Andrea Camilleri, o escritor da memória italiana
Por Paula Corroto
![]() |
Andrea Camilleri. Foto: Leonardo Cedamo |
O sucesso literário chegou tarde para Andrea Camilleri (Sicília, 1925 — Roma, 2019), mas o que importa quando se consegue tornar seus romances, mesmo ambientados na Sicília, universalmente conhecidos, e seu protagonista, o detetive Salvo Montalbano,¹ um desses personagens irrepetíveis para sempre ancorados na memória do leitor?
Ele tinha quase 70 anos quando publicou A forma da água (1994), o primeiro livro com esse singular detetive, um excelente gastrônomo e ainda melhor investigador, capaz de caçar qualquer criminoso com deliciosas ideias que sempre apareciam nas páginas finais de seus romances. Desde então, ele escreveu outros mais de uma centena livros, incluindo os desta série — 37 ao todo —, mas também outros romances históricos e contemporâneos, além de livros de memória. O termo prolífico parece insuficiente para defini-lo.
A lâmpada radicalmente lúcida deste escritor, um fumante inveterado e um comunista de carteirinha, apagou-se enquanto ele ainda estava no campo de batalha. Ele morreu em 17 de julho de 2019 na cidade para a qual se mudou desde o final dos anos 1940.
Os aplausos para Camilleri demoraram a chegar, mas não era nenhum desconhecido para a cena cultural italiana. Antes de Montalbano, ele havia escrito outros romances, dirigido peças de autores como Luigi Pirandello, Eugène Ionesco e Samuel Beckett para a RAI, na televisão e no rádio, nas décadas de 1950 e 1960. Uma época em que a televisão pública ainda apresentava teatro, concertos e debates, muito antes de ser berlusconizada sob a marca Mediaset.
Quando escreveu o primeiro romance de seu famoso detetive, quase por acaso, porque ele não queria escrever um romance policial dos já conhecidos, não foi imediatamente aceito pelas editoras. Mas tão logo foi publicado se tornou um enorme sucesso. E então veio o segundo, O cão de terracota, e o terceiro, O ladrão de merendas. E sucessivamente. Foram quase 25 anos de convivência entre o escritor e seu personagem.
“O que Camilleri fez com esses romances foi capturar um mundo romântico mediterrâneo muito pitoresco. E nele do que falava era das paixões humanas. Não se considerava um romancista de livros policiais e, como um policial comentou certa vez em uma conferência sobre o escritor, os métodos de Montalbano não têm nada a ver com os usados pela polícia de verdade”, comenta Carlos Mayor, que traduziu vários dos livros do escritor italiano para o espanhol. “Os crimes nunca são o aspecto mais relevante. O que ele sabe falar são as tragédias humanas naquele ambiente siciliano, e é por isso que recria a comida tradicional da Sicília, a sua mentalidade com as diferenças entre os velhos e os jovens, entre o campo e a cidade. E tudo isso sempre por meio do diálogo, que é o que ele domina melhor, vindo de uma formação teatral”, acrescenta o tradutor.
A linguagem tão própria do escritor é uma de suas mais famosas características. E é uma verdadeira dor de cabeça para os tradutores. Para muitos italianos, Camilleri inventou o camilleriano, embora ele próprio tenha chamado de vigatês, em alusão a um dileto específico da vila de Vigàta, imaginada por ele. No entanto, é um reflexo de Porto Empédocles, uma comuna da província de Agrigento, onde nasceu, no sul da Sicília, cidade que coexiste com o espetacular Vale dos Templos, da época romana.
“Muitos abordam essa linguagem como se fosse uma invenção sua, quando na realidade é um exercício de memória. Camilleri tinha uma memória e uma atenção aos detalhes prodigiosas. O que ele fez foi recriar as coisas que guarda da memória de quando era criança, desde que deixou a Sicília há 70 anos”, argumenta Mayor. Parte dessa dificuldade inclui ainda a reprodução de uma oralidade. “Ele é muito pouco descritivo e, se já descreveu um personagem, não insiste. E, por outro lado, com a série Montalbano, o problema é a continuidade. É preciso respeitar esses personagens e o leitor que os conhece, e que não pode se sentir traído se fizermos uma mudança a meio do caminho”, explica o tradutor.
