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Fisionomia afetiva das estantes

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Por Guilherme Mazzafera Biblioteca de Antonio Candido. Foto: André Seiti   A estante é o homem: eis a máxima imperecível. Não se trata de apostasia pelas verdades transcendentes, mas daquela devassa ao material que nos define como seres históricos, enraizados nas palavras de romances que nos levam... às verdades transcendentes. Ou ao Japão feudal, à Samoa do tísico Stevenson, e, quem sabe, a algum lugar em La Mancha de cujo nome não me quero lembrar.       Todo leitor se depara com aquele momento crucial de adquirir (ou mandar fazer) uma ou mais estantes. Quando perguntados sobre o sentido de estocar material já lido (falarei dos não lidos adiante), não há melhor resposta que a do cético George Costanza ― o mesmo que, perenemente corrompido pelos hábitos televisivos, não conseguiu encarar mais de duas páginas de Breakfast at Tiffany’s ― diante do esgar prático de seu amigo Jerry Seinfeld: it’s a book ! Há todo um universo vocabular próprio para o armazenamento ...

Boletim Letras 360º #404

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    DO EDITOR   1. Saudações, caro leitor! Neste 27 de novembro de 2020, o blog Letras in.verso e re.verso ultrapassa a linha para os 14 anos online. Neste tempo muita coisa aconteceu ― boas e ruins. Se olharmos de perto, não é gratuito que primeiro apareçam as coisas boas. Um espaço que nasceu sem quaisquer pretensões alcançar os limites que alcançamos talvez seja a melhor delas. 2. Vale partilhar com vocês alguns números que ainda servem de espanto para um blog num país acusado reiteradamente de pouco afeito à leitura. Pelo Letras, os leitores passaram 2,7 milhões vezes (dos recantos mais variados do mundo, p.ex., Hong Kong nos visita mais que o país-irmão Portugal e nosso maior público visitante depois do Brasil é dos Estados Unidos). 3. Em termos de conteúdo, já editamos mais 3,7 mil textos sobre livros das mais variadas feições literárias, perfis de escritores, comentários sobre filmes, listas de leituras e de filmes, ensaios sobre temas e questões das mais variadas...

Mecanosfera/Monoambiente e os desafios da escrita

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Por Paula Luersen Criticar até mesmo aquilo que está em risco. Sabemos que não é tarefa do escritor zelar por instituições. Afinal, na maioria das vezes, escritores têm pouca influência prática e imediata sobre o rumo dos eventos que definirão a permanência ou extinção daquilo que está posto. É um grande desafio, contudo, revelar contradições e injustiças de situações sob o alvo de ataques políticos que não preveem qualquer crítica construtiva, apenas o escárnio. Falo da situação atual do mundo acadêmico no Brasil, transformado por instâncias governamentais, através de um olhar infantilizado, em uma espécie de inimigo a ser combatido. Longe de ser aquilo que pintam as tintas de uma postura ideológica e mal intencionada, esse mesmo mundo acadêmico também não está isento de críticas. Ao performar os vícios do sistema no qual se inscreve, ele promove assimetrias entre produção de conhecimento e seus modos de circulação e mensuração. O livro de Fabrício Silveira Mecanosfera/Monoambiente s...

Billy Budd, de Herman Melville

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Por Pedro Fernandes   É verdade que o trabalho da literatura, por mais que se acuse do contrário, não se estabelece pela alteração das coisas ou dos destinos sociais. No entanto, nela se manifesta o espaço privilegiado para o aceso debate sobre aspectos que atuam nessas modificações. E, talvez por isso, toda vez que as sociedades recrudescem seus limites de liberdade, logo se encontre na literatura o papel de bode expiatório e, consequentemente lhe imprimam a censura. Exemplos sobre o tratamento questionador exercido por algumas obras estão em toda parte e este pequeno texto de Herman Melville é um deles.   Ainda nos instantes iniciais da narrativa, o narrador de Billy Budd recorre ao discurso de verdade para justificar o que conta. Diz estar fora do grupo de ficcionistas que ignoram o fatual e se deixam seduzir pelo fabular; as provas, apressa-se em mostrá-las, se oferecem por uma variedade de atalhos que adiam o acontecimento principal e ao mesmo tempo demonstram que é alg...

Há dois tipos de livros: os ilustrados e os não ilustrados por Gustave Doré

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    Por E. J. Rodríguez   “Gustave Doré teria sido um grande diretor de fotografia. Via as coisas a partir do ponto de vista uma câmera.” (Ray Harryhausen, profissional da área de animação stop motion )   “[O trabalho de ilustração de Gustave Doré para uma edição do Dom Quixote ] foi descrito como o ato de ilustrar uma obra. Eu acredito que foi ato de reescrevê-la. Ao invés de ter uma obra-prima, a humanidade tem agora duas.” (Émile Zola) O célebre registro de Gustave Doré para as duas personagens principais do livro de Cervantes: Sancho e Dom Quixote.      No século XIX, Dom Quixote foi a obra literária mais vendida do mundo, perdendo apenas para a Bíblia. Destas duas obras existiam muitas edições utilitárias lançadas por empresários oportunistas que buscam produzir de qualquer forma o que era uma demanda eterna. Mas, para os grandes editores, para os mais ambiciosos, a Bíblia e Dom Quixote foram as pedras de toque sobre as quais pode construir seu ...

O verdadeiro criador de tudo, de Miguel Nicolelis

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Por Davi Lopes Villaça   A ciência teve, nos tempos modernos, um papel importante no processo de desmitologização e dessacralização do mundo. Ela nos mostrou que o homem não ocupa o centro do universo e que a natureza, essa entidade impessoal, se desenvolve de acordo com leis próprias, insensível ao destino de suas crias. Foi um duro golpe para o nosso ego, que se amparava na ideia de que éramos os protagonistas da história universal ou, pelo menos, de que os astros não eram de todo indiferentes às nossas façanhas. A perda dessas ilusões contribuiu também para a ruptura de um vínculo precioso com o mundo exterior, outrora garantido pelo simbolismo de mitos e religiões, que determinavam nossa interação com o que acreditávamos ser algum tipo de ordem natural e divina ― mas que era, acima de tudo, uma ordem humana, engendrada em nós mesmos para dar forma mais compreensível à realidade. Depois, quanto mais passávamos a conhecer o mundo, menos familiar ele se tornava para nós. Entre o i...