Julio Cortázar, tradutor de Edgar Allan Poe

Por Juan Tallón




Na literatura às vezes é bom confundir trabalho e prazer. Alguns escritores sabem disso e obtêm seus livros dessa mistura perigosa. Em 1953, Julio Cortázar foi de férias para a Itália no intuito de traduzir os contos e ensaios de Edgar Allan Poe, e depois de nove meses de viagem, regressou a Paris com mais de mil páginas de tradução, prólogos e notas de rodapé. O idílio do autor de O jogo da amarelinha com Poe, entretanto, havia começado muito antes, quase como se não tivesse um começo. Em sua juventude, como recorda Miguel Herráez em Julio Cortázar. Una biografia revisada, o autor argentino, sem diretrizes nem mestres, começou a “devorar toda a literatura fantástica que tinha ao seu alcance: Horace Walpole, Joseph Sheridan Le Fanu, Charles Maturin, Mary Shelley, Ambrose Bierce, Gustav Meyrink e Edgar Allan Poe, este na edição espanhola de Blanco Belmonte”. Um bom leitor aceita ser perturbado desde quando é um jovem ainda sem critérios. Em La vuelta a Julio Cortázar en (cerca de) 80 preguntas, o escritor argentino confessa a Elena Poniatowska que desde criança foi despertado pela literatura moderna quando leu os contos de Poe “que me fizeram muito bem e muito mal ao mesmo tempo. Li-os aos nove anos e, por Poe, vivi no espanto, sujeito a terrores noturnos até muito tarde na adolescência”.

Na verdade, quando a tradução de Poe ainda era um propósito distante, Julio Cortázar e Aurora Bernárdez já planejavam uma viagem à Itália, pensavam fazê-la sobre uma Vespa. No verão de 1952, farto de andar de bicicleta por Paris, e de carona pelas cidades dos arredores, Julio comprou uma moto de segunda mão a um médico argentino. Seu plano incluía levá-la no trem até Milão e daí percorrer o país durante um mês. Mas isso foi antes que no 14 de abril de 1953 cruzasse uma velhinha em seu destino e, para não a atropelar, Cortázar caiu da vespa e quebrou uma perna.

Em julho desse ano, ainda convalescente, recebeu uma carta em seu apartamento da Rue de Gentilly que chamou de uma “notícia extraordinária”: Francisco Ayala, professor na Universidade de Porto Rico e diretor da editora que publicava sua obra, comunicava que a instituição aceitava sua proposta para a tradução dos contos e ensaios de Poe. Pagariam 2.500 dólares (que no fim seriam 3.000). “É, realmente, um bom pé de meia”, confessou cheio de felicidade ao seu amigo Eduardo Jonquières.

Cortázar e Ayala haviam se conhecido em finais dos anos quarenta em Buenos Aires, durante o exílio do espanhol. Em suas memórias, Recuerdos y olvidos, Ayala evoca como naqueles dias ninguém fazia caso do jovem Cortázar. “Eu tomava café às vezes com Daniel Devoto, Luis Baudizzone e algum outro, e Cortázar se juntava a nós, impaciente, jovial, irritado, assertivo”. Anos depois, Ayala se lembrou de suas conversas na Argentina e “me escreveu perguntando se eu queria fazer a tradução”, contou a Elena Poniatowska. Cortázar não hesitou e, seguindo as formalidades, se ofereceu à Universidade de Porto Rico.

Sua primeira decisão, com a carta de Ayla aprovando sua proposta em mãos, foi deixar seu trabalho matinal numa distribuidora de livros com o argumento de que Roma “vale a pena um laissez-passer e dois ou três benefícios estudantis”. Quase ao mesmo tempo se desfez da muleta que a Vespa havia lhe legado. Justo neste instante, Cortázar ficou preso na “graciosa situação de um indivíduo que é milionário” já que o que cobraria por Poe estava não muito distante de um milhão de francos, “e ao mesmo tempo se pergunta como vai se resolver para viver durante esses meses intermediários”, pois entre as tradições da Universidade de Porto Rico estava não adiantar um centavo até a entrega da tradução. A saída uma vez mais foi pedir dinheiro emprestado aos amigos.

Como se fosse uma parte a mais da viagem, ou um trâmite da tradução, no dia 22 de agosto Julio se casou como Aurora. Depois romperam o contrato de aluguel com seu apartamento da Rue de Gentilly, venderam a vespa, armazenaram os livros num guarda-volumes e sem mais partiram no dia 16 de setembro de trem de Paris até Roma. Durante os primeiros dias se instalaram no Albergue Pelleccioni, próximo à estação Termini, para depois mudarem-se para a Via di Propaganda Fide, uma pensão a cem metros da Piazza di Spagna, próximo da casa onde viveu e morreu John Keats, circunstância que encantou os dois. Pagariam 20 mil liras por mês.

