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Abismo, brilho, destino e vento

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Por Justo Navarro Sem precisar de bússolas, viajamos a bordo de uma nave que gira a mais de 100.000 quilômetros por hora ao redor do Sol: Terra é o nome da nave. Quem assim o faz é Rumford em The Sirens of Titan , um romance de ficção científica de Kurt Vonnegut. Mas, antes de nossa era, o filósofo épico Lucrécio comparou os recém-nascidos com náufragos, marinheiros jogados à costa por uma forte tempestade marítima. “Há 200 milhões de anos deixamos o mar e isso precisou ser um acontecimento traumático do qual não nos recuperamos”*, diz uma das personagens de O mundo submerso , de J. G. Ballard. Foi encontrado um remédio para o trauma: imaginar aventuras marítimas. Estou lendo Um ciclone na Jamaica , de Richard Hughes, um bom romance de 1929. Quando um furacão leva sua casa, os Bas-Thornton, ingleses numa ilha em ruínas depois da libertação dos escravos negros, decidem mandar seus dois filhos e suas três filhas para estudar em Londres. Os cinco caíram em poder dos pirat...

Boletim Letras 360º #235

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Durante a semana o Letras  abriu uma enquete no grupo do Facebook perguntando qual livro (ou quais livros, nas opções há até dois títulos) gostaria de ver sorteado na próxima promoção do blog. O último para votação é 19 de agosto. E o sorteio será divulgado até o dia 21 na página do Letras no Facebook . Depois de ver o Boletim, que tal opinar? Vários títulos importantes da obra de Albert Camus ganham reedição e voltam às livrarias brasileiras. Segunda-feira, 14/08 >>> Brasil: A Companhia das Letras publicará edição fac-similar de Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade Desde 2016, a editora lançou-se ao projeto de reedição da obra do poeta modernista. A edição fac-similar é preparada por Jorge Schwartz e Gênese de Andrade. A primeira edição do Primeiro caderno  foi publicada em 1927, dois anos depois, portanto, da estreia de Oswald como o poeta revolucionário de Pau-Brasil. A tiragem do livro foi de 299 exemplares, numerados de...

Um romance sobre a aparência que se torna essência

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Por Rafael Kafka Thomas Mann escreveu um imenso e genial romance sobre a decadência familiar burguesa chamado Os Buddenbrook. Um romance tão genial que anula um pouco o brilho deste Sua Alteza Real que tive a chance de ler na semana passada. Verdade que a história de Klaus Heinrich é escrita de modo mais direto, mais simples do que a do jovem Johann Buddenbrook, mas no romance sobre a família de comerciantes Mann foi mais ousado em diversos aspectos e escreveu um texto que além de ser um romance sobre a decadência liga os temas dos interesses econômicos de uma família aos papeis de gênero na sociedade burguesa com sua estrutura da sagrada família. Ainda assim, Sua Alteza Real pode ser lido como uma espécie de complemento do panorama tecido em Buddebrook. Mais uma vez, não vemos Mann lidar diretamente com uma individualidade e sim com uma coletividade. Do gênero romanesco, o autor alemão pega a identidade fixa das personagens com seus nomes específicos, mas sentimos ...

O reflexo perdido e outros contos insensatos, de E. T. A. Hoffmann

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Por Pedro Fernandes E. T. A. Hoffmann e seu amigo Ludwig Devrient no bar de vinhos Lutter & Wegner, tela de Carl Themann, 1832. Os contos reunidos nessa coletânea por Maria Aparecida Barbosa destoam em grande parte do ideal que o leitor comum fará de E. T. A. Hoffmann ao pensá-lo enquanto um escritor do romantismo. Claro, essa observação um bocado reducionista, encontra reverberação no senso comum que repousa sobre o conceito segundo o qual o ideal romântico envolve necessariamente um imbróglio amoroso e a danação dos amantes. Um dos contos que preenchem essa alternativa é – e o título engana bem – “As minas de Falun”, a história de um jovem marinheiro desiludido da vida errante e porque havia tido sorte nas empreitadas mas não nas relações familiares e no amor sai em busca de servir como mineiro em Falun. Dividido entre o amor por Ulla, a filha do patrão, e pela ambição, dirigida por um certo fantasma, o mesmo que lhe diz em sonho sobre o brio de ser mineiro, Ellis, é es...

A vida de uma mulher, de Stéphane Brizé

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Por Pedro Fernandes O cinema de Brizé é capaz de prodígios. Embora, se tomarmos como exemplo este A vida de uma mulher , não demora percebermos que esteja muito distante dos modelos convencionais para filmes do gênero. Isto porque, alheio aos dramas-clichês das produções contemporâneas, o diretor francês decide pela boa narrativa de dicção realista. O espectador de A vida... se um leitor acostumado às narrativas marcadas pelo acúmulo de situações e muitos plot precisa renunciar à rapidez da ação e ao elemento surpresa para deixar se levar pelo peso do traço descritivo. Mas, nada é à toa. A desautomatização é proposta porque o tom da narrativa assim o é. A vida de uma mulher é a adaptação de uma das mais de trezentas histórias compostas pelo francês Guy de Maupassant, reconhecidamente um dos mais importantes nomes da chamada literatura realista / naturalista, ao lado de Émile Zola e Gustave Flaubert. E qual é a grande característica das narrativas dessa geração?...

Quando Borges era Giorgie

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Por Jesús Ruiz Mantilla Borges e sua mãe, 1920. Toda noite, até morrer e apesar de seu agnosticismo, Jorge Luis Borges rezava uma Ave-maria. Há promessas que podem mais que a fé. E essa fez à sua mãe, dona Leonor Acevedo. Mas, além do laço filial, o escritor manteve com esta mulher um vínculo que deu pé a todo tipo de interpretações. Viveram juntos até a morte dela, em 1975. Ela foi que transcreveu para ele parte de sua obra, liam juntos e iam ao cinema, dividiam os gastos da casa, conversas triviais e teológicas, viagens, manias e paixões que volta e meia rondam as teorias dos especialistas. Um cartão-postal do arquivo José María Lafuente, em Cantabria, dá ideia de sua relação íntima e poética: “O meio-dia me entrega as melhores possibilidades de um pensamento que não se deixa traduzir”, escrevia Borges de Punta del Este (Uruguai) para sua mãe nos anos trinta. “By the way, cheguei à claridade de uma janela, só para conversar com você. Georgie”. O By the way é her...