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A tradutora, de Cristovão Tezza

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Por Pedro Fernandes A literatura brasileira contemporânea está repleta de romances bem escritos, mas vazia de narrativas capazes de produzir no leitor um encantamento por uma personagem. A afirmativa leva em consideração uma literatura que tem a presença de figuras como Macabéa, Dom Casmurro, Riobaldo, Policarpo Quaresma, figuras que, depois de a encontramos, incorporam-se à nossa existência e passam a conviver conosco, como se alguém muito próximo ou que conhecemos em vida numa ocasião qualquer. E delas falamos quando precisamos explicar determinadas situações que se passam ao nosso redor ou proximamente. Isso ocorre, em parte, porque de algum tempo para cá os escritores têm estado preocupados em construir bem determinados temas (modismo que se reflete também entre os leitores, que querem, antes de tudo tratar sobre recorrências temáticas e não sobre o labor estético, isto é, os modos de composição da narrativa e seus elementos estruturais). Isso tudo serve para dizer a...

José Saramago, tão ou mais necessário

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Por Pedro Fernandes Os seres humanos não podem aceitar as coisas como elas são, porque isso leva-nos directamente ao suicídio. Temos que acreditar nalguma coisa e, sobretudo, temos de ter um sentimento de responsabilidade colectiva, segundo o qual cada um de nós será responsável por todos os outros. José Saramago * O livro é só um espaço habitado por palavras. E essa não é uma concepção que tenha adeptos apenas entre os que lhe atribuem uma dimensão participativa na vida das pessoas e concordam que a obra nasce toda vez que o leitor torne a vibrar as palavras que aí habitam; entre aqueles adeptos do livro-objeto também essa ideia faz algum sentido. Mas não é entre esses últimos que encontraremos José Saramago. Porque a necessidade do leitor enquanto figura participativa se imprime logo na liberdade a ele concedida no ato de construção da narrativa. É bem verdade que há muito a literatura busca romper com a condição do leitor mero receptor – exemplo disso são os c...

Julio Cortázar, tradutor de Edgar Allan Poe

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Por Juan Tallón Na literatura às vezes é bom confundir trabalho e prazer. Alguns escritores sabem disso e obtêm seus livros dessa mistura perigosa. Em 1953, Julio Cortázar foi de férias para a Itália no intuito de traduzir os contos e ensaios de Edgar Allan Poe, e depois de nove meses de viagem, regressou a Paris com mais de mil páginas de tradução, prólogos e notas de rodapé. O idílio do autor de O jogo da amarelinha com Poe, entretanto, havia começado muito antes, quase como se não tivesse um começo. Em sua juventude, como recorda Miguel Herráez em Julio Cortázar. Una biografia revisada , o autor argentino, sem diretrizes nem mestres, começou a “devorar toda a literatura fantástica que tinha ao seu alcance: Horace Walpole, Joseph Sheridan Le Fanu, Charles Maturin, Mary Shelley, Ambrose Bierce, Gustav Meyrink e Edgar Allan Poe, este na edição espanhola de Blanco Belmonte”. Um bom leitor aceita ser perturbado desde quando é um jovem ainda sem critérios. Em La vuelta a Juli...

A linhagem de Thomas de Quincey

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Por Antonio Muñoz Molina Que o conheças ou não, se  você escrever com expressiva ambição num jornal e se deixa ir por uma cidade no grande rio dos desconhecidos, se você experimenta os mistérios do real e as truculências do imaginário, se você tem a tentação de abandonar-se à ebriedade das sensações da vida e dos paraísos artificiais, alguns mais tóxicos e mais viciantes que outros, você é discípulo de Thomas de Quincey. Inclusive não é imprescindível que a literatura seja tão importante para você: escuta a voz e as letras de Lou Reed naquele disco New York e uma parte do espírito de Thomas de Quincey estará infiltrando-se em você.   Lou Reed pode invocar em suas canções a noite sombria de Saint Mark’s Place nos anos setenta, as ruas então envolvidas na negritude dos desfiladeiros do Soho: mas o pressentimento de excitação e perigo da vida noturna, o flanar de quem busca o proibido ou o impossível ou de quem segue caminhando porque não tem onde cair vivo nem m...

Boletim Letras 360º #195

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Lima Barreto, o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty 2017. Mais detalhes ao longo deste Boletim. A semana que finda deixou-nos marcas sensíveis: a morte de Leonard Cohen, um dos expoentes da música e um dos raros a renovar a estreita relação poesia e música, é o motivo. Nesses casos, o que sempre nos conforta é, sabedores de que homens como ele deixa-nos uma obra, esta permanece à responsabilidade dessas e das próximas gerações. Agora, para trazer uma nota de boa-nova, não esqueceremos de lembrar o leitor de participar de nossa promoção de 10 anos do Letras. Saiba mais  aqui . Segunda-feira, 07/11 >>> Brasil: A poesia de Gilka Machado reeditada Gilka Machado chegou a ser acusada de transformar as mulheres da sociedade em impuras. Uma das pioneiras da poesia erótica no Brasil e feminista que participou da campanha pelo voto feminino no Brasil, voltará às livrarias do país depois de mais de 20 anos fora de catálogo. Uma edição crítica...

Leonard Cohen, o apaziguador sussurro

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Por Fernando Navarro Figura capital da música contemporânea, Cohen demonstrou durante toda sua carreira que não havia mentira em sua obra. Cantava a verdade. E, de maneira mais assombrosa e dolorida possível, o fez pela última vez em You Want It Darker , seu último álbum, publicado há apenas um mês. Um álbum que soava despedida, que, com sua crueza instrumental e sua voz íntima e sombria, ficou esculpido como um barqueiro do Hades, servindo de trânsito até o outro lado da margem infinita. Como cantava na obscura composição que dá título ao trabalho, o músico confessava com seu tom grave que estava “fora de cena”, “velho” e “coxo”. “Estou preparado, meu senhor”, dizia num estribilho que agora já se sabe era premonitório. “Imagino que sou alguém que simplesmente renunciou a mim e a ti”, destacava em Traveling Light . Era uma obra em que planejava a morte do início ao fim. Esta que agora chegou. Nascido em Montreal, Canadá, em 1934, Cohen, que cresceu no meio de uma família...