O deserto do amor, de François Mauriac

Por Pedro Fernandes



O que somos para nós? O que somos para os que são próximos a nós? E para aqueles que só sabem de nós pelo que os outros dizem de nós? O deserto do amor, de François Mauriac, uma história de amor, é também uma investigação sobre essas questões. A essas perguntas, numa certa ocasião, uma das personagens do romance, se vê entregue a um sofisma: “Assim que ficamos sós, somos loucos. Sim, o controle de nós próprio por nós próprio só funciona mantido pelo controle que os outros nos impõem”. Raízes da máxima existencialista que atribui ao outro o inferno de nós mesmos, a compreensão de Paul Courrèges, mantém diálogo com as indagações anteriores num ponto: nossa identidade nunca é definida como se um todo isolado, mas na relação entre nós e o mundo.

Como François Mauriac se insere no amplo debate que nos compreende enquanto trânsito? Raymond Courrèges é um que se orgulha do fato de se bastar no mundo e de não desenvolver quaisquer tipos de apegos emocionais com o outro, isto é, uma típica figura produto do modelo de uma sociedade cujo o império do indivíduo começa a estabelecer suas bases. Esta condição, entretanto, é colocada em suspeita quando ele próprio se vê intrigado pela ausência da companhia de Eddy H..., um amigo que, mesmo depois de todas as tentativas de convencimento para acompanhá-lo deixa-o sozinho no bar. A explicação para este dilema de quem mantém acesa a chama do desinteresse e para quem um amigo é apenas “um par de ouvidos”, ou ainda, de quem gosta “de provar a si próprio” que domina aos amigos e se envaidece “em desmoralizar com eficácia” será explicada quando décadas depois, sozinho neste bar, reconhece Maria Cross, uma mulher de quando adolescente Raymond desenvolveu sua primeira paixão platônica.

Situada entre a ocasião desse encontro e o passado que vai da infância à juventude de Raymond, O deserto do amor nos explica que mesmo o estado de profunda cisão entre o eu e o outro é motivado por uma relação de alteridade; afasta-se, então, totalmente a falsa ideia da personagem de que há no mundo alguns raros como ele cuja posição é a de ser acima do outro – compreensão em parte explicada pelo sofisma de Paul, o pai de Raymond, figura totalmente oposta à natureza do filho. No passado, Paul também manteve uma estreita relação com Maria Cross, ocultada para a família, a qual faz coro à diversidades de opiniões que circulam por Bordeaux que esta seja uma teúda e manteúda.

A posição de Cross, entretanto é dúbia. O narrador de François Mauriac constrói todas as ações dessa personagem marcadas pela ambiguidade, capaz de deixar uma variada forma de suspeitas, como a sobre a paternidade do seu filho morto: o leitor atento não deixará de sublinhar a expressão “nosso anjinho” numa das cartas de Maria a Paul. E entre a inveja dos outros sobre sua liberdade ou sorte na vida sem grande esforço (claro, esta é uma percepção dos que estão distantes dela) e a possibilidade de ser uma mulher honrada, no quesito de honra definido pela estranha moral burguesa, o leitor já terá compreendido, ela é a peça através da qual a narrativa desenvolve suas respostas às perguntas que lhe dão forma.

Isto é, se para todos os que estão muito distantes de Maria Cross, ela é a mulher de vida fácil, entregue ao deleite do corpo, às vaidades e prazeres, imagem, aliás, que determinará as fantasias adormecidas do adolescente Raymond Courrèges, aos olhos de Paul Courrèges, ela é uma mulher batalhadora, agraciada pela bondade dos amigos e abalada psicologicamente pela perda repentina do pequeno filho François. Para si, Maria Cross é, impasse entre o que dela dizem, o que dela pensa Paul e certo espírito cuja principal característica é um desapego de certos luxos da vida. Isso se marca na própria apresentação do espaço onde vive – a propriedade de Larousselle – sempre marcada pela descrição de entre o luxo e a miséria.

É esta personagem a responsável pela diversidade de transformações vividas entre Paul e Raymond. O primeiro se insere na extirpe dos últimos românticos ou, como define o filho, um “boboca”, capaz de crer em todas as supostas histórias contadas por Cross; Raymond acredita, portanto, no tema machista sobre o jogo ardiloso da mulher na coita amorosa. Assim, enquanto Paul se vê cada vez tomado da impossibilidade de realização do seu desejo amoroso, o que lhe deixa apático, sisudo, cabisbaixo e entregue a um estádio de melancolia, Raymond, quem se vê entregue a essa mesma condição do pai, logo passará por todas as transformações que o fazem adulto.



