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O naturalista da ficção

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Por Andrés Olascoaga Em 1986, o médico russo tornado dramaturgo Anton Tchekhov apresentou nos palcos de São Petersburgo sua primeira grande obra de teatro – A gaivota , uma peça em quatro atos na qual colocava em questão as relações românticas e artísticas entre quatro personagens: um dramaturgo experimental com problemas familiares, um famoso escritor, uma atriz em decadência e uma ingênua garota. A obra, apesar de parecer centrar-se apenas num círculo alto da sociedade russa de finais do século XIX, conseguia capturar o sentir do povo, uma vez rodeada por conflitos de classe e o início da queda do grande império russo. Apesar da evidência de seu talento, a peça foi um grande fracasso. Tchekhov, um homem que sempre havia encontrado nas letras um veículo para a liberdade e a sobrevivência, pensou então renunciar à literatura. Mas, e como qualquer amante do teatro pode constatar, a situação foi só um dos desafios que o autor russo precisou enfrentar para se conv...

Experimentar a dor

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Por Gabriel Stroka Ceballos Marguerite Duras. Foto: Robert Doisneau Hoje em dia espera-se pouco. E por pouco esperar qualquer espera parece insuportável. A mensagem não respondida por cinco minutos parece levar uma eternidade. Além da crescente velocidade nas comunicações, a cada dia que passa arranja-se uma distração tecnológica a mais. Assim, talvez, cada vez sabemos menos sobre o que é experimentar a angústia tão humana. Recentemente li A dor . Confesso que fui levado a ler Marguerite Duras pela convergência de dois fatores quase que superficiais à sua escrita. Os primeiros foram o título e a capa desta edição que peguei em algum sebo pela vida e tinha aqui perdido em minha pilha dos “para ler” e o segundo tem a ver com a onda feminista, que me abriu os olhos para a verdade incômoda de que eu raramente escolhia escritoras como próxima leitura. E o que se pode dizer de Marguerite? Muito, definitivamente. O primeiro texto do livro é o que dá título à edição...

Boletim Letras 360º #325

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Nesta semana, o blog Letras in.verso e re.verso recebeu nova colunista, Irina Migliari. É o último nome dos selecionados da última chamada que realizamos no início de 2019. Estamos bem robustos, como veem. À medida que as participações de novos nomes forem se expandindo por aqui, os leitores poderão ter acesso diretamente aos textos de cada um através do menu lateral e saberão melhores detalhes sobre através da guia Expediente. Não deixem de acompanhá-los. Formamos um time de alto quilate. Recadinho dado, veja a seguir as matérias apresentadas durante a semana em nossa página no Facebook, o preciso objetivo desta publicação. Acompanha, as dicas de leituras (seguindo a temática do Dia das Mães) e os links com conteúdos extras.  Fotografias de Gabriel García Márquez realizadas aquando da publicação de Cem anos de solidão vão a leilão. Segunda-feira, 6 de maio No ano do centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen, a primeira biografi...

Autoria, agenciamento e desdobramento

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Por Tiago D. Oliveira Em uma entrevista, perto do fim de sua vida, o escritor argentino Jorge Luis Borges, afirmou que nunca se termina de aprender a ler. Talvez como nunca se termina de aprender a viver. Em A esponja dos ossos (editora 7 Letras),  Maria Cecilia Brandi apresenta ao leitor poemas que são atravessados por uma coleção particular de fragmentos de prosa que foram acumulados no passar dos anos por uma afecção particular e amorosa. A autora busca expor a relação que seus poemas criam com tais fragmentos de maneira que esse movimento transpasse a prática de uma comum pilhagem para provocar uma busca pelo encaixe esculpido de sua produção com o que guardou de leituras. Em determinado momento fica claro que nesse exercício de intertextualidade cresce um outro ângulo de análise: seriam os poemas completados pelos fragmentos ou os fragmentos pelos versos da poeta? Ao final da leitura do livro fui acometido por uma série de direções, mas o que ficou claro no m...

Reler Liev Tolstói

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Por Luciano Lamberti Como resenhar um clássico, um livro que se lê com “prévio fervor” e que a história da literatura já julgou e aprovou há muitos anos? Apesar de Anna Kariênina ser um dos romances que reli mais vezes, seus contos e especialmente esta pequena novela intitulada A morte de Ivan Ilitch constituírem uma espécie de bíblia para mim, nunca havia lido A sonata a Kreutzer , talvez a novela mais copiada de Tolstói, também a mais moderna, a que deixou uma marca mais profunda. E lamento não ter lido antes, porque me deu muito prazer, me parece terrivelmente atual e é bastante próxima à perfeição. Tolstói não se preocupava, em geral, com a forma dos textos. Não lhe era sua primeira necessidade. O experimental, pelo menos em sua superfície, não é de sua predileção. É um narrador poderoso o suficiente para fingir certa inocência, certa crueldade das coisas (embora é evidente que o seu narrador, como se disse reiteradas vezes, é aparentemente sensível). Seu narrad...

Por que Calvin e Haroldo é grande literatura: sobre a ontologia de um tigre de pelúcia ou encontrando o mundo todo em um quadrinho

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Por Gabrielle Bellot “Para um editor”, escreveu Bill Watterson, o criador de Calvin e Haroldo em 2001, “espaço pode ser dinheiro, mas, para um cartunista, espaço é tempo. O espaço provê o andamento e o ritmo da tira”. Watterson estava certo, talvez em mais formas do que imaginava. Tirinhas de jornal, escreveu, fornecem um espaço único para muitos leitores antes de começarem o dia; conseguimos atravessar, brevemente, uma porta que nos leva a um mundo mais calmo, simples, no qual os personagens permanecem largamente os mesmos, inclusive em seu vestuário. Nem todas as tirinhas de jornal são assim, é claro, em especial os quadrinhos narrativos mais complexos do passado como Little Nemo in Slumberland ou Terry and the Pirates , e os piores quadrinhos – dos quais há muitos – retêm o senso de mesmice sendo formulaicos e sem inspiração. Mas isso, também, está relacionado ao espaço. Espaço, em termos gerais, é o que define Calvin e Haroldo . A tira acompanha Calvin, um amer...