homens lavravam o solo (frequentemente com a esposa), as mulheres eram manufatoras, fazendo tecidos, roupas, velas sabão e praticamente tudo o que era necessário para a família. O lugar das mulheres era mesmo em casa – mas não apenas porque elas pariam e criavam as crianças ou porque atendiam às necessidades do marido. Elas eram trabalhadoras produtivas no contexto da economia doméstica, e seu trabalho não era menos respeitado do que o de seus companheiros. Quando a produção manufatureira se transferiu da casa para a fábrica, a ideologia da feminilidade começou a forjar a esposa e a mãe como modelos ideais. No papel de trabalhadoras, ao menos as mulheres gozavam de igualdade econômica, mas como esposas eram destinadas a se tornar apêndices de seus companheiros, serviçais de seus maridos. No papel de mães, eram definidas como instrumentos passivos para a reposição da vida humana. A situação da dona de casa branca era cheia de contradições. Era inevitável que houvesse resistência” (p. 45).



Com a mente a mil, em fluxo intenso, a autora leva ao limite até romper (no que há de benefícios para as mulheres – resistência, liberdade, outros modos de vida; e malefícios para as mesmas – preconceitos, ofensas, feminicídio) a separação entre mente = razão = homem e baixo ventre = irracionalidade = mulher, como conceituou Deleuze ao pensar criticamente sobre a tradição dos efeitos de sentido no pensamento sobre o corpo. Mas, como diz a rapper  Livia Cruz: “Foda-se o seu conto de fadas / porque eu sou foda / E não nasci pra ser domada”. Com uma poesia cerebral, como até aqui foi analisada, que casa totalmente com a entrega ao sensível, Livia faz com que o corpo feminino em sua poesia confronte os lugares de mulher da tradição porque ao pensar sobre o prazer e a dor ela sempre envolve situações contextuais, seja de opressão, de compartilhamento do espaço da casa, de ato sexual etc.

Mas Carne viva também traz o gozo do prazer saudável de quem atinge o mar aberto, mesmo antes do último capítulo (de quem atinge durante):

“com dedos
dentes
e língua
ele percorre os caminhos
que sabe de cor
mas finge que é estrangeiro aqui
perde-se entre pernas e cabelos
sabe como eu gosto
como eu gozo
e demora
e escorre” (p. 36)

“mas por que poesia?
se ninguém se move
se ninguém vacila
a língua está morta

mas a minha não
minha língua não cala
ela está viva em minha boca
e em
sua boca”  (p. 20)

O conteúdo de ser mulher e o devir feminino, através da metalinguagem e outras formas, com versos livres, assonâncias e aliterações (dedos, dentes; gosto, gozo; pernas e cabelos) mostra que há a forma poética Livia de se atingir a plenitude do que é ser mulher, como uma marca de fôrma industrializada, mas que Livia fez o design, e patenteou. Livia senta à mesa com homens e mulheres para decidir sobre as ações dos versos. Vamos pensar: “Mas por que poesia? / se ninguém se move / se ninguém vacila / a língua está morta”. A poeta mostra que um verso livre mirado em uma palavra (move) é revolução no meio de dois versos rimados toantemente (vacila / morta), mesmo que a língua não esteja no meio, mesmo só com palavras. Porque palavras para ela nunca são apenas palavras. Livia, como uma rapper, ainda brinca com as dores para resistir ao prazer: “já morri mil vezes / mas sempre volto pra mim / transe de corpo pela sala / álcool não esteriliza / porra nenhuma”.


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