No interior dessas transformações, o que não se deixa de perceber é a crítica estabelecida por Mauriac acerca dos nossos fechamentos para com os que mais estão próximos a nós ou ainda o quão reparamos facilmente no mal-estar do outro e não na sua condição contrária. Além de uma reafirmação sobre a tese realista de degeneração da instituição burguesa de família, nota-se a inclinação dos indivíduos para os universos trágicos e o apagamento das percepções sobre o outro – fundamentais para a percepção de nós mesmos. Há duas ocasiões da narrativa que justificam isso: enquanto Paul se mostra profundamente abatido pelo sentimento não realizado com Maria Cross, a mulher com quem é casado demonstra toda sorte de preocupações para com a saúde dele, mas bastará a personagem tentar reavivar os laços afetivos entre os dois, para que a observação dela seja a reprovação de que deixou novamente a luz do escritório acesa. Ela própria, mesmo diante de todas as mudanças operadas no filho Raymond – e não são poucas – continua a vê-lo “o mesmo, aborrecido, resmungão, obtuso”.

Há uma percepção construída por Mauriac, a partir do cerzido de sutilezas, sobre o embrutecimento das relações como uma das causas pela dilapidação da convivência e, logo, por uma fragmentação da comunidade humana. O universo de O deserto do amor é do ceticismo sobre o império da razão individualizadora. Tanto é assim que sua narrativa se apoia numa manutenção de um impasse entre os polos constitutivos dessa nova realidade em curso. Encontra-se aí as causas dos principais males do homem moderno: a condição de pouco à vontade no mundo, inseguros, frágeis, inaptos à ação, entregues às determinações e reclusos em universos cujas fronteiras não angariam correspondência com o mundo vivido. Raymond é um exemplo disso. A personagem, incapaz de levar adiante o jogo de sedução estabelecido por Maria Cross num dos primeiros encontros, isso por acreditar que a força bruta do macho é a matriz-suficiente para o enlace amoroso, sentir-se-á abalado para todo o sempre quanto às relações que desenvolverá desde então admitindo-se também a tese sobre as marcas profundas e irreparáveis deixadas pelo primeiro amor.  

Sim, com O deserto do amor François Mauriac recupera os tons de uma história de amor ao estilo clássico.  Sim, há o traço da mulher fatal (porque idealizada) que corrói a existência dos homens que com ela se envolvem; há o imbróglio amoroso cuja natureza apesar de diversa para os dois envolvidos – Paul e Raymond – o levam ao mesmo ritmo desgarrador, à desordem e à danação da coita amorosa; há a irrealização do amor porque os envolvidos estão marcados ora pela sublimação dos desejos – a Cross, o filho François sempre se apresenta como elemento através do qual estabelece sua aparência sobre o amor ou ainda a imagem que lhe confunde os desejos do corpo – ora pelo desregramento do desejo e a idealização platônica. E, como é recorrente nestas histórias, o sentimento está para os convalescentes da razão, o que justifica em parte a postura de Raymond de descaso em todas as relações.

Acrescente ainda nesta pequena mas significante lista a estreita integração entre os movimentos das volições amorosas, o estado de espírito das personagens e os movimentos da natureza, constituindo uma reprise da ideia de que o amor e a paixão pertencem ao plano dos instintos e por isso são manifestações também naturais qual as estações do ano ou a variação climática. Essa é uma constante que atravessa todo o romance sobretudo quando a narrativa se concentra sobre o passado da família Courrèges – traço que integra este romance num limiar entre a tradição realista/naturalista e com fortes incursões do traço simbolista, três estéticas que marcam profundamente a literatura francesa anterior a quando a obra de Mauriac foi escrita. 

O deserto do amor foi publicado em 1926 e com ele François Mauriac logo ganhou o Grande Prêmio do Romance Francês. Só exatos quarenta anos depois este livro ganhou tradução no Brasil por Rachel de Queiroz; depois dessa primeira edição só foi reeditado em 1973 e desde então se tornou raridade – distanciamento que combinado com a quase ausência da obra do escritor francês no país assinalam o sintoma de uma crise da leitura ou pelo menos do interesse por certa literatura e que deixa entrever o fato de nem sempre o caso do autor estar entre os mais importantes da literatura universal é motivo suficiente para sua permanência nos catálogos. A reedição mais de quatro décadas depois pela José Olympio é, portanto, histórica.

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