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Uma distopia e uma vida nua para chamarmos de nossa

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Por Rafael Kafka Stuart Pearson Wright  Há dois livros que vejo sendo citados com relativa frequência para falar da atual conjuntura da pandemia de Covid-19. A peste , de Albert Camus, talvez seja a rememoração mais realista por abordar um clima existencial de confinamento o qual lembra demais o que atualmente vivemos. Ensaio sobre a cegueira , de José Saramago, já cria uma antítese interessante sobre como a perda da visão permite uma noção mais precisa do que é o ser humano, do quanto de barbárie há na leve superfície de civilização que temos a nosso dispor. O primeiro me faz pensar mais na questão de algo que comecei a ver descrito no conceito de vida nua, de Giorgio Agamben. Longe de comparar o que nós, seres privilegiados que discutimos sobre a felicidade nos tempos pós-pandemia em nossas lives diárias, com o que foi vivido em campos de concentração como os nazistas, penso que de certa forma há uma analogia com essa vida crua que se mostra diariamente a nós e da...

Meu pequeno país, de Gaël Faye

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Por Pedro Fernandes Qual a cara do horror quando não temos uma consciência formada para sabê-lo? Essa pergunta certamente não foi a que serviu de impulso para a escrita de Meu pequeno país . O título do primeiro romance do escritor nascido no interior de Burundi, um pequeno país africano situado entre a Ruanda, a Tanzânia e o Congo, deixa sugerir uma variedade de sentidos, desde o mais evidente, a designação da própria terra natal do escritor, às variáveis estabelecidas pela narrativa, como as que se guiam pelos temas da pertença, da nação, da etnia, da raça, da identidade, entre outros temas caros à literatura cuja nascente repousa em contextos dos mais difíceis quando o assunto é o enfretamento étnico-cultural como é o caso da extensa parte dos países de África. A pergunta apresentada acima oferece uma leitura marginal, e importante, do romance de Gaël Faye. Meu pequeno país é um livro que se coloca como resposta sobre um passado não muito distante do seu narr...

Os corvos, a noite e o sol nos punhos fechados

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Por Tiago D. Oliveira       A poesia tem a capacidade de traduzir os dias, não há resposta mais honesta do que a repatriação dos significados. Cada leitura é dona de um mundo. O olhar do poeta é um elemento motivador para a potência de qualquer livro. Desde Primeiro as coisas morrem (2004) e Nenhum nome onde morar (2014), venho guardando versos que se escondem sem que percebesse, o que só agora noto de um rico estranhamento, depois da leitura de corvos contra a noite, novo livro de poemas de Diego Vinhas, editado pela 7 Letras neste ano profundo de 2020. Lembro desse estranhamento que ficou exatamente depois de seu poema “Benfica”, lido na internet há alguns anos;   caminhar/ por uma cidade/ desconhecida é tomar a vida/ de alguém,/ emprestada , plantei desconfianças diante de um mundo que não acredita na força tradutória da poesia. Diego, em sua nova produção, reafirma ainda mais afinado com seu tempo, o papel de um poeta que não afrouxa as rédeas dia...

Clarice Lispector e Susan Sontag: furtos e abusos

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Por Guilherme Mazzafera Assim como muitos, li Clarice,  – a biografia que leva o nome de Benjamin Moser – com certo deleite e curiosidade. Creio que foi por volta de 2017, após tê-la comprado em uma das diversas promoções da finada Cosacnaify. Desconhecendo os importantes trabalhos precedentes de Nádia Gotlib ( Clarice, uma vida que se conta , Ática, 1995) e Teresa Montero ( Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector , Rocco, 1999), aprendi muitas coisas e apreciei sua estrutura e pendor narrativo. Em uma breve pesquisa, no entanto, as animosidades entre Moser e Gotlib ficaram evidentes, em vídeo e por escrito. Num primeiro momento, não levei a coisa muito a sério, entendendo o fato como um ranço natural, colonialista quase, de uma pesquisadora brasileira diante de alguém que faz (tardiamente) um trabalho semelhante ao seu com repercussão muito mais ampla simplesmente por tê-lo feito em inglês. Mas, ainda longe de descobrir o furto estrutural ...

Olga Savary

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Olga Savary. Foto: Daryan Dornelles A notícia sobre a morte de Olga Savary (Belém, 21 de maio de 1933) tardou a chegar às páginas dos jornais. Foi registrada no dia 15 de maio de 2020, divulgada no início da tarde do dia seguinte nas redes sociais, incluindo as do blog Letras in.verso e re.verso , e os registros mais antigos nos cadernos de cultura datam de depois das 20 horas; foi no jornal O Globo . Depois, os outros veículos replicaram as chamadas de mesmo tom modesto. As duas situações atestam algo que se reflete para além da triste crise que atravessa o jornalismo cultural no Brasil: o país desconhece a literatura e o trabalho da mulher que integra uma rica geração de criadoras na poesia, se considerarmos ao seu lado Hilda Hilst (1930 ― 2004) e Adélia Prado (1935 ― ), para citar as agora mais famosas, ou as esquecidas Zulmira Ribeiro Tavares (1930 ―2018), Lupe Cotrim (1933 ― 1970), Marly de Oliveira (1935 ― 2007), Myriam Fraga (1937 ―2016), Eunice Arruda (1939―2017),...

Boletim Letras 360º #378

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DO EDITOR 1. Alcançamos, ao acaso, mais uma semana. E com os velhos problemas de sempre. Descobrimos outro desafeto da gente ignorante que continua no trabalho coordenado e financiado de ampliar as fronteiras da escuridão no Brasil: depois de sabermos que ela adora um esculacho contra José Saramago e Chico Buarque, sabemos que o nome da vez é Sérgio Sant’Anna. Uma post publicada em nossa página no Instagram foi atacada por comentários de ódio que também chegaram a outros meios. 2. Reiteradas vezes incitamos a denúncia aos malfeitores; nós e todos os que contribuíram não alcançamos êxito até a manhã de fechamento da edição deste BO, o que nos leva a questionar a fragilidade dos administradores das plataformas virtuais numa ação efetiva contra o fascismo nesse início de século. Nossa presença em redes como o Instagram será reduzida: o impacto disso não interfere em nada no amplo poder exercido por este domínio, mas é uma maneira de não oferecer mão de obra gratuita para um gr...