Em muitos desses diálogos se revelam personagens, como o enlouquecedor Catarella, o leal tenente Fazio, o mulherengo Mimi Augello, Livia, sua namorada com quem ele nunca convive, apesar de manter um relacionamento de mais de trinta anos, o sarcástico legista Pasquano e o jornalista Nicolo Zito, da emissora de televisão local Retelibera — sua crítica à televisão mais sensacionalista e menos informativa, talvez por conhecê-la bem, está frequentemente presente em seus romances.
“Todos os seus personagens são muito bem desenhados e possuem características próprias que um tradutor precisa saber reproduzir, além de, dependendo de com quem estão falando, possuem uma linguagem própria. É por isso que, à primeira vista, seus livros podem parecer muito acessíveis, mas, depois que o leitor se aprofunda neles, percebe que são complexos, porque muito bem construídos”, sustenta Mayor.
O escritor siciliano foi membro do Partido Comunista Italiano na juventude, logo depois de terminada a Segunda Guerra Mundial. E as questões políticas formam um tema central em seus romances a partir de assuntos como os enredos da politicagem e suas corruptelas. Em suma, é dessa maneira que a própria Itália tem conseguido lidar com a política.
Em 2015, por exemplo, escreveu um conto intitulado “Homenagem”, que também é uma espécie de peça pirandelliana, ambientada em 1940, na qual ironicamente discorre sobre o revisionismo em seu país, mas que, nessa altura, pode ser aplicado em qualquer lugar. Em Donne, outro escrito dos últimos anos de sua vida, recorda aquelas que passaram por sua vida como uma homenagem ao que fizeram, desde as jovens que lutaram na guerra até aquelas suas companheiras pelo mundo da literatura.
E é claro que o tema da máfia igualmente se impôs na sua ficção. Ainda que de forma oculta, o percebemos subjacente nos romances policiais; o tema atua como plano de fundo com as lutas entre as duas principais famílias mafiosas da região. “Ele não queria destacar demais esse tema, talvez para evitar cair no típico romance de máfia”, confirma Carlos Mayor. E assim como ele falava através de seus romances, também o fazia em debates públicos.
Mesmo com mais de noventa anos, Camilleri nunca deixou de expressar publicamente suas opiniões. “Muito presente no debate público e, em tempos muito polarizados na Itália, acabou fazendo muitos inimigos. Tanto que, quando foi hospitalizado, houve, por parte dos seguidores de Salvini,² uma campanha contra ele, desejando-lhe o pior”, observa Mayor, que lembra como na Itália o diretor dos seminários sobre o escritor costumava dizer que havia dois poderes: um religioso, representado pelo Papa, e o outro, por Camilleri, “a quem se podia recorrer como autoridade moral secular.” Bom, isso pode parecer exagero, mas é indicativo de sua presença na vida pública e do quanto as pessoas o amavam.
Talvez seja por isso que, na última fase de sua vida, o que mais o preocupava, embora em grande parte sempre tivesse sido assim, era o exercício da memória. Em um dos seus livros, Ora Dimmi Di Te: Lettera a Matilda é uma carta para sua bisneta na qual ele conta que, prestes a morrer, deseja deixar um relato escrito sobre a ascensão do fascismo de Mussolini na Itália, como foi sua atitude ante esse acontecimento, como era a vida em Porto Empédocle naquela época e como era a sua vida. Essa não é a única coisa que ele queria deixar resolvida.
O escritor também já havia planejado o final do seu comissário Montalbano e o escreveu no romance Riccardino.³ É o último caso de uma figura criada por um dos grandes intelectuais progressistas da Itália em uma época em que tais histórias são extremamente escassas.
Notas da tradução:
1 Consta que o nome do detetive foi uma homenagem de Andrea Camilleri ao escritor barcelonês Manuel Vázquez Montalbán, criador de Pepe Carvalho, também um detetive protagonista de uma série de romances com o qual seu autor pôde desenvolver uma ácida crítica à situação política e cultural da sociedade espanhola durante a última metade do século XX.
2 Matteo Salvini, político e um dos líderes de extrema direita na Itália.
3 Riccardino foi escrito originalmente em 2005, revisto em 2016 e publicado postumamente em 2020, a pedido do autor.
* Este texto é a tradução de “Andrea Camilleri, el escritor de la memoria italiana”, publicado aqui, em Letras Libres.
Comentários