O outono cabe num bolso de tão feliz que se sente e em suas cartas aos amigos Cortázar fala sobre a beleza de Roma, “cheíssima de italianos que invadem as ruas com as mãos e a voz”. Aurora e ele não esperam um minuto para visitar os museus, de maneira que ao regressarem à pensão estão tão cansados que tomam aos montes mates amargos. “Estou até as orelhas com Poe. Hoje traduzi dez páginas dos crimes da Rua Morgue. Br...!”, escreve a Eduardo Jonquières, cujas cartas são um relato direto para dar conhecer seu périplo italiano e seu pulso com o escritor estadunidense. A cidade lhes descobrem outro milagre: a pizza romana. “Além de deliciosa, além de ser a loucura mais incomensurável do sistema solar, é barata e nos deixa fartos e felizes como gatos”.

Só se resignam a ficar em casa nos dias de chuva. Então, leem e corrigem o que traduziram de Poe até o momento. Em silêncio e devagar chega o primeiro problema sério com dinheiro. Dependem dos empréstimos de Jonquières, de Buenos Aires, e a remessa que tinham de receber, por alguma razão que não conseguiram entender, atrasa. Em sua última carta, Eduardo afirmava que “suponho que já terás recebido”, em referência às liras.

Cortázar, inquieto, se perguntava se haveria esquecido de fazer algum trâmite, ou ignorado alguma instrução de seu amigo, depois de ler várias vezes a correspondência. “Estive a ponto de jogá-la no fogo, esfregá-la com vinagre, para ver se apareciam letras vermelhas como em “O escaravelho de ouro””. Com só 36 mil liras, poucas para Roma, tomaram a decisão de economizar o dinheiro e viver com mil liras por dia. Isso implicava almoçar modestamente, traduzir sem parar, tratar a fome com displicência e de noite comer ovo cozido e um sanduíche de stracchino ou de fontina. Também inauguram a era do café com leite, renunciando a pizza e o ônibus. Não estavam os tempos para colocar em risco a felicidade. “Como simultaneamente eu andava traduzindo as aventuras de A. Gordo Pym, o tema do canibalismo voltava muitas vezes em nossos diálogos e se adequava lugubremente à nossa situação”. Cogitaram a possibilidade de falar por telefone com Jonquières na Argentina para esclarecer a situação, mas isso custava, na época, 9 mil liras; descartaram. Restava a opção do telegrama que lhe permitiria contar em poucas palavras sua tragédia pela metade do preço. Mas no dia 9 de dezembro, quando já haviam decidido sacrificar 4.500 liras nessa comunicação, o carteiro tocou a campainha e, com um envelope azul, seus problemas econômicos se acabaram.

Os dias passam como se fossem só folhas escritas que se movem com um dedo e Cortázar se dedica exclusivamente a Poe. Está a ponto de chegar 1954 e admite que está um pouco atrasado. Quis escrever um romance, mas terá que esperar concluir a tradução e estar de regresso a Paris. “Até agora a Europa me invadiu de tal maneira que não me deixa ser eu mesmo. Todo o tempo estou sendo outras coisas, a paisagem, os quadros, os cheiros, a felicidade”. Não lhe importa não escrever. “Nunca acreditei nas missões dos escritores”. Às vezes estes são também porque não escrevem, ou os que fazem sem horários pré-fixados. Apesar de tudo, na Itália encontra momentos salvadores “numa sala de espera, num banco da praça, até numa trattoria” para compor algum poema.

Quando se passam quatro meses de estadia em Roma, a tradução de Poe entra “no que um mal escritor chamaria o período crucial mas que eu, mais purista, qualifico de quilombo livre”. Não leva em conta, mas os papéis acumulam-se vertiginosamente sobre a mesa. “Poe se propôs a escrever comigo seu melhor conto fantástico, o do escritor que não se deixa traduzir totalmente. Há dois meses calculei que faltavam umas seiscentas páginas. Traduzo dez por dia em média. Ontem à noite fiz as contas e falta umas... seiscentas (exagero um pouco em benefício de teu sorriso, mas a verdade é que o Edgardo tem uma elasticidade que já queria meu cunhadíssimo – escritor prolífico)”, confessa. Sua previsão é que em fevereiro a tradução e a correção estão completas, e então possa fazer uma viagem pela Itália à espera de chegar a Florença e aí escrever um estudo preliminar e as copiosas notas que proporcionem ao trabalho “um arzinho universitário (sem pedantismos)”.

A vida de escritor é imprevisível, e numa de suas saídas de lazer a San Giovanni em Laterano, para seguir explorando o museu, vem-lhe a ideia que, se algum vez tiver tempo, escreverá um Manual de instruções. A ideia encontra quase saída da terra. O museu está fechado e visitam o palácio de Scala Santa, cuja escada é tradição subir de joelhos. Entre as coisas que há para vender descobre um pequeno livro com instruções justamente para subir a Scala Santa. “Tão bem me pareceu que me dei conta até que ponto estamos órfãos de boas instruções para fazer uma quantidade de coisas importantes. Fariam falta instruções para beber uma xícara de café, por exemplo, ou para sentar numa cadeira. São coisas elementares, isto é, profundas, ou seja mal-entendidas”.

Aurora Bernárdez e Julio Cortázar 

Passam o Natal na intimidade de Poe e escutando a missa do galo em Santa Maria Aracoeli. O dia do fim de ano vagam até tarde, e as onze da noite voltam para casa porque são advertidos do perigo que correm se os surpreende a meia-noite na rua. “E não era conto, porque os entusiastas romanos jogam carradas de garrafas e pratos à rua, de modo que não se vê uma alma nas calçadas”.

Por fim chega fevereiro. Tem ante si 1.400 páginas corrigidas e quase prontas para impressão. A tarefa tem sido titânica. E ainda faltam umas trezentas páginas, as notas e o estudo preliminar. Mas, o grosso do trabalho está feito: setenta e cinco contos e quase trinta ensaios. Na última semana do mês enviam sua bagagem para Florença e com duas bolsas de mão empreendem uma viagem de carona que os leva a Nápoles, Salerno, Amalfi, Ravello, Roma, Orvieto, Perugia, Assis, Arezzo, Siena e San Gimignano, antes de chegar a Florença. Numa carta ao seu amigo o poeta Alfredo (Fredi) Guthmann admite que cruzar a Itália de carona em pleno mês de março, com pouco turismo e frio, é uma experiência duríssima. As leis do país impedem os caminhoneiros levar mulheres e os carros de luxo não param “nem a tiros, seguramente porque o dono teme que alguém lhe manche o estofado”; nos automóveis pequenos, Cortázar simplesmente não cabe.

Em Florença permaneceram dois meses e assistiram a chegada da primavera. E, como estava previsto, liquidaram Poe em jornadas de nove horas de trabalho. Enfim. Mais de 2 mil páginas, incluindo os prólogos, notas, biografia e outros adornos críticos, que enviaram em meados de maio para a Universidade de Porto Rico. Então fizeram seu giro final pela Itália, ao longo de vinte dias. Depois de enviar suas malas para Paris e ficar só com o necessário, visitaram Pisa, Lucca, Prato, Bolonha, Ravena, Classe, Ferrara e Veneza, onde a sorte lhes sorriu e conseguiram uma morada barata, por 1.600 liras tutto compresso, na Piazza de San Marco, num quinto andar, na ala esquerda do edifício da Torre del Orogologio, “de modo que os Reis Magos que saem para adorar o menino quando dá a hora desfilavam a dois metros de nossas janelas”.

Os dez dias que passaram em Veneza foram felicíssimos. Cortázar inclusive teve a ocasião de ver a gôndola da morte, a que embarcam os caixões para levá-los à ilha de San Giorgio, conduzida por quatro homens de preto que remam lentamente. “Vimos numa manhã de sol deslumbrante, quando embarcavam alguém que havia morrido no hospital. Te asseguro que quis ter talento para meter isso num conto alguma vez. É das coisas mais terríveis que a Europa me deu”, confessou ao amigo Damián Bayón.

Depois de deixar Veneza viajaram a Pádua e Verona. Os últimos cinco dias italianos passaram em Milão. No dia 9 de junho regressaram a Paris, e Cortázar enviou a tradução de Poe e, quase em seguida, os contratos assinados com a Universidade de Porto Rico. Previu que o pagamento seria questão de algumas semanas. Tardaria quatro meses. No intervalo de espera conseguiu trabalho de tradutor na Unesco e isso o aliviou dos apuros econômicos. No início de agosto recebeu carta de Damián Bayón, que lhe advertia da partida iminente do cheque até Paris. “Ocorreu-me – respondeu Cortázar de volta ao correio enquanto passava as manhãs à sua espera – que talvez tenham feito com ele um barquinho de papel e o colocado na beira do mar, para que chegue sozinho”. Chegou tarde, mas chegou em forma de travelers cheque, o que permitiu a Cortázar retirar o dinheiro em pequenas quantidades, à medida que fazia falta, ao invés de uma só parcela.

Faltava muito tempo para que a tradução adquirisse aspecto de livro. Esperar é um dos trâmites incômodos e inevitáveis da vida literária, como se para tudo existisse um inverno longo e inóspito. A obra não esteve pronta até 1956, quando apareceu em dois tomos pela Editora da Universidade de Porto Rico em parceria com a Revista de Occidente. Nesse tempo, Cortázar retomou a escrita e viajou a Argentina, Uruguai e Índia, e continuou traduzindo outros escritores. Em maio de 1957, na carta ao escritor Jean Bernabé, contou que “os livros chegaram quando já nem me lembrava de todo o trabalho que havia me dado essa tradução”.

* Este texto é uma tradução livre de "Cortázar y un tal Poe" publicado em El País